Por Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino
A cidade é aquilo que praticamos. Essa é a defesa da noção de cidade mirada pelo alinhave das múltiplas sabedorias que dão o tom daquilo que reivindicamos como epistemologias das macumbas. Assim, a cidade é aquilo que é inventado cotidianamente enquanto terreiro.
Lembremos que os terreiros são as saídas inventivas, a partir da prática do tempo/espaço por aqueles que rasuram as lógicas da desterritorialização. Dessa forma, a experiência do desterro se dá via a retirada compulsória e também pelas vias da descredibilização do ser e de seus saberes enquanto possibilidades. Para a maioria dos seres que não repousaram nas cadeiras dos privilégios arranjadas sobre os alpendres da Casa Grande, resta a invenção dos terreiros como ato de desobediência, transgressão e invenção.
Pensemos o Rio de Janeiro por essa perspectiva: um enredamento de terreiros encravados entre as montanhas e o mar. Por aqui corre a gira falanges ameríndias e africanas que na relação com os europeus rodopiaram na mesma canjira. De vez em quando, diríamos até que muito frequentemente, os encantados de falanges diferentes saem no cacete e a curimba esquenta. Eventualmente, porém, vira-se mundo e o povo no corre da gira cruzada e firma ponto para inventar a vida enquanto possibilidade.
A perspectiva riscada no encante da pemba nos revela uma cidade que é tempo/espaço em disputa; em um jogo que nem sempre se desenrola de forma igualitária para os seus praticantes e que em muitas das vezes o uso do artifício do desencante é artimanha dos poderosos. Ler a cidade do Rio na perspectiva do encante é tarefa para aqueles que aprenderam a versar na língua do povo do congo e bradaram alto no campo de batalha, feito guerreiro tupinambá. É tarefa para aqueles que sabem a potência da diversidade, dos diálogos e dos trabalhos feitos na artimanha do transitar pelas diferenças.
Lendo em múltiplos dizeres e entenderes, vamos mais longe na canjira carioca: Pereira Passos está encantado numa águia daquelas do Theatro Municipal. Cartola ajuremou-se numa pedra miúda da subida do Pendura Saia. Noel encantou-se em alguma garrafa de cerveja, com maestria. Jamelão virou Jequitibá do samba. Estão todos por aí, prontos para baixar, dançar, dar conselhos, passes e o escambau. Registre-se que a cidade inventada enquanto terreiro é também cheia de encosto de capitão do mato, de fardas e ternos bem cortados, empunhados verdades únicas, querendo atrapalhar a firmeza do riscado da pemba.
Percebemos que é no baixar dessas presenças, almas obcecadas pela intransigência, que nascem as demandas e marafundas que precisamos desatar. Agora é hora de firmar a banda de todas as pertenças daqueles que estabelecem relação de identificação com a cidade praticada enquanto terreiro. Sambistas, capoeiras, curimbeiros, professores, biriteiros, peladeiros de fim de semana, camelôs, navegantes do Santa Cruz ao Japeri, torcedores, feirantes, vadios, trabalhadoras e trabalhadores de toda estirpe, desse ou de outros mundos: nos lancemos nessa peleja.
A gerência de uma cidade praticada pluralmente por uma perspectiva contrária a diversidade produz um efeito de desencante, perda de potência vital, que reifica as raízes mais profundas do colonialismo. A grande peleja que se trava nesse momento veste o véu das purezas dos “homens de bem” para descredibilizar o nosso pluralismo e nossas sabedorias táticas operadas nas frestas.
O risco dos efeitos da demonização, dos absolutismos- reivindicados por seja qual for a banda- se dá no fortalecimento das lógicas monolinguístas. Contrários a esses efeitos, reivindicando as sabedorias de frestas inventivas dos nossos terreiros mundos, propomos firmar o fuzuê correndo a gira cruzada que é a cidade. A cidade simulacro ergue-se feito um edifício entoado por único dizer, cresce por cima de corpos e saberes múltiplos. A cidade terreiro corre gira, fala em vários dizeres para múltiplos entenderes, firma o encante no cruzado dos quatro cantos.
Haveremos de firmar uma toada duradoura, essa há de enunciar/comunicar em todas as línguas. O que nos espreita como demanda, marafunda de tempos atrás, opera na via contrária de nossa mirada, sendo fortalecida e perpetuada até os dias de hoje pelos mesmos modelos de catequese colonial.
O (re)encanto urge.
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