Por Ivan Lessa
O dia em que a América Latina me dá mais trabalho é no sábado. No sábado, entre 11 da manhã e uma da tarde, transformo-me no mais ubíquo dos correspondentes estrangeiros da BBC, informando, num mínimo de palavras e com o máximo de fatos, sobre os mais diversos aspectos do conturbado continente. Duvido que outro correspondente para ou da BBC trabalhe tanto em tão pouco tempo – inclusive o responsável pela cobertura de Beirute.
É que no sábado, entre 11 e uma da tarde, como disse, tomo minha cervejinha no pub da esquina, antes de comer com a família num dos restaurantes do bairro. E é no sábado que sou assediado pelo Stanley – ou Stan, para os íntimos, quer dizer: eu.
Stan é ex-oficial da Real Força Aérea Britânica. Nada mais ex do que o lamentável Stan. Um terno que nem eu teria coragem de dar para os pobres e nem os pobres o mau gosto de aceitar. Suéter onde ainda se podem distinguir três das seis refeições consumidas no último inverno. Sapato preso com corda tingida com tinta preta. O mundo e a caspa a lhe pesarem nos ombros.
Para aguentar tudo isso, Stan já chega bêbado. O que ou onde bebera não sei. Mas entendo. Na mão, como um manche inútil no seu avião desgovernado, o exemplar do Times. Não encontrando alvo melhor, pousa perto de minha mesa, como se saltando de pára-quedas sobre território ocupado pelos alemães.
Como eu nunca lhe fiz perguntas sobre a RAF, Stan se acredita na posição de comando, de delicado e cortês comando. Sabe-me vagamente latino-americano. E sou vagamente latino-americano. Só que em termos diferentes dos que crê Stan. Por ser do morro e moreno, consequentemente, respondo em despachos breves às indagações puxa-prosa de Stan.
Vejam o que foi este sábado, por exemplo.
Em minha opinião, o general Augusto Pinochet abriu mão do poder em consequência dos eventos no Leste europeu, ou outros fatores contribuíram para a augusta decisão?
Bem – eu, como todo especialista, sempre começo minhas respostas com bem –, bem, temos que levar em consideração que o plebiscito realizado no Chile ocorreu algum tempo antes de os ventos das reformas soprarem no Leste europeu.
Notaram meu sutil uso da primeira pessoa do plural? Outra técnica jornalística: dar peso às tolices que digo como se tivesse fontes fidedignas de informação e simultaneamente envolvendo-o – a ele, meu interlocutor – na ponderação.
E a Nicarágua terá condições de encontrar o caminho para a reconciliação nacional sem o auxílio econômico dos Estados Unidos?
Pela pergunta, vocês podem notar que Stan não está tão por fora quanto seria de se desejar. Tenho que proceder com cautela. Há tocaias à minha espreita nesta selva nicaraguense. Opto pela saída clássica, a imbatível estratégia mineira: respondo firme. “Bem, tudo depende do ponto de vista.”
Bebo o último gole de meu chope duplo e ofereço-me para pagar qualquer coisa para ele. Stan vira de uma só vez 17 goles que lhe sobram de seu chope, diz que sou muito gentil e diz que a dele é uma bitter. A questão nicaraguense me sai mais barata do que ao contribuinte norte-americano. Um pint de cerveja amarga.
Stan está animado com minha política externa. Igualzinho a um El Salvador ou Honduras gritando “Olha os comunistas!” para os políticos americanos e suas generosas doações.
E toma ele a bitter e tomo eu Mario Vargas Llosa e Sendero Luminoso. Rebatidos com a bem-sucedida nova política econômica mexicana e as relações diplomáticas entre Grã-Bretanha e Argentina.
Lá se foram – cortesia da América Latina e da RAF – meu jornal, meu chope, meu sábado de manhã.
Já mudei de continente. Terei agora de mudar de bar?
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