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quarta-feira, novembro 15, 2017

Carlos Castãneda: Mágica ou Realidade?


Por Miguel Duclós

O texto abaixo, tradução da matéria de capa da revista Time, de 5 de março de 1973, é um documento importante, embora com aspectos lamentáveis. Escrita num momento crucial em que a fama e a repercussão de Carlos Castañeda estavam no auge, com livros vendendo como água, tinha o propósito implícito e explícito de classificá-lo como um mentiroso fantasioso.

A reportagem sedimentou a informação, ao meu ver equivocada, dos dados biográficos de Castañeda relativos ao Peru. Na entrevista a Carmina Fort, de 1991, Castañeda lamenta o ocorrido e ironiza o esforço da revista em situar seus antepassados entre índios: “talvez achassem mais coerente que eu fosse um tipo de índio ou coisa que o valha”.

Independente disso, procurei traduzir a reportagem da revista Time com a maior fidelidade possível. Confiram:

A fronteira do México é um grande divisor. Abaixo dela, o amontoado de estruturas da racionalidade ocidental hesita e afunda. O modelo familiar de sociedade – proprietário e camponês, padre e político, aparece por sobre um estranho chão – o México oculto, com seus brujos e carismáticos, seus feiticeiros e videntes. Alguns de seus costumes datam de 2.000 a 3.000 anos, como o uso do peiote, o cogumelo e o culto da glória da manhã dos antigos toltecas e astecas. Quatro séculos de repressão católica em nome da fé e da razão reduziram estes antigos costumes a uma subcultura, ridicularizada e perseguida. Mesmo num país de 53 milhões de habitantes, onde muitos mercados nas cidadezinhas têm vendedores de ervas medicinais, botões de peiote e beija-flores secos, o mundo dos feiticeiros ainda persiste. Seus cultos tem sido alvo de interesse de antropólogos há tempos. Mas cinco anos atrás, dificilmente alguém poderia adivinhar que uma tese de mestrado neste assunto recôndito, publicado na conservadora editora da Universidade da Califórnia, pudesse se tornar um dos livros mais vendidos do início dos anos 70.

VELHO YAQUI. O livro era Os ensinamentos de Don Juan: O caminho Yaqui de conhecimento (1968) (1). Suas seqüências Uma Estranha Realidade (2) e o atual Viagem a Ixtlan (1972) fizeram os EUA cultuar a figura de seu autor e seu tema: um antropólogo chamado Carlos Castaneda e um misterioso velho yaqui de Sonora chamado Don Juan Matus. Os livros de Castaneda são essencialmente histórias de como um ocidental racionalista é iniciado na prática da feitiçaria indígena. Eles cobrem um espaço de dez anos, durante os quais, sob a estranha, exigente e às vezes cômica tutelagem de Don Juan, um jovem acadêmico é obrigado a introduzir-se e compreender o que chama de a “estranha realidade” do mundo dos feiticeiros. O aprendizado da iluminação é um tema comum entre as leituras favoritas dos jovens americanos de hoje (por exemplo, Herman Hesse com seu romance Sidarta). A diferença é que Castaneda não apresenta seu ciclo de Don Juan como ficção, mas como um documentário sem embelezamentos.

O malicioso e musculoso bruxo velho e seu aluno acadêmico certinho encontraram primeiramente audiência nos jovens da contra-cultura, dos quais muitos ficaram intrigados pelos relatos das experiências com plantas  alucinógenas (ou psicotrópicas). Erva-do-diabo, cogumelos mágicos, peiote. Os Ensinamentos venderam mais de 300 mil cópias de capa mole e está sendo vendido atualmente numa taxa de 16 mil cópias por semana. Mas os livros de Castaneda não são propaganda de drogas, e agora a classe-média pseudo-intelectual começou a abordá-lo. Ixtlan é um best-seller de capa dura, e suas vendas com capa mole (3), de acordo com o editor Ned Brown, irão fazer seu autor milionário.

Para dezenas de milhares de leitores, o primeiro encontro de Castaneda com Juan Matus, que aconteceu num empoeirado ônibus do Arizona, é um evento literário mais conhecido do que o encontro de Dante e Beatrice perto de Arno. Porque os ensinamentos de Don Juan foram impressos no exato momento em que, mais do que nunca, os americanos estão dispostos a levar em conta abordagens “não racionais” da realidade.  Esta nova abertura de mente se mostra em vários níveis, dos experimentos de ESP financiados indiretamente pelo governo dos EUA até a multidão chorosa de 13 anos da Califórnia tornando-se exultante com a chegada de um guru infantil num jato fretado de Bombay. O acupunturista agora divide os holofotes com Marcus Welby, M.D, e suas agulhas parecem funcionar, sem que ninguém saiba por quê. Entretanto, a fama crescente de Castaneda trouxe também dúvidas crescentes.  Don Juan não tem outra testemunha verificável, e Juan Matus é um nome tão comum entre os índios yaquis quanto John Smith é mais adiante, no norte. Castaneda é real? Se sim, ele inventou Don Juan? Ou Castaneda apenas está colocando-o no mundo real?

Dentre essas possibilidades, uma coisa é certa: não há dúvida que Castaneda, ou um homem sob este nome, existe: ele está vivo e bem em Los Angeles. É um falante antropólogo de olhos castanhos, rodeado de provas concretas de existência como uma caminhonete Volkswagen, um cartão de crédito, um apartamento em Westwood e uma casa de praia. Sua celebridade também é concreta. Ela o dificulta a dar aulas e palestras, especialmente depois de um incidente ano passado no campus de Irvine da Universidade de Califórnia, quando um professor chamado John Wallace conseguiu uma cópia de xerox do manuscrito de Viagem a Ixtlan , colocou junto com algumas anotações de um seminário sobre xamanismo que Castaneda dava, e vendeu o resultado para a revista Penthouse. Isso enfureceu Castaneda a tal ponto que ele tornou-se relutante em se comprometer a proferir qualquer tipo de palestra no futuro.  No momento ele vive em Los Angeles “tão inacessível quanto possível”, recuperando as forças de tempos em tempos no lugar que Don Juan chamou de “ponto de poder”, no topo de uma montanha próxima ao norte de Malibu, que é uma cadeia de montanhas mirando o Pacífico. Muito se distancia das ofertas para filmar: “Eu não quero ver Antonny Quinn como Don Juan”, disse com aspereza. Qualquer um que tente sondar a vida de Castaneda encontra um labirinto de contradições. Mas, para os admiradores de Castaneda, isto pouco importa. “Veja desta forma”, disse um. “Ou Castaneda está dizendo a verdade documental acerca de si e de Don Juan, e neste caso é um grande antropólogo, ou é uma verdade fantasiosa, e neste caso ele é um grande romancista. De uma forma ou de outra, Castaneda vence”.

De fato, apesar de o homem ser um enigma embrulhado em um mistério embrulhado em uma tortilla, o trabalho é maravilhosamente lúcido. O relato de Castaneda desdobra-se com poder narrativo sem igual em outros estudos antropológicos. Seu terreno ornado de cactos organ pipe, desde as deslumbrantes montanhas do deserto mexicano até o interior bagunçado da cabana de Don Juan parece perfeitamente real. É um mundo profundamente articulado em detalhes, como o país Yoknapatawpha de Faulkner. Em todos os livros, mas especialmente em Viagem a Ixtlan, Castaneda faz o leitor experimentar a pressão de ventos misteriosos e o farfalhar de folhas no crepúsculo, a atenção especial do caçador para o som e o cheiro a crueza extrema da vida indígena, o cheiro cru da tequila, o odioso e fibroso gosto do peiote, a poeira no carro e o alteamento do vôo do corvo. É um ambiente admiravelmente concreto, denso e com sentido animista.

A educação de um feiticeiro, como Castaneda descreve, é árdua. Através de Don Juan ela destrói necessariamente a interpretação do mundo dos antropólogos; do que pode e não pode ser chamado “real”. Os Ensinamentos descrevem os primeiros passos deste processo, que envolvem drogas naturais. Uma é a Lophophora williamsii, o cacto de peiote que, como promete Don Juan, revela a entidade chamada Mescalito, um poderoso mestre que ensina a você o “modo correto de viver”. Outra é a Erva do Diabo, que Don Juan trata como uma presença feminina implacável. A terceira é o humito¸ o “fuminho”, preparado com restos do cogumelo Psilocybe, secos e envelhecidos por um ano e então misturados com cinco outras plantas, incluindo sálvia. Ele é fumado com um cachimbo ritual e usado para adivinhações.

Estas drogas, Don Juan insiste, dão acesso ao “poder” de forças impessoais na amplitude do mundo que um “homem de conhecimento”, seu termo para feiticeiro, “deve aprender a usar”. Preparadas e administradas por Don Juan, estas drogas levam Castaneda a confrontos cada vez mais empolgantes ou apavorantes. Após mastigar botões de peiote, Castaneda tem encontros sucessivos com Mescalito como um cão preto, uma coluna, uma luz cantante ou uma espécie de grilo com a cabeça enrugada. Ele ouve impressionantes ruídos, impossíveis de se interpretar, oriundos das imóveis cadeias de montanhas de lava. Após fumar o humito e convesar com um coiote bilíngüe, ele vê o “guardião do outro mundo” aparecer na sua presença como um mosquito de cem pés com crista espetada e mandíbulas salivantes. Após esfregar seu corpo num ungüento feito com datura, o apavorado antropólogo sente várias sensações de estar voando.

Através de tudo isso, Castaneda raramente tem alguma idéia do que está acontecendo. Ele não pode ter certeza do que isto significa e mesmo se tudo isto “realmente” aconteceu, afinal de contas. Esta interpretação teve de ser fornecida por Don Juan.

Por que, então, numa época cheia de descrições de viagens, boas e ruins, as descrições de Castaneda são mais importantes do que as outras? Primeiro, porque elas são aparentemente conduzidas por um sistema – embora ele não tenha percebido isso quando ocorriam – imposto sacerdotalmente e com rigorosa disciplina pelo seu guia índio.  Segundo, porque Castaneda manteve notas extensas e extraordinariamente vívidas. Um exemplo de descrição do efeito do peiote:  “Em questão de instantes, um túnel formou-se ao redor de mim, muito baixo e estreito, duro e estranhamente frio. Sentia-se o seu toque como um muro de alumínio sólido... Lembro-me de ter que rastejar ao redor de uma espécie de ponto redondo onde o túnel acabava. Quando finalmente cheguei, se cheguei, havia esquecido tudo acerca do cachorro, Don Juan, e de mim mesmo”. Talvez o mais importante, Castaneda permanece sempre um racionalista tradicional. Seu único alívio são as perguntas: um constante, e às vezes infrutífero, esforço de manter um diálogo socrático com Don Juan.

“Eu voei como um pássaro?”. “Você sempre me pergunta questões que eu não posso responder... O que você quer saber não faz sentido. Pássaros voam como pássaros e um homem que tenha fumado erva do diabo também..”. “Então eu não voei realmente, Don Juan, eu voei na minha imaginação. Onde estava meu corpo?”. E por aí vai.

De acordo com ele, a primeira fase do aprendizado vai de 1961 até 1965 quando, assustado por estar perdendo seu senso de realidade “e possuindo então milhares de páginas de anotações “ se afastou de Don Juan. Em 1968, quando os Ensinamentos apareceram, voltou a descer ao México para dar ao velho uma cópia. Um segundo ciclo de instruções então começou. Castaneda percebeu gradualmente que o uso de plantas psicotrópicas para Don Juan não era um fim em si mesmo, e que o caminho do feiticeiro poderia ser trilhado sem drogas.

Mas isto requer um perfeito aguçamento da vontade. Don Juan insiste que um homem de conhecimento só pode transformar-se a partir de um “guerreiro”, não literalmente um soldado profissional, mas um homem inteiramente ligado no seu ambiente, ágil, descarregado de sentimentos ou de “história pessoal”. Um guerreiro sabe que cada ato pode ser o último. E está sozinho. A morte é a base de sua vida, e sob sua presença constante ele age sempre “impecavelmente”. Este estoicismo existencialista é a idéia central dos livros. O objetivo do guerreiro é o de se tornar um “homem de conhecimento”, e então entrar no clube seleto dos feiticeiros, isto é, “ver”... “Ver”, no sistema de Don Juan, significa sentir o mundo diretamente, agarrando-se à sua essência, sem interpretá-lo. O segundo livro de Castaneda, Uma Estranha Realidade, descreve os esforços de Don Juan para induzi-lo a “ver” com a ajuda do fumo de cogumelo. Viagem a Ixtlan¸ apesar de recontar muitas experiências no deserto anteriores à sua introdução ao peiote, datura e o cogumelo, lida com o segundo estágio: “ver” sem as drogas.

A dificuldade, diz Castaneda, “está em aprender a perceber com todo seu corpo, e não apenas com seus olhos e a razão. O mundo se torna uma correnteza de eventos tremendamente rápidos e únicos. Então você deve preparar seu corpo para fazê-lo um bom receptor; o corpo é consciente, e deve ser tratado impecavelmente”. Mais fácil dizer do que fazer. Parte do treino exige uma sintonia concentrada, detalhada, e mesmo religiosa, com o sentido do deserto, com seus animais e pássaros, sons e sombras, com as mudanças de seus ventos, e os locais onde um xamã pode confrontar suas entidades espirituais: pontos de poder, buracos ou abrigos. Quando Castaneda descreve seu aprendizado como caçador e colhedor de plantas, aprendendo sobre as propriedades das ervas e as ciladas para coelhos, a narrativa é absorvente. Don Juan e o deserto o tornam apto, esporadicamente e sem drogas, a “ver” ou, nas palavras de um yaqui, “parar o mundo”. Mas tal estado de interpretação da experiência livre confunde a descrição mesmo para aqueles que acreditam que Castaneda fala sinceramente.

SÁBIOS. Nem todo mundo pode, faz ou quer. Mas em alguns locais o trabalho de Castaneda é admirado extravagantemente como uma revivificação de um modo de cognição que foi bastante negligenciado pelo Ocidente, soterrado pelo materialismo e pelo desespero de Pascal, desde a Renascença.  Mike Murphy, fundador do Instituto Esalen diz: “O essencial das lições que Don Juan tem a ensinar são aquelas lições eternas, que foram ensinadas pelos grandes sábios da Índia e os mestres espirituais da modernidade”. O autor Alan Watts argumenta que os livros de Castaneda oferecem uma alternativa tanto para o judaico-cristianismo cheio de culpa quanto para os pontos de vista cego dos homens mecanicistas: “O estilo de Don Juan leva o homem para algo central e importante. Não nos separar da natureza nos põe de volta a uma posição de dignidade”.

Mas estes reconhecimentos e analogias não validam, de forma alguma, a proclamação mais mundial da importância dos livros de Castaneda: a sutileza de que são a consideração antropológica, específica e confiável de um aspecto da cultura indígena do México como mostradas pela fala de uma pessoa, um xamã chamado Juan Matus.  Esta prova depende da credibilidade de Don Juan como criatura e Castaneda como testemunha. Ainda que não haja corroboração, além dos escritos de Castaneda, de que Don Juan tenha feito o que ele disse que fez, e mesmo que tenha, afinal de contas, existido.

Desde que os Ensinamentos apareceram, candidatos a discípulos e turistas da contracultura têm viajado para o México atrás do velho homem. Alguém poderia esperar a Primeira Convenção dos Procuradores de Don Juan no QG do Bar dos Brujos do Hotel Mescalito. Jovens mexicanos estão animados com o fato de que os livros de Castaneda sequer podem ser lançados lá em tradução espanhola. Um estudante mexicano que está procurando por conta própria Don Juan disse: “Se os livros forem lançados, a busca por ele pode se tornar facilmente o estouro de uma corrida para o ouro”.

Castaneda afirma que seu mestre nasceu em 1891 e sofreu com a dispersão dos yaquis por todo o México desde a década de 1890 até a revolução de 1910. Seus pais foram mortos por soldados. Ele então se tornou nômade. Isto ajuda a explicar porque os elementos da feitiçaria de Don Juan são combinações de crenças xamanísticas de diferentes culturas. Alguns deles não são, de forma alguma, representativos da cultura yaqui. Muitas tribos indígenas, como os huichols, usam o peiote ritualmente, tanto ao norte quanto ao sul da fronteira. Algumas numa mistura sincrética do Cristianismo e do xamanismo. Mas os yaquis não são usuários de peiote. Don Juan, portanto, pode se tornar difícil de encontrar, porque sabiamente se afasta de seus admiradores inconvenientes. Ou talvez seja um índio mestiço, uma colagem de outros. Ou pode ser um xamã puramente fictício criado por Castaneda.

As opiniões divergem larga e apaixonadamente, mesmo entre os admiradores mais profundos dos escritos de Castaneda. “É possível que todos esses livros sejam não-fictícios?”, pergunta o romancista Joyce Carol Oates candidamente. “Eles me parecem excelentes trabalhos de arte num tema parecido com o de Hesse, da iniciação de um jovem em ‘outros modos’ de realidade. Eles são admiravelmente construídos. O personagem de Don Juan é inesquecível. Existe uma motivação novelística, crescente, repleta de suspense, e uma gradual revelação do personagem”.

GULLIVER. É verdade, a leitura dos livros de Castaneda é como um Bildungsroman altamente orquestrado.  Mas os antropólogos se preocupam menos com a excelência literária do que com a ilusão do xamanismo, assim como com a sua aparente desconexão com os yaquis. “Eu acredito basicamente que o trabalho tem um alto grau de imaginação”, diz Jesus Ochoa, chefe do museu de etnografia do Museu Nacional de Antropologia do México. O Dr. Francis Hsu da Universidade do Noroeste repreende: “Castaneda é uma nova moda. Eu gostei dos livros da mesma maneira que das viagens de Gulliver”. Mas os colegas veteranos de Castaneda na UCLA, que deram o PHD por Ixtlan ao seu antigo estudante, discordam: Castaneda, como um professor colocou, é um “gênio nato”, para o qual a rotina oficial e o lenga-lenga burocrático são desconsiderados; sua confiabilidade como testemunha não é posta em questão.

De qualquer forma, no mínimo é óbvio que “Don Juan Matus” é um pseudônimo usado para proteger a privacidade de seu professor. A necessidade de ser inacessível e esquivo é um tema central dos livros.  Mais de uma vez Don Juan encoraja Castaneda a segui-lo e livrar-se não apenas das rotinas diárias, com sua percepção estúpida, mas também do próprio passado. “Ninguém sabe minha experiência pessoal”, explica o velho homem em Ixtlan. “Ninguém sabe quem eu sou ou o que faço. Não apenas eu... ou nós tomamos tudo como certo e real, ou não. Se seguirmos o primeiro caminho, nos entediamos até a morte conosco mesmos e com o mundo. Se seguirmos o segundo e apagarmos a história pessoal, criamos uma névoa em torno de nós, um estado muito misterioso e excitante”.

Desafortunadamente para qualquer um que esteja ansioso para ter garantias acerca da vida de Castaneda, o aprendiz de Don Juan tomou a lição muito cuidadosamente. Depois que os Ensinamentos tornaram-se um bestseller underground, muito se supôs que seu autor era o El Freako da Academia do Ácido, adornado com peles e olhos de pebolim, e com seu cérebro sendo um labirinto corroído iluminado por misteriosos alcalóides, viajando sobre o deserto com um corvo em sua cabeça. Mas Castaneda significa bosque de castanhas, e o homem se parece pouco com uma castanha: um robusto e cortês latino-americano, de 1.65 de altura e 68kg e aparentemente encorpado por vitaminas. O cabelo escuro e crespo é cortado curto, e os olhos brilham umedecidos e atenciosos. No vestuário, Castaneda é tradicional a ponto de passar desapercebido, cobrindo-se ou com paletós de negócios escuros ou com calças Lee esportiva do tipo Trevino. Seu adorno são as palavras, que escorrem dele num fluxo incessante, auto-irônico e fascinante. “Oh, eu sou um mentiroso!”, ele gargalha, abrindo suas mãos calosas e curtas. “Oh, como eu gosto de espalhar besteira por aí!”.

NÉVOA. Castaneda diz que não fuma e não bebe destilados; não usa maconha; e mesmo café o desagrada. Diz que não usa mais peiote, e sua a única experiência com drogas foi aquela com Don Juan. Seu encontro com a cultura do ácido foi improdutivo. Convidado em 1964 para uma festa em East Village em que estavam presentes luminares como Timothy Leary, ele simplesmente achou o papo absurdo: “Havia crianças entregues a revelações incoerentes. Um feiticeiro toma alucinógenos por uma razão distinta da cabeça, e após chegar onde queria, ele para de tomá-los”.

A apresentação de si mesmo de Castaneda como Sr. Certinho, deve-se notar, não podia ser melhor planejada para contrariar aqueles que buscam saber sua história pessoal. O que, de fato, está por trás de tudo? O Castaneda “histórico”, antropólogo e aprendiz de xamã, começa quando ele encontra Don Juan em 1960; os livros e sua carreira bem documentada na UCLA contam na sua vida a partir essa data. Antes disso, a névoa.

Estando durante muitas horas com Castaneda em algumas semanas, a correspondente da TIME, Sandra Burton, o achou atraente, solícito e convincente “até um certo ponto”, mas bastante firme em avisar que ao falar de sua vida pré-Don Juan, poderia  trocar nomes, lugares e datas sem, entretanto, alterar a verdade emocional sobre sua vida. “Eu não menti nem inventei”, disse a ela. “Inventar seria voltar atrás e não dizer nada ou dar as certezas que todos buscam”. À medida que a conversa prosseguia, Castaneda mostrou várias versões de sua vida, que continuaram mudando quando Burton mostrou a ele o fato de que muitas de suas informações não batiam, emocionalmente ou de qualquer outra forma.

De acordo com ele, Castaneda não é seu nome original. Ele nasceu anonimamente, disse, numa “bastante conhecida” família de São Paulo, no dia de Natal, em 1935. Seu pai, que depois se tornou um professor de literatura, tinha 17 anos, e sua mãe 15. Como seus pais eram tão imaturos, o pequeno Carlos foi encaixado para ser criado pelos avós maternos numa granja de galinhas no interior do Brasil.

Quando Carlos tinha seis anos, a história continua, seus pais tomaram a criança de volta, e o trataram com uma afetuosidade cheia de culpa. “Foi um ano infernal”, ele diz sem rodeios, “porque eu estava vivendo com duas crianças”. Mas um ano depois sua mãe morreu. O diagnóstico médico foi de pneumonia, mas os Castanedas eram indolentes, uma condição de indolência adormecida, que ele acredita ser a doença cultural do Ocidente. Ele fala de uma lembrança emocionante: “Ela era amorosa, muito bonita e insatisfeita, um ornamento. Meu desespero era que eu queria fazer alguma coisa por ela, mas como ela podia me ouvir? Eu tinha apenas seis anos...”

Castaneda foi então deixado com seu pai, uma figura imprecisa que ele cita nos livros com um misto de ternura e piedade disfarçando o desprezo. A fraqueza de vontade de seu pai é o contrário da “impecabilidade” de seu pai adotivo, Don Juan. Castaneda descreve os esforços do seu pai de tornar-se um escritor como uma farsa de indecisão. Mas acrescenta: “Eu sou meu pai. Antes de encontrar Don Juan, passaria anos apontando meus lápis, e então pegaria uma dor de cabeça cada vez que sentasse para escrever. Don Juan me ensinou que isso é estúpido. Se você quer fazer uma coisa, faça impecavelmente. Isto é tudo que importa”.

Castaneda foi posto numa “muito apropriada” escola de Buenos Aires, Nicolas Avellaneda. Ele conta que permaneceu lá até fazer 15 anos, aprendendo o espanhol (ele também fala italiano e português) com o qual posteriormente entrevistaria Don Juan. Mas ele tornou-se tão incontrolável que um tio, o patriarca da família, o colocou numa família adotiva em Los Angeles.  Em 1951 mudou-se para os EUA e se alistou no segundo grau de Hollywood. Formando-se cerca de dois anos depois, tentou cursar escultura na Academia de Belas Artes de Milão, mas “Eu não tinha a sensibilidade ou abertura de espírito para me tornar um grande artista”. Deprimido, em crise, ele voltou para Los Angeles e começou um curso de psicologia social na UCLA, se transferindo depois para o curso de antropologia. Ele diz: “Eu realmente lancei minha vida através da janela. Disse a mim mesmo: se algo deve funcionar, deve ser algo novo”. Em 1959 mudou seu nome oficialmente para Castaneda.

BIOGRAFIA. Esta é a autobiografia de Castaneda. Ela cria uma consistência elegante. O impetuoso jovem mudando de seu pano de fundo acadêmico numa cultura européia exausta e provinciana para a revitalização através de um xamã; o gesto de abandonar o passado para desembaraçar-se de lembranças debilitantes. Infelizmente, nada disso é verdade.

Entre 1955 e 1959 Castaneda estava cadastrado, com esse nome, com uma especialização pré-psicologia no Colégio da Cidade de Los Angeles. Seus estudos nas artes liberais incluem, em seus primeiros dois anos, dois cursos em escrita criativa e um em jornalismo. Vernon King, seu professor em psicologia criativa no CCLA, ainda tem uma cópia dos Ensinamentos com a dedicatória “Para um grande professor, Vernon King, de um de seus estudantes, Carlos Castaneda”.

Mais do que isso, registros de imigração mostram que Carlos Cesar Arana Castaneda realmente entrou nos EUA, em São Francisco, no ano que diz que entrou, em 1951. Este Castaneda também tinha 1.65m e pesava 64 kilos e veio da América Latina. Mas ele era peruano, nascido no Dia de Natal, em 1925, na antiga cidade inca de Cajamarca, o que faz com que ele tenha 48 anos, e não 38, neste ano. Seu pai não era um acadêmico, mas um ourives e relojoeiro chamado Cesar Arana Burungaray. Sua mãe, Susana Castaneda Navoa, morreu quando Carlos tinha 24, e não seis anos. Seu filho passou três anos no ensino médio na escola local e então se mudou para Lima em 1948, quando se formou no Colegio Nacional de Nuestra Senora de Guadalupe. Então estudou escultura e pintura não em Milão, mas na Escola de Belas Artes de Peru. Um de seus colegas ali, Jose Bracamonte, se lembra do seu amigo Carlos como alguém esperto e cheio de recursos, que vivia basicamente de jogos de azar (cartas, jóquei, dados) e guardava com obsessão o desejo de mudar-se para os EUA. “Nós todos gostávamos de Carlos”, lembra Brecamonte. “Ele era brilhante, imaginativo, animado, um grande mentiroso e um verdadeiro amigo”.

IRMÃ. Castaneda escrevia para casa esporadicamente, pelo menos até 1969, o ano em que Don Juan veio à tona. Sua prima Lucy Chavez, que foi criada com ele “como uma irmã”, ainda guarda suas cartas. Elas indicam que ele lutou no exército norte-americano, e o deixou após sofrer um ferimento leve ou “choque nervoso”. Lucy não tem certeza sobre isso. (O Departamento de Defesa, entretanto, não tem nenhum registro do serviço de Carlos Arana Castaneda).

Quando a TIME confrontou Castaneda com estes detalhes como o período e a transposição da morte de sua mãe, Castaneda ficou opaco. “Os sentimentos de alguém sobre sua mãe”, declarou, “não dependem da biologia ou do tempo. Parentesco como sistema não tem nada a ver com sentimentos”. A prima Lucy lembra quando a mãe de Castaneda morreu, ele ficou estupefato. Recusou-se a comparecer no funeral, trancando-se num quarto por três dias sem comer. E quando saiu anunciou que estava saindo de casa. Apesar disso a explicação de Castaneda sobre suas mentiras é ao mesmo tempo perfeita e totalmente esquiva: “Me pedir para confirmar minha vida dando-me minhas estatísticas”, diz, “é como usar ciência para validar feitiçaria. Rouba do mundo sua mágica e faz a todos nós nos afastarmos do ponto”. Em resumo, a programação de Castaneda pretende um absoluto controle sobre sua identidade.

Muito bem. Mas onde uma licença poética, a “auto-representação artística” que o programa de Castaneda pretende, termina? Enquanto os livros vendem-se aos montes, a resistência aumenta. Três paródias de Castaneda apareceram nas revistas de Nova York, e depois papers indicando que a crítica prepara-se para taxar Don Juan como uma espécie de Ossian antropológico, aquele lendário poeta gaélico do terceiro século cujos trabalhos James Macpherson fraudou no século XVIII para os leitores britânicos.

Os fãs de Castaneda não devem assustar-se, no entanto. Uma estranha justificativa pode ser dada afirmando-se que os livros sobre Don Juan estão num nível diferente de honestidade do que o passado pré-Don Juan de Castaneda. Por exemplo, qual é o motivo de um erudito acadêmico trazê-lo à tona? Os Ensinamentos foram submetidos a uma editora universitária e surpreendentemente projetou-se para o sucesso de vendas. Além disso, ganhar um grau acadêmico da UCLA não é algo tão difícil para que um candidato empregue uma confabulação tão vasta apenas para evitar a pesquisa. Uma pequena fraude, talvez, mas não um sistema inteiro à maneira dos Ensinamentos, escrito por um estudante desconhecido, a princípio, sem esperanças de sucesso comercial.

Porque esta era a situação de Castaneda no verão de 1960: um jovem estudante peruano com ambições limitadas. Não há motivos para dúvidas de seu testemunho de como seu trabalho começou. “Eu queria entrar na graduação e fazer um bom trabalho para ser um acadêmico e sabia que se tivesse oportunidade de publicar um paper pequeno precocemente, eu o faria”. Um de seus professores na UCLA, Clement Meighan, o influenciou a se interessar por xamanismo. Castaneda decidiu que o campo mais fácil seria etnobotânica, a classificação das plantas psicotrópicas usadas pelos feiticeiros. Então apareceu Don Juan.

As visitas para o sudoeste e o deserto mexicano gradualmente se tornaram a espinha dorsal da vida de Castaneda. Impressionado com seu trabalho, o grupo da UCLA encorajou-o. O professor Meighan lembra: “Carlos era o tipo de estudante que um professor espera”. O professor de sociologia Harold Garfinkel, um dos pais da etnometodologia, deu a Castaneda estímulos constantes e duras críticas. Depois da primeira experiência com peiote (agosto de 1961), Castaneda apresentou a ele uma longa “análise” de suas visões. Garfinkel disse: “Não explique para mim. Você não é ninguém. Apenas me fale diretamente e em detalhes o jeito que aconteceu”. A riqueza de detalhes era tudo na parceria. O perplexo estudante passou anos revisando sua tese, vivendo de trabalhos estranhos como motorista de táxi e garoto de entregas, e mandou para ele novamente. Garfinkel continuou sem se impressionar. “Ele não gostou do meu esforço para explicar o comportamento de Don Juan psicologicamente. “Você quer ser o queridinho em Esalen?”, perguntou. Castaneda reescreveu a tese pela terceira vez.

Assim como as várias versões da vida de Castaneda, os livros eram um convite para a consideração de visões contraditórias da verdade. No centro de seus livros e do método de Don Juan estava, é claro, a hipótese de que a realidade não é algo absoluto. Ela vem para cada um de nós culturalmente determinada, altamente pré-concebida. “O mundo se torna coerente pela nossa descrição dele”, argumenta Castaneda, repetindo Don Juan. “Desde o momento do nascimento, o mundo está sendo descrito para nós. O que nós vemos é apenas uma descrição”.

MULTIUNIVERSO. Em resumo, o que o homem toma como realidade, assim como suas noções das possibilidades racionais do mundo, é determinado pelo consenso, por um contrato social que varia de cultura para cultura. Através da história, a coisas tem sido dura para qualquer pessoa que questionar sua larga reprodução, especialmente se, como Castaneda, tenta persuadir os outros a aceitar sua própria visão.

Antropologia, por sua natureza, lida com diferentes visões, e, portanto, com realidades literalmente diferentes, em diferentes culturas. Como nota Edmund Carpenter, colega de Castaneda no Colégio Adelphi, “Nativos tem muitas realidades diferentes. Eles acreditam num multiuniverso, ou biuniverso, mas não num universo como nós acreditamos”. Ainda que esse relativismo erudito seja indigesto para muitas pessoas que gostam de assegurar-se que existe apenas um mundo e que a “validade” de interpretação de uma cultura deve ser medida apenas contra essa norma. Qualquer mito, eles diriam, pode convenientemente ser visto como uma forma embrionária do que o Ocidente chama de história linear, uma dança da chuva é apenas um meio “ineficiente” de fazer o que um semeador de nuvens faz bem.

Os livros de Castaneda insistem em uma outra forma. Ele é eloqüente e convincente em explicar como é inútil explicar ou julgar outra cultura nos termos das categorias particulares de sua própria. “Suponhamos que haja um antropólogo Navajo”, ele diz. “Seria muito interessante convidá-lo a estudar-nos. Ele poderia perguntar questões extraordinárias, como ‘quantos no seu grupo de parentesco foram enfeitiçados?’. Esta é uma questão tremendamente importante nos termos dos Navajos. E é claro, você diria ‘Eu não sei’ e pensaria ‘que questão idiota’. Enquanto isso, o Navajo está pensando ‘Meu deus, que ser rastejante! Rastejante e primitivo!’”

Inverta os papéis, argumenta Castaneda e você tem o típico antropólogo ocidental no trabalho de campo. “É infernal a quantidade de trabalho”, ele diz, referindo-se aos anos passados junto com Don Juan. “O que Don Juan fez comigo foi simples assim: ele estava fazendo seu grupo de feiticeiros disponível, preparando os passos necessários”. O Professor Michael Harne da Nova Escola de Pesquisa Social, amigo de Castaneda e uma autoridade em xamanismo, explica: “A maior parte dos antropólogos apenas fornece os resultados. Ao invés de sintetizar as entrevistas, Castaneda nos leva através do processo”.

Não são esses anos de estudos, mas sim a natureza da revelação que ele oferece que deixou Castaneda em apuro com os racionalistas. Para entrar no consenso sobre a realidade de outro homem, o seu próprio deve cair, e como ninguém pode abandonar facilmente sua própria descrição habitual, ela deve forçosamente ser quebrada. Os precedentes históricos, mesmo no Ocidente, são abundantes. Mesmo desde o mistério das religiões de êxtase da Grécia, nossa cultura tem sido continuamente desafiada pelo desejo de escapar de suas próprias propriedades dominantes: o linear, o categórico, o fixo.

O que quer que Castaneda seja – uma figura central na evolução da antropologia, como pensam alguns líderes acadêmicos ou apenas um novelista brilhante com conhecimento único do deserto e da sabedoria indígena, seus trabalhos devem ser considerados. E eles continuam. Neste momento, ele está terminando o quarto e último volume da série de Don Juan, Contos de Poder (4), programado para lançamento no próximo ano.

PONTO DO PODER. Ele pode apresentar, mais claramente do que nos primeiros três livros, o objetivo final dos dolorosos ensinamentos de Don Juan: um uso especial do antigo desejo de conhecer, apaziguar e, se possível, usar as misteriosas forças do universo. Neste propósito, a divisão do átomo, o pecado de Prometeu e a busca de Castaneda pelo “ponto do poder” perto de Los Angeles, tudo pode ser remotamente ligado. Um bom exemplo da mágica de Don Juan nos livros (fazendo Carlos acreditar que seu carro havia sumido, naquele momento) soa como a trapaça da corda do faquir que os gurus pensam ser estúpida. De todo modo, também, os livros comunicam um sentido primordial de um poder percorrendo o mundo, arrumando nossas percepções da realidade assim como fios de ferro sob um grande campo magnético.

O poder de um feiticeiro, Castaneda insiste, é “inimaginável”, mas a extensão que um aprendiz de feiticeiro pode esperar usar é determinada, entre outras coisas, pelo seu grau de compromisso. O uso total do poder só pode ser conseguido com a ajuda de um “aliado”, uma entidade espiritual que anexa-se ao aprendiz como um guia “de uma maneira perigosa”. O aliado desafia o aprendiz quando este aprende a “ver”, como Castaneda fez nos primeiros livros. O aprendiz pode se esquivar desta batalha. Porque se ele brigar com o aliado “como Jacó com o anjo” e perder, ele vai, nos termos ligeiramente obscuros de Don Juan, ser “sugado”. Mas se ganhar, seu prêmio será o “verdadeiro poder de entrar finalmente no mundo dos feiticeiros, quando todas as interpretações cessam”.

Castaneda alega ter se esquivado até agora de sua batalha final com um aliado. Ele admite enfrentar um conflito interno nesse assunto. Diz que às vezes se sente fortemente puxado para longe do mundo dos feiticeiros e de volta ao mundo ordinário. Ele tem um desejo real de ser reconhecido como escritor e antropólogo, e usar seu recém-adquirido poder da fama em publicar um livro atrás do outro para lançar luzes comunicáveis sobre outras realidades para os leitores famintos.

ÁPICE. Mais do que isso, como as maiores partes dos que experimentaram realidades diferentes e voltaram, ele parece ter problemas em voltar. De acordo com os livros, Don Juan o ensinou a abandonar os horários regulares “para trabalho e diversão” e mesmo em seu apartamento em Los Angeles ele come e dorme quando dá na telha, ou foge para o deserto. Mas seu trabalho de escritor é frequente e ocupa cerca de 18 horas por dia. Ele tem grande habilidade em evitar o público. Ninguém pode saber onde encontrá-lo a uma determinada hora do dia, ou do ano. “Carlos irá ligar para você de uma cabine telefônica”, diz Michael Korda, seu editor na Simon & Schuster “e dizer que está em Los Angeles. E então o operador vai cortar a ligação para cobrar mais, e ele se move e está em Yuma”. Seus poucos amigos próximos não dão um basta à sua inconstância porque são assistentes, mas em parte porque sua própria experiência é misteriosa e eles não sabem explicá-la. Ele teve uma namorada, mas nem mesmo seus amigos sabem seu sobrenome. Ele evita fotógrafos como a anunciadores de um desastre. “Eu vivo com este fluxo de pessoas muito estranhas que estão esperando uma palavra de mim. Elas esperam algo que eu não posso dar de forma alguma. Eu tive uma classe de alunos em Irvine que era bastante cheia, e parecia que eles estavam apenas esperando que eu explodisse”.

Em outros momentos ele parece decidido em se tornar um verdadeiro feiticeiro ou ser derrotado. “O poder cuida de você”, diz, “e você não sabe como. Agora eu estou na borda, e mudei todo minha forma. Escrever para ganhar o PhD foi meu feito, minha feitiçaria e agora estou no ápice de um círculo que inclui notoriedade. Mas esta é a última coisa que eu vou escrever sobre Don Juan. Agora eu me tornarei um feiticeiro de verdade. Apenas minha morte pode impedir isto”. É uma função romântica, esta gesticulação antropológica através de uma troca de entidades que, em outro tempo, poderiam serem chamadas de demônios. Será que Castaneda se tornará o Doutor Fausto de Malibu, atendido por um Mefistófeles de sombreiro? Fique ligado no próximo episódio. Enquanto isto, seus livros tornaram difícil para os leitores usar o termo primitivo com um ar condescendente de novo.

Notas

(1) No Brasil A Erva do Diabo. (N do T)

(2) Talvez Uma Outra Realidade ou Uma Realidade Diferente sejam soluções mais adequadas para o título. (N do T)

(3) Nos Estados Unidos, a publicação dos livros por vezes se divide em paperback e  hardback. (N do T)

(4) No Brasil, Porta Para o Infinito (N do T)


terça-feira, outubro 03, 2017

Loucura ou Criatividade? As divertidas colagens de Barry Kite


A arte abrange todos os tipos de personalidade, na medida em que ela não possui limites e nem gera preconceito. A diferença está nos olhos do espectador. Cada um tem seu próprio gosto e o que é fascínio para alguns, para outros pode ser uma grande aberração.

Com um estilo irreverente de paródia social e política, o artista Barry Kite ganhou vários prêmios de competição de arte, colocando seu trabalho em inúmeras coleções particulares e corporativas.

“Meu trabalho é baseado em imagens iconográficas encontradas na pintura, na fotografia e na mídia popular, inicialmente através de livros e revistas descartados, mas ultimamente pela internet”, diz ele.

Em suas colagens, Kite combina técnicas fotográficas aliadas à coloração de mão, criando artes surreais, que o artista considera sendo seus poemas visuais. O resultado? 

Bem, Monalisa e Van Gogh, em seus autorretratos, passaram a ter um caso, fumar, beber e farrear.

Donald Trump aparece de maneira curiosa e Barack Obama “delicadamente” ajuda um companheiro.

Para realizar este trabalho, o artista está em constante pesquisa, tanto por temas históricos, quanto pela atualidade. É assim que suas obras ganham vida própria.


Barry Kite possui um estúdio chamado Arte Aberrante (Aberrant Art). 

Suas obras podem ser encontradas em diversos formatos. 

Sua página no facebook contém centenas de poemas visuais. Vale uma boa zoiada!

















sábado, setembro 23, 2017

Eu conheço esse cara


Por Ivan Lessa

Estou na bica de mandar uma bala na minha cabeça.

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Tiro o caderno de capa verde, em espiral, do bolso. Anoto lá: 13.8.06. E a hora em que pousamos no Galeão: 17 e 20. São 28 anos, seis meses e sete dias sem dar o ar de minha graça. Ausência é palavra muito forte para a paisagem vista lá de cima.

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O aeroporto está vazio e, para mim, novinho em folha. Minhas malas são as primeiras a surgirem no carrossel. O Rio não costumava me dar esse tipo de colher de chá. Alfândega, receita, polícia, chamem do que quiserem, mas são todos muito solícitos, embora com a indiferença que afeta os pobres que têm de trabalhar no domingo.

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No carro, a caminho do hotel, vou não reconhecendo nada. O que é um ótimo ou um péssimo sinal. Num certo ponto do trajeto, um fedorzinho familiar. Agora, sim. Mais adiante, lá em cima, um marco: Manguinhos? Igreja da Penha? Tanto faz. Toda minha fé está nas paisagens.

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Estou em plena Linha Vermelha. Pergunto pela Amarela. Há anos leio horrores sobre ambas. Bato no bolso do paletó conferindo passaporte e carteira. Aguardo a pista bloqueada, os meliantes armados saltando da murada e dando início ao saque das 6 da tarde. Pergunto pelos traficantes da favela da Maré, que costumam fechar as pistas para atravessar carregamentos de drogas e armas. Ninguém sabe do que estou falando. Ninguém viu o filme. E as balas perdidas? Parece que no sábado uma ou outra pessoa achou duas ou três, informa um companheiro.

*

Não há bala perdida. Apenas desencontros.

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Olha aí, a paisagem continua impondo sua presença diante da equipe adversária: lagoa Rodrigo de Freitas. Quando publicitário, ajudei a vender muito apartamento com linhas mendazes: “Viva uma vida de luxo num recanto tranqüilo da Lagoa”. A mortandade trimestral de peixes ficava pelos arrastões das entrelinhas. Idem os ninhos de gaviões (até na Prudente de Moraes tinha), que atacavam residentes pacatos e, vez por outra, arrancavam seus olhos, como nas histórias de fadas. Continua bonitona a lagoa. Cresceu uns cinco ou seis andares.

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Amo hotel. Não conheço o Rio de hotel decente. As noitadas no — não citarei nomes — não contam. Aqui sou hóspede e não truão. Pelo menos até onde a criadagem (Nossa! Como tem criadagem nesta cidade. Voltarei ao assunto, se encontrar alguém alfabetizado e que conheça taquigrafia) é capaz de sacar ou dizer. Desfaço mala, chuveiro-me, vou para onde sou esperado por amigos.




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Quando me preparava para este pulo, peguei uma folha e comecei a escrever o nome de amigos e amigas que gostaria de rever. Preparava-me para encher ao menos um caderno de bom tamanho. Não chegaram a dez. Dou-me a desculpa de que morreram todos ou foram para Petrópolis ou Brasília. A verdade é que, mesmo morando nesta enorme (então bem menor) cidade, minha vida sempre se passou — a sério, para valer — entre uma dúzia de pessoas e outros tantos quarteirões. O resto era paisagem (ela de novo, sempre ela), pano de fundo, cenário para dar clima. Isso. O Rio era um clima. Ao menos, não me esborracho no lugar-comum do “Rio ser um estado de espírito”. Estado de espírito é agora, com sete mil homicídios anuais, onde antes só tinha Dana de Teffé, Crime do Sacopã, Caso Aída Cury, Fera da Penha e, essa última, sejamos francos, não podia ser mais classe operária. Pobre morria muito pouco e, mesmo em jornal vagabundo, com o mínimo de estardalhaço. Morriam feio, como sempre, mas baixinho. Agora, virou manchete. Pelo menos dura um dia só. Os dois jornais e 1/3 do Rio fazem aquele estardalhaço na primeira página e, dia seguinte, esquecem, não dão seqüência. Deve ser por isso que, até agora, com essa filmarada americana toda, não se conseguiu traduzir “serial killer” para, digamos, “assassino sequencial”.

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Mas eu estava entre os amigos, surpresa para uns, chatice para outros. Sim, estou bastante queimado. Sol de Cascais, no Estoril. Londres não dá para isso. Ninguém diz o que está pensando: “Como estamos acabados, meu Deus!”

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Procuro ser rápido no gatilho, que já o fui. Nada. Não me ocorre uma observação inteligente ou bon mot, conforme dois ou três ainda diziam, quando me mandei. Repito e ouço repetida a frase que nem por isso deixa de ser verdadeira: “Puxa, o tempo passa, hein?” E o coro, “É verdade, é verdade…”

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Na manhã de segunda-feira, maus amigos me levam à Visconde de Pirajá, dão-me refresco de açaí (aqui em Londres o indiano da esquina vende. É engarrafado e comercializado por uma indústria chamada “Monkee”) e, como o dia está bonito e beira os 28° neste inverno, decidem que devo ir à praia. Fazem com que eu compre uma sunga azul grotesca (de lycra, creio) e um par de havaianas, que os brasileiros juram ser invenção deles (não é). Depois de fuçar duas livrarias empostadíssimas, vou mudar de roupa na casa de um deles que, como todo mundo que é gente, mora na Vieira Souto, o metro quadrado mais caro do mundo, conforme gostam de se gabar os brasileiros (não é).

É biboca após biboca na Visconde de Pirajá. Todas aos urros, aos berros. Coisas escritas. Em acrílico, nos toldos. Farmácia, drogaria, butique. Não sabem, mas estão todas liquidando. Papai Noel ficou maluco, é hoje só amanhã não tem mais, salvados do incêndio. Isso, incêndio. Estão todas em plena conflagração comercial e não o sabem.

*

De sunga azul de lycra (o pissilone é indispensável) e havaianas, as ilegítimas, vou à praia. Ali por volta da Montenegro e Joana Angélica. Pela primeira vez na vida, acho, sem camisa com maço de cigarro e isqueiro no bolso. Olho para baixo e nada. Estou assexuado. Uma vergonha. Confesso-me ao companheiro e, dando um toque de erudição e humor, conto a história de Hemingway, que um dia cismou de botar roupa de toureiro e ir treinar numa tourada. Olhou para baixo e, tal como eu, neris de pitibiriba — e parece que Papa era bom de pitibiriba. A. E. Hotchener, seu amigo e mais tarde biógrafo, consolou o escritor: “Dominguín usava dois lenços, Hem.” Sem lenço, sem documento, mas nunca um Caetano, vou no meu doce balanço, caminho do mar.

Eu reconheceria esta areia em qualquer praia ou deserto do mundo. Primeiro, a relva tímida em torno dessa novidade dos quiosques. Depois, um ligeiro declive, areia pelando como psoríase, corridinha (ai!) até chegar àquela parte mais fina, varrida por ventos noturnos, onde se formam pequenas telhas, que, ontem, como hoje, dá para se ir arredondando até formar um biscoito com um furo no meio e, então, jogar nos outros meninos. Não faço isso porque tenho medo de apanhar. Por fim, a areia fofa, revirada por maquinário especial todas as noites (e os namorados?), assegura-me o companheiro. Faço-me croquete em dois segundos. Talvez seja a falta de lenços.

Eu reconheceria esta água em qualquer praia do mundo. Deixo-me afundar um pouco, já que o tempo do mergulho se foi, sinto o sal na boca e na narina, conto nas pernas as camadas da água. Uma mais fria até o tornozelo, depois mais morna perto das coxas, mais fria de novo na cintura. Não fico dez minutos na água.

Uma senhora tomou conta de minhas havaianas, as fajutas, e das chaves do companheiro. Um nordestino traz a água de coco com canudinho para a gente tomar. Gozado, eu só passei a apreciar, para valer, água de coco em Londres, onde só tem, quando tem, industrializada.

Cadê as bundudas? Cadê o arrastão?

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De tarde, acertando os fusos horários no hotel, vou ao caderno verde em espiral e hieroglifo uma outra pequena dúvida. Há um problema aqui e pela proa: o que fazer com estes dias? Onde botá-los depois? Foto não me diz nada. Confio tanto em palavra escrita quanto em nossa Constituição. Não tenho mais tempo para esquecer mais coisas.

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Há uma técnica para se deixar o país em que se nasceu, não chega a ser arte. Simples como o quê: seguir em frente e não olhar para trás, feito a mulher de Lot ou Orfeu. É imprescindível não recorrer nem à Bíblia (tem uma na gaveta da cabeceira) nem à poesia. Principalmente poesia. Em prosa, não contam Proust (com exaltado fervor), Fitzgerald, Thomas Wolfe, retratos de Itabira na parede e até o melhor e menos citado, Camões, que, em português de seus dias, e nossos ainda, escreveu, “a grande dor das coisas que passaram”. Via mais com um só olho o grande vate português do que nós com todos três.

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Confiro o frigobar, mexo em todos aqueles vidrinhos no banheiro, apalpo o exagero de toalhas e roupão de velour, abro a sacola de praia com suas recomendações antiassalto e subseqüente morte. Ligo e desligo a televisão. Estão todos tentando falar português e não conseguindo.

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Dizem as moças ancoradas a seus âncoras na televisão: “Pois é, Cláudio…”, “É isso mesmo, Fernandes…” Estão improvisando, dando naturalidade, interagindo, disseram para elas. Sempre e sempre pondo a ênfase na palavra errada, em geral um pronome possessivo. As âncoras começam a entrevistar autoridades como a prostituta — ou prostituto, estava escuro — no Jardim de Alá, “O Senhor quer fazer um amorzinho legal?” “São apenas 50 reais, senhor” Ô Senhor! O gênio da língua pede algo diferente, senhor nunca no fim ou no começo da frase. Isso é dublagem, sô! Um pouco mais de intimidade e é “seu” mesmo. “Seu” Manuel, quer fazer um amorzinho legal por 10 reais?, conforme se pergunta para o dono do armazém.

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Bengalo-me por um ou dois quarteirões da Vieira Souto. O verbo “bengalar” não existe, mas eu uso uma bengala e, como estou no Brasil, passa a existir. Aqui se inventa, aqui se dá asas ao homem, aqui se planta, aqui se dá. Mas eu me bengalava. Pego um táxi. Sugiro uma volta pela praia com voz tristonha de manco (para que não me assalte e mate), mesmo sentado no banco de trás. Peço que vá devagar. De onde dá para se ir, no Arpoador, aquele edifício pó de pedra, que era o único que driblava o gabarito de quatro andares (isso, como tudo mais, nunca ficou claro), até a subida para a Niemeyer, é uma jaula só. Pobres ricos, pobres elites, pobres classes dominantes: tudo vivendo atrás de grades, guardadas por nordestinos incompetentes com calça azul-marinho e camisa branca puídas. Visualizo as classes abastecidas, à noite, uivando em seu cativeiro. Os porteiros fingindo não ouvir, afiando suas peixeiras.

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Teve o muro de Berlim, há a menos divulgada muralha erguida por Israel e a ainda mais invisível Barreira da Orla Marítima Carioca. À noitinha, camionetas (chamam agora de “van”) passam pela Vieira Souto e Delfim Moreira e gritam nomes, para mim cabalísticos, que serão amanhã documentários e filmes premiados com palmas, leões de ouro e oscars: “Cunhataí, Serependi, Nove Cabeças, Xerebendim” e por aí afora. Tem gente, ou quase gente, entrando e indo. Parece que é a outra parte da vida deles. Parecem palestinos com sua trabalheira para — inevitável a construção verbal — irem trabalhar.

*

Tenho que ter em mente duas ou três coisas que fazem parte deste meu périplo. Primeiro, que todo suicida volta ao local onde, indigitado e tresloucado, ateou fogo às próprias vestes. Segundo, que tudo que eu escrever poderá ser usado contra mim. Ainda, que aqui não reconheço nada e nada faz questão de me reconhecer ou conhecer.

*

Qualquer pessoa com seus quarenta anos, não tem nada a ver comigo, nada terá a ver comigo, nestes dez rápidos dias. Quem tinha doze anos, ou por aí, quando peguei a Avenida Brasil e segui para o Galeão, é de uma nacionalidade outra, beira o alienígena. Meu negócio são cabelos brancos.

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Deve ser por isso que paro e olho para trás, ou para o outro lado da rua, quando vejo alguém de cabelos brancos. Digo alto, sozinho ou para quem quiser me ouvir:

— Eu conheço esse cara.

*

Sempre no táxi, anoto algumas frases para logo mais no caderninho verde em espiral. Não há, neste passeio, esquina ou canto em que eu não tenha sido brutalmente infeliz ou estupidamente feliz. Em algum lugar alguém deve ter escrito que uma cidade é aquilo que dela se resolveu ver ou lembrar. Também que não é que a gente se lembre da cidade, é uma parte misteriosa e calada da cidade que se lembra da gente, mas finge que não, que não é com ela, que não sabe nada de nós.

E eu que tinha jurado para mim mesmo e meus patrocinadores que não tentaria em linha nenhuma ser “interessante”. Perdão, patrocinadores. Perdão, chofer de táxi. Por penitência, resolvo citar, atravessando o sinal verde do lugar-comum, uns versos do Borges: “Y la ciudad, ahora, es como un plano de mis humillaciones y fracasos.” E cuidado que ainda vem Jorgito por aí.

*

Eu: “Casa da Feijoada”, “Delícia Tropical”. Tá certo. São nomes nossos, são nossos nomes. Agora, que frescura é essa de “Doncaster, “Nero´s Palace”, “Desir d’Argent”?

Chofer de táxi: O senhor é um nacionalista, estou certo?

Eu: (com medo de muita intimidade) Mais ou menos. Depende da nação.

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Na praia, para um moleque, pegando uma água de coco num quiosque, talvez minha 34ª em três dias:

Eu: Ei, garoto!

Garoto: Quequiqué?

Eu: Você é de assalto ou de drogas?

Garoto: Os dois.

Eu: (fechado em copas) Faz muito bem, meu filho. — E me mando.

*

Essas minhas duas conversações mais interessantes em dez dias. Teve também uma apenas telefônica com a Clementina, empregada (gozado essa palavra me insulta um pouco) do Jaguar. O papo foi pessoal demais e não estou autorizado a reproduzi-lo sob qualquer forma.

*

Gozado. A gente vê aquele Cristãozão lá no morro, o mar, as ilhas, o verde todo e, mentalmente, como um elevador, vamos fazendo uma musiquinha enlatada interna. Em geral, “Aquarela do Brasil”, “Onde o Céu Azul é Mais Azul”, “Corcovado”, “Garota de Ipanema”, “Rio de Janeiro”, “Valsa de uma Cidade”, por aí. Para ser franco, nada descreve melhor o Rio do que — quem diria? — o Aloysio de Oliveira, com música do Tom. “Inútil Paisagem”. Confiram:

Mas pra quê
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar
Pra quê
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem

Estou certo ou não estou certo? Certíssimo, claro, tira a paisagem e sobra aquilo que a gente — que vocês — sabem. De cartão-postal, plano geral e bandeja feita com asa de borboleta, não vale. Assim até Brixton, aqui em Londres, é páreo.




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E o tédio de tudo que passou, a chatice do passado? Essa não ocorreu a nosso querido Marcel, que, mais uma vez, dormiu demais, acordou quando já era noitinha. O passado é meio ridículo. Feito aqueles filmes mudos, granulados, coberto de riscos. As pessoas andando pra cima e pra baixo em passo acelerado, os homens de bigodinho, tirando e pondo o chapéu, olhando para a câmera, dizendo coisas ininteligíveis. Tudo pronto para cair de bunda no chão.

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Muita força para achar graça no que me cerca. Eu fui, olhei para trás e me transformei numa “estáltua” (como dizem os teleatores) de paçoca. Agora chove, venta, troveja e tanto meu projeto “Aquarius” quanto o do maestro Isaac Karabtchevsky foram para as picas. Desmilinguo-me no ar condicionado do quarto de hotel diante das Cagarras, nós dois, que nos vimos tanto e até hoje não nos cumprimentamos.

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Cumprimento, subindo a Niemeyer, em perigoso passeio noturno, o portão da casa de Elis, quando ela estava casada com Ronaldo Bôscoli e, aos domingos, expulsava da casa, aos berros, quem estivesse puxando um fumuzinho legal, conforme se dizia. Como subiu gente! E continuamos a subidinha cautelosa.

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De noite, na Vieira Souto, esperando um amigo, sempre de carro e com ar condicionado (ninguém sente calor. Sente-se é assalto) ouço um baita ruído, meio trovão contido, em nada familiar. Logo me dou conta: foi o Vidigal que avançou mais dez centímetros.

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No boteco, pela segunda vez, para as empadinhas. Só então me dou conta, fora buteco mesmo, daqueles com U, balcão para a cachaça, duas mesas de mármore barato e havia, pregado na parede, um telefone. Queria ter um pastel de ar por telefonema dado depois de meia-noite  para uma jovem senhora que morava nas cercanias. Seu telefone tinha 8, tinha, 9 e tinha 0, que essas coisas, esses números a gente não esquece nunca, nunca, nunca. Era briga feia após briga feia, as pazes — não chamemos aquilo de pazes — feitas de madrugada. Às vezes, eu muito alto, não tinha peito para falar. Ela dizia para que eu viesse, que ela abria a porta da portaria. Eu caminhava o quarteirão e meio até a entradinha do pequeno edifício onde ela já me esperava. Só dei pela coisa de volta a Londres. Tenho um frio na barriga e uma porção de lugares-comuns pelo corpo de nosso cancioneiro e cheguei a botar na vitrola Elizeth cantando “Que é Que Vamos Dizer”, do Marino Pinto, que eu pedia para meu compadre, Mister Eco, botar mil vezes seguidas no som, para escarafunchar mais a coisa. Nem dá para chamar de ferida. Na época, com aquela idade, menos de trinta anos, devia ser bom. A uma certa altura, eu não tinha mais como distinguir a diferença. Borges ataca de madrugada e eu o parafraseio: numa certa faixa de disco, será sempre 1963.

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Domingo no Centro. Tudo fechado. Ninguém nas ruas. Meus cicerones não são daqui, não manjam porra nenhuma do Centro. Querem me mostrar a Colombo. Expliquei que está fechada, como o resto. Fomos assim mesmo. Nada mais desolado no mundo. Eu ia dizer que estava saigonizada a cidade, mas Saigon, pomba, se estourou toda, mas saiu vitoriosa de não pouca bosta. Vamos errando caminho por caminho. Pude constatar mais uma vez a destruição do Palácio Monroe pelo Geisel, que parece agora que é “Sacerdote” ou “Feiticeiro”. Bobagem da turma. Chama tudo de “Açougueiro” e “Carniceiro” e façamos as pazes com a realidade.

Apesar de eu explicar direitinho onde fica a Gonçalves Dias, estamos na Praça Tiradentes e eu posso apontar curiosidades, o Recreio, o João Caetano, falar do Baile das Atrizes. Também passamos por Senhor dos Passos, sem restaurante árabe, e, bobeássemos, iríamos até a Aldeia Campista, Gamboa, por aí. Ninguém na rua. Estacionamos na Rio Branco onde deveria estar aquela galeria que eu não me lembro o nome. Na esquina de Ouvidor, um nordestino — sempre, sempre os nordestinos — com uma camiseta escrita “Fuck you!”, armado apenas de iPod, revela que a Colombo é aquele toldo azul lá embaixo. Muito chique, aliás.

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Ligo para a primeira namorada. Está divorciada. Combinamos nos ver. Em Cascais, achei fotos nossas tiradas em 1951. Sorridentes no Posto Seis, crentes que tudo ia acabar bem. De certa maneira, estávamos certos. Acabou e aqui estou eu, aqui estás tu, eu Joujou, tu Balangandãs.Tirei cópia de todas fotos e trouxe num envelope pardo. Passados 55 anos, falamos calmamente um com o outro, sem sentimentalismos, sem aflições. Somos a coisa mais natural desse mundo, só que 55 anos mais velhos. Marcamos encontro no bar do hotel, meio da tarde. Tomamos refresco de morango. Eu, dois, para não perder a fama de exageradão. Falamos de coisas normais, gentes normais. Nada mais nos espanta. Nenhuma hora da saudade. Apenas o inegável prazer de nos vermos. Por menos de hora e meia. Ocorre-me um dado fantástico. Digo para ela nos imaginar, em 1951, falando sobre os acontecimentos passados há 55 anos, lá por volta de 1897. Estaríamos então discutindo Canudos e a morte ainda recente de Antônio Conselheiro. É a única maneira de se contar o tempo, de se usar um calendário de verdade. Ir à história para valer.

Rimos do susto.

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Por sobre as nossas cabeças brancas, duas fadinhas, feito aquela do Peter Pan, a Sininho, jogam peteca na beira da água do Posto Seis. Riem, em seus maiôs de duas peças, e aumentam a velocidade do ritmo do jogo, que é disputado com aquela peteca formada de várias camadas de borracha redonda, com algumas penas amarelas em cima. E nos despedimos, os quatro. A gente se vê. Afinal, eu tenho em casa os discos de Jacob do Bandolim, Jorge Veiga e tudo que pude de Sílvio Caldas. “Todo mundo chorou de saudade, todo mundo menos eu.” Ah, sim, a gente se vê. Se vê.

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Mataram, no meio da semana, um rapaz português em frente a um hotel que agora fica onde era o Cine Rian, que é Nair ao contrário. O rapaz levou a sacola do hotel anunciando-se turista. Levou uma peixeira no estômago. Deu um dia no jornal. No outro, sumiu. Feito sumiu o assalto e a morte de um procurador na avenida Brasil, uma ou duas semanas antes. Ambos não viveram mais que o tempo de uma manhã. Feito as rosas de um poema

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Tiro uma tarde para render homenagem às nossas estátuas. Começo no Leblon, com Zózimo Barroso do Amaral, o paletó pendurado em dois dedos de uma das duas (ou seriam três?) mãos. Um livro do lado simboliza a eternidade de seu pensamento e sua obra. Em seguida, passo por Drummond, na beira da praia, de costas para o mar. Deveriam é ter botado (ou colocado, conforme enfiam agora) na fila do ônibus da Francisco Sá, esquina de Conselheiro Lafayette, bem depois da cabrochinha que ia para a Central. O poeta com a expressão concentrada de quem já começou a bolar as candentes entrelinhas de sua coluna no JB condenando algumas das arbitrariedades (ao menos contra livro, pô!) do regime militar. Depois passamos pelo Ibrahim, agora de ouro, em praça própria, na semi-rotunda de quem vai entrar no Copacabana Palace. Ainda é perigoso fazer qualquer brincadeira com o Turco. Mesmo a salvo, em Londres, enfio o galho. A de Ary Barroso, a pessoa que dirige o carro se nega a me levar. Perigoso demais. Morei 100 metros adiante, na Ribeiro da Costa, quando eu é que era perigoso. Mas a melhor estátua, a que vai para o trono, a que ganha o troféu “Fernando Pessoa na Brasileira em Lisboa”, é a do Braguinha, o João de Barro, ainda vivo, compositor de milhares de sambas e marchas inesquecíveis, tais como “A Mulher do Fu Manchu”,”A Serpente do Faquir” e “Bandeira de Minha Terra”, todas três em parceria com Alberto Ribeiro.

Não entendo é por que não botam todos eles a cavalo. Afinal, estátua eqüestre é muito mais respeitada. Vejam só a do Marechal Deodoro.




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Mais uma vez, antes de me mandar, peço para ver os edifícios de nossa orla marítima. Quero guardar na retina e nos ouvidos o doudo vernáculo arquitetônico, por trás das grades, deblaterando em suas jaulas, falando em línguas. O preciso equivalente à menina do Exorcista, quando tomada pelo demônio Pazuzu. Edifícios que dão uma volta de 360º na cabeça, viram os olhos para dentro, ficam verdes, e vomitam na cara dos turistas. Alguém tem de ir e preparar um “coffee-table book” com eles. Sem esquecer daquele cara do Bar 20.

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Lá vão eles de novo pela Avenida Atlântica. Os vinte macaquinhos daquele episódio de “Os Simpsons”. Na vida real, são iguaizinhos aos retratados pelo Matt Groening. Os tambores de gasolina jamaicanos, sempre presentes, reforçam ainda mais a realidade dos fatos.

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Tardinha e vou encontrar, na velha Taberna Atlântica, o amigo que não vejo há sessenta anos. Tarde também para nós, velhos também. Passamos a nos falar apenas de alguns anos para cá. Email. Troca daqueles pequenos filmes, graças, gracinhas e graçoilas informáticas. Ele trouxe as fotos oficiais do colégio para os anos de 1944 a 1946. Lá estamos os dois, no meio de uma porção de outros meninos, nas três fotos dos três anos em que estávamos na mesma classe. No lusco-fusco (ô alegria de enfim usar a palavra de dois barris!), ele me aponta quem é quem e o que anda fazendo ou parou inteiramente de fazer. São os famosos dois dedos de prosa: o sinal da vitória dado na direção geral do tempo. Aqui estamos, ó Tempo, eu tomando a água de coco que ele teve a gentileza de ir pegar, logo em frente; ele pronto para entregar, de cor e salteado, a ficha técnica de toda uma leva dos anos 40. E você aí, Tempo, gaguejando a mesma coisa dia após dia.

Em sessenta anos, não trocamos tantas palavras quanto nos quarenta minutos em que estivemos juntos. O papo continuará por outros caminhos — cibernéticos, claro. A vitória sobre o Tempo — tome lá mais uma maiúscula, paspalhão! — é nossa e foi de lavagem.

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Fui prudente e não perguntei “Então, o que é que há de novo?”

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No quarto do hotel, o rapaz (do norte, ora se!) veio me deixar o bombom que, de certo por recato, deixa na mesa de cabeceira e não pousado no travesseiro. Como em outras oportunidades, despede-se com “um abraço, ‘seu’ Ivan”. Gosto da intimidade, prezo o “seu” em vez de “senhor”.

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Vou até a janela pegar os 180º de Arpoador a Leblon e ver se o Vidigal, aquele cágado gigantesco sofrendo dos efeitos da explosão atômica, como nos péssimos filmes de ficção científica, cresceu mais uns centímetros de ontem para hoje. Uns metros, seria o ideal. Lá estão as vans e suas falas cabalísticas. Nenhum ônibus da Favelastur. Não são bestas de fazerem excursão à noite. Só entre nove e duas da tarde. Um pouco mais à direita, a tenda branca que me confundiu há uns dias. Tinha uma bandeira do Brasil, que essas estão em toda parte, e uma da Itália. Perguntei ao companheiro se era jogo de vôlei ou sofríamos a visita de algum alto dignatário italiano, inaugurando novo restaurante metido a besta nas cercanias. O companheiro explicou que não era nada disso. Apenas uma forma que os hotéis da orla encontraram para não se chatearem com as prostitutas. Os encontros amorosos são marcados na tal tenda e a bandeira indica a nacionalidade, e, conseqüentemente, a língua, do freguês em potencial. Um “fucktur” paradão, por assim dizer. A bandeira da Itália tremula muito nas areias de Ipanema. Buona gente. Espero que não fajutem tanto quanto nos restaurantes arrogantes que melhor presença fariam na New Jersey de Os Sopranos.

E que paguem o que é justo a nossas jovens que se fazem passar por “demaiores”, fazendo-as assim um pouquinho mais felizes do que diante de, digamos, um ravióli de pato, ou um misto quente travestido de tramezzino.

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Dezessete amigos, nove ex-namoradas, 146 conhecidos, 48 parentes, 329 botecos, 112 restaurantes, 18 cinemas, e paro por aí, deprimido, fazendo a lista de perdidos, nestas quase três décadas. Preciso de um Lexotan. Preciso de muito Lexotan. Não vejo outra coisa a não ser gente, de minha intimidade ou não, tomando Lexotan. Isso me lembra o Zagallo e aquele campeonato do mundo, perdido também. Não sei se Zagallo entra na lista ou não. Amanhã pergunto a alguém, que, como é costume nosso, prazeroso me dará a notícia, caso calhe de ser infausta.

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Zapeio. Dei a sorte de pegar temporada de eleições. Vans de verde e amarelo nas ruas quase atropelando os macaquinhos dos Simpsons. Na televisão, tem o horário gratuito de campanha eleitoral. Surgem na tela, uns por um tempinho, outros por um tempão, uns homenzinhos estranhos, todos com sotaque nordestino, dizendo de forma enfática coisas incompreensíveis. Fosse na rua, daria uma gorjeta pra todo mundo e pediria que saíssem de minha frente. Parece que há um sistema aleatório de partidos. Siglas todas, ou quase todas, começando com P. Detenho-me num comercial filmado no antiqüíssimo cacoete do cinema verité. Trata-se de um homem, suponho que seja o candidato, num cenário paupérrimo, sendo argüido judicialmente. Esse pelo menos o que bolaram em matéria de “cenário” (roteiro, guión), conforme agora cismaram de escrever, dizer, chamar. São perguntas idiotas, sem pé nem cabeça, respondidas pelo, quero crer, futuro deputado, senador ou governador, que une sobriedade à sua inegável objetividade. No encerramento do comercial eleitoral gratuito, o candidato é mostrado como se flagrado às escondidas, conversando com um, suponho, cabo ou sargento eleitoral. “Então, como é que foi, Marcola?” E o futuro eleito, sem titubear: “Foi ridículo.” Tinha toda razão. Fora mesmo. Seu partido, se é que consigo decifrar direito o que garatugei aqui num recibo do “Bob’s”, é o PCC. Pena. Deve ser comunista.

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Eu falei em recibo do “Bob’s”. É mesmo, está aqui do meu lado olhando para mim. Este o cartão-postal que resolvi trazer comigo. Lá está, “Venbo comércio de Alimentos Ltda, rua Visconde de Pirajá, 463, loja a, Ipanema. 1 milk shake ovo, R$ 5.80.” Não, não é de ovo. É de Ovomaltine. Tomei uns quatro ou cinco na temporada. Justifica — e como! — o slogan da Venbo: Gostoso como eu gosto. Pena a decadência das instalações. Era todo de metal reluzente, gente muito limpinha e bem treinada servindo. Agora… Bem, deixa pra lá.

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Na banca de jornais, depois de mais um milk shake, este tamanho grande. Como temos jornais e revistas e nada, nada para se ler. Isso é que é vida. Sobrar tempo para os livros que vão empilhando em casa, hein? Jornal carioca eu adoro. Pego de manhã, na entrada do refeitório (é isso?) do breakfast (esse é isso) no hotel e rigorosamente estão lidos em cinco minutos os dois e 1/3. Nem dá para sujar as mãos. Até outro dia, eles melhoravam muito quando catados na Net. Agora foram e “melhoraram”. Você é obrigado a ler aqueles classificados todos, tudo quanto é anúncio de loja de eletrodomésticos e loções para bronzear — hmmmm — a pele.

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O refeitório do breakfast. Bem cedinho, umas sete da manhã. Lá estão, naquele uniforme esportivo, dois ou três soldadinhos americanos com tema de camuflagem tropical. No peito, em cima do bolso direito, “US Army” e uma bandeirinha. Na Comunidade Européia daria, não digo casus belli, mas, ao menos, um papo entusiasmado, interessante, entre certos segmentos da população e os defensores e distribuidores e atacantes do nobre jogo democrático.

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Na banca, eu acabo comprando é paçoquinha e mariola, que um companheiro paulista insiste em chamar de “bananinha”. Eu e o jornaleiro rimos muito. Pobres paulistas, bem que merecem aqueles baianos todos. Baiano é como eles chamam os nordestinos.

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A via dos corredores perto dos quiosques. Devem estar ficando fortes e saudáveis, formosos é que não. Não mesmo. Aprendem ainda a esquecer, a deixar para lá. Deve ser bom estar fechado naquele corpo, suando e ofegando. Depois vem um idiota, escreve que somos hedonistas e tem todo mundo que ficar rebolando por aí, digitalizado, diante dessas câmeras. Anda-se na rua e, acima da zoeira dos toldos, luminosos ou não, lá estão: centro de malhação após centro de malhação. Malhai-vos, cariocas suleiros, malhai-vos, antes que venha o derradeiro arrastão para a última malhação.

Mas isso só pode ser mágoa de um caboclo que, como eu, tem de ir com bengalinha até a esquina.

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Final de temporada. Dez dias é um pouco por sobre o demais, feito se dizia. Mesmo protegido por excelente hotel e ainda melhores amigos. Todos preocupados em servir bem ao velhinho, nesta cidade de moços. Eu não consegui encaixar, em papo ou texto, uma única observação digna de nota ou nota digna de observação. Um presente enorme assalta — deve ser o tal do arrastão — o passado, todo retalhado em postas fedidas (faisandés, digamos), com que vivo em Londres, satisfeito que tenha acabado e que, a cada dia, vou aprimorando mais, ajudado por velhos filmes, velhas revistas, velhas fotos, velhos livros. Um velho se cercando de velharias para atravessar o dia, a semana, o mês, e, com sorte, o ano. O presente me assalta e me leva todos os documentos. Tudo cópia fotostática, que o original deixei em Londres, que eu não sou besta.

Faz sentido? Não vem ao caso. O que interessa é que passei, de algum tempo para cá, a me entender comigo mesmo, que é o que importa. Eu manjo de perder cidades. De estalo, seria capaz de citar três ou quatro. Mas isso é muito pessoal e as gentes com a papelada em ordem para passar pela minha aduana são poucas. Mesmo se levarmos em conta que eu sou o único brasileiro, vivo ou morto, que não sabe batucar em caixa de fósforos ou coisa alguma.

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Copacabana, Ipanema, Leblon, Centro, zonas Leste e Oeste, o que quiserem. Curtam o pôr-do-sol, recortem o Corcovado e os Dois Irmãos e botem à venda no eBay. Virá gente. Muita gente. Mas uma vezinha só, ao contrário de Naomi Cambell, que, como se sabe, nasceu e continua assombrando o pobre do bairro de Catumbi. Aqui, no Rio, como poderia escrever o poeta sobre Macau, nada de interessante ou sério aconteceu ou acontecerá.

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De que eu mais gostei, além da imensa alegria de rever amigos? Daqueles guetos que eu continuarei a conhecer de propaganda, cinematográfica ou televisiva, pois é isso que fazem deles. Desses imensos campos que por pouco escapam do horrendo apodo de serem chamados “de concentração” ou “de extermínio”. São assentamentos ou colonatos, bantustões, a que dão o pitoresco nome de “comunidades” ou o sentimental “favelas”.




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Trepada num balde, diante do carro parado diante do sinal (uma gentileza, já que as autoridades recomendam não respeitá-los), uma menina tenta equilibrar três bolas amarelas de tênis, enquanto um — comparsa? — pendura no espelho retrovisor um saco de balas pobres que nunca, nunca será vendido.

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Passam de novo os macaquinhos dos Simpsons, enquanto um moleque taludo faz xixi no meio da rua, diante de todos, mexendo assim com o equilíbrio do meio ambiente mundial, ajudando no cavar o abismo da desigualdade social reinante no país. Essa turma dos Simpsons é tudo uma canalha só!

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Sabe-se que a noção de indivíduo nasceu com a Renascença. Quando nasceu, ou nascerá, o carioca? Ou o brasileiro? Quem fez a caricatura maldosa? Millôr ou Jaguar?

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O ar do Rio tem uma luminosidade que, em nele se procurando tocar, sente-se uma mistura do recato da ostra diante da gota de limão ou de virgem, com falsa modéstia, frente a frente ao marzapo ebúrneo. (Também dá uma tosse danada em quem sofre de enfisema. Nisso que dá tentar fazer literatura barata.)

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Um cidadão, numa mesa de bar, eu tomando um caldo de feijão, me falou da lúcida e violenta alegria sexual de se abrir um rombo com chumbo na cara de alguém e depois ir revirar os bolsos do presunto para roubar suas coisas, enquanto, do lado, a meninada joga bola de gude. É, ele usou as palavras “alegria sexual”.

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A sisudez estúpida do futuro. A imbecilidade enfadonha do presente. Bom mesmo é o passado, com o qual a gente pode bulir, mexer, atirar a língua, depois sair correndo e, do outro lado da rua, gritar “Fiau!”. Mas há um preço enorme a ser pago e não aceitam cartão de crédito.

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Seguinte: para cada naipe de passado guardado, há uns dez ou doze de presente tentando cobrir. Para cada sorvete do Moraes, há um milk shake de Ovomaltine se interpondo. Para cada porteiro do cine Ipanema que fechou, há uma moça na portaria do hotel perita em ligar laptop (“Temos nomes iguais. Eu sou Ivana. Meu pai era Ivan também.”). E assim por diante. Dez dias não dão para apagar. Da mesma maneira com que lutei durante o mesmo tempo com as luzinhas vermelhas do telefone do hotel, sempre apagando e acendendo, sempre eu derrubando tudo pelo quarto, sempre tendo que chamar o arrumador, o mesmo que, logo no segundo dia, perguntou se podia aspirar, e eu — o grande brincalhão! — disse que “só se for com o aspirador.” Deve ser por isso que me desejava um abraço cada vez que me via. Essas coisas fazem uma algazarra temporal dos diabos na cuca.

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Aí entra a bala na cabeça que mencionei há — quanto tempo foi mesmo? Ela passou dez dias escavocando e escarafunchando aquilo lá. Espalhando miolo e fibras nervosas pela aura do córtex cerebral, os segredos do lugar onde o hipocampo seleciona novas sensações a serem comparadas às antigas. Neurotransmissões se calaram com os estalos dos fogos de artifício sinápticos. A bala foi detonada no Galeão e fez seu percurso de dez dias a 700 km/h.

*

Eu quase que não senti. Agora é tentar me recuperar, e a algumas coisas, e botar tudo em seus devidos lugares. Só um troço: que coisas? Que devidos lugares?


(publicado na revista Piauí, em 1º de outubro de 2006)

segunda-feira, setembro 04, 2017

Sobre essa coisa de escrever


Por Joaquim Ferreira dos Santos

A estudante perguntou como era essa coisa de escrever. Eu fiz o gênero fofo. Moleza, disse. Primeiro, evite estes coloquialismos de “fofo” e “moleza”, passe longe das gírias ainda não dicionarizadas e de tudo mais que soe mais falado do que escrito. Isto aqui não é rádio FM.

De vez em quando, para não acharem que você mora trancado com o Domingos Paschoal Cegalla ou outro gramático de chicote, aplique uma gíria como se fosse um piparote de leve no cangote do texto, mas, em geral, evite. Fuja dessas rimas bobinhas, desses motes sonoros. O leitor pode se achar diante de um rapper frustrado e dar cambalhotas. Mas, atenção, se soar muito escrito, reescreva.

Quando quiser aplicar um “mas”, tome fôlego, ligue para o 0800 do Instituto Fernando Pessoa, peça autorização ao bispo de plantão e, por favor, volte atrás. É um cacoete facilitador.

Dele deve ter vindo a expressão “cheio de mas-mas”, ou seja, uma pessoa cheia de “não é bem assim”, uma chata que usa o truque de afirmar e depois, como se fosse estilo, obtemperar.

Não tergiverse, não diga palavras complicadas, não escreva nas entrelinhas. Seja acima de tudo afirmativo, reto no assunto. Nada de passar páginas descrevendo o clima da estação, esse aborrecimento suportável apenas quando vemos as curvas da Garota do Tempo recortadas contra o chroma-key do “Jornal Nacional”.

Abaixo o prólogo com a lente aberta, nada daquelas observações sensíveis sobre a paisagem e, a não ser que você seja o Dashiell Hammett ou o Raymond Chandler, esqueça o queixo quadrado do bandido ou a descrição pormenorizada dos personagens. Corte o que for possível. Depois dê uma de Raymond Carver e, nem aí para os pruridos da vaidade, mande o resto para o editor acabar de cortar.

Sempre cabe uma linha a menos no texto, é o efeito Rexona aplicado na axila gramatical. Evite essas metáforas complicadas, passe por cima de expressões como “em geral”, como está no primeiro parágrafo, pois elas têm a mesma função-paralelepípedo dos parênteses, dos travessões. Chute para fora da página tudo mais que faça as pessoas tropeçarem na leitura ou darem aquela ré em busca do verdadeiro sentido da frase que passou.

Deixe tudo em pratos limpos, sem tamanho lugar-comum. Ouça a voz do flanelinha semântico gritando a chave para o bom texto. “Deixa solto, doutor.”

É mais ou menos por aí, eu disse para a menina que me perguntou como é essa coisa de escrever.

Para sinalizar o trânsito das ideias, use apenas o ponto e a vírgula, nunca juntos. Faça com que o primeiro chegue logo, e a outra apareça o mínimo possível. Vista Hemingway, só frases curtas. Ouça João Cabral, nada de perfumar a rosa com adjetivos.

Mergulhe Rubem Braga, palavras, de preferência com até três sílabas. “Pormenorizada”, vista acima, é palavrão absoluto. Dispense, sem pormenores.

O texto deve correr sem obstáculos, interjeições, dois pontos, reticências e sinais que só confundem o passageiro que quer chegar logo ao ponto final. Cuidado com o “que quer” da frase anterior, pois da plateia um gaiato pode ecoar um “quequerequé” e estará coberto de razão. A propósito, eu disse para a menina, perca a razão quando lhe aparecer um clichê desses pela frente.

Você já se livrou do “mas”, agora vai cuidar do “que” e em breve ficará livre da tentação de sofisticar o texto com uma expressão estrangeira. É out. Escreva em português. Aproveite e diga ao diagramador para colocar o título da matéria na horizontal e não de cabeça para baixo, como está na moda, como se estivesse num jornal japonês.

Pode-se escrever baixinho, como faz o Verissimo, que ouviu muito Mario Reis para chegar àquela perfeição de texto de câmara. Outra opção é desabafar pelos cinco mil alto-falantes o que lhe vai na pena da alma, como faz o Xico Sá, que aprendeu a escrever com o Waldick Soriano.

Escreva com a sonoridade que lhe aprouver, nunca com cacófatos assim ou verbos que façam o leitor perguntar para o vizinho do lado que maluquice é essa de “aprouver”. Fuja da voz passiva, da forma negativa, do gerundismo e principalmente da voz dos outros. Se falo fino, se falo grosso, ninguém tem nada com isso. O orgulho do próprio “falo”, e fazê-lo firme e com charme, é uma das chaves do ofício.

De vez em quando, abra um parágrafo para o leitor respirar. Alguns deles têm a mania de pegar o bonde no meio do caminho e, com mais parágrafos abertos, mais possibilidades de ele embarcar na viagem que o texto oferece. Escrever é dar carona.

Eu disse isso e outro tanto do mesmo para a menina. Jamais afirmei, jamais expliquei, jamais contei ou usei qualquer outro verbo de carregação da frase que não fosse o dizer. Evitei também qualquer advérbio em seguida, como “enfaticamente”, “seriamente” ou “bemhumoradamente”.

Antes do ponto final, eu disse para a menina que tantas regras, e outras a serem ditas num próximo encontro, serviam apenas de lençol. Elas forram o texto, deixam tudo limpo e dão conforto. Escrever é desarrumar a cama.

Duas palavrinhas para o Serge


Por Rafael Galvão

O Serge postou um comentário sobre o lamentável histórico deste blog e em vez de comentar o comentário achei que ele merecia uma resposta mais elaborada. Obviamente, como qualquer post neste blog de um preguiçoso, isso fez com que ela demorasse muito mais para ser escrita do que devia. São os percalços da vida.

O comentário do Serge me lembrou de outros tempos, um período que era o auge não apenas deste blog, mas de toda a blogoseira. Os diarinhos, mais ou menos nos moldes de boa parte do Facebook de hoje, estavam dando lugar a abordagens mais complexas. 

Aos blogs do Hermenauta, do Alex, do Marcus, do Doni, do Idelber, do Milton, do Bia, do Ina, condomínios como o Verbeat, o Interney e O Pensador Solitário  um bocado de gente que tinha o que dizer e tentava fazê-lo de forma razoavelmente elaborada. 

Acho que ali se criou ao menos o embrião de uma comunidade heterogênea e eventualmente conflituosa, mas empolgante. Li muita gente boa ao longo daqueles anos; gente criativa, talentosa, engraçada e séria. Fiz alguns amigos para sempre. Mas, principalmente, ri muito.

Com o tempo, a maioria de nós cansou de escrever potoca e foi arranjar coisa melhor para fazer na vida. Virtualmente todos os blogs que compartilhavam o mesmo ecossistema deste desapareceram. A profissionalização da plataforma também fez com que a maior parte dos blogs se tornasse cada vez mais redundante.

O fato é que há um bocado de gente falando de coisas com mais propriedade do que eu  menos Beatles, claro, mas tem gente boa o suficiente para me fazer pensar duas vezes antes de escrever qualquer coisa sobre o assunto (o melhor blog do mundo sobre os Fab Four, a propósito, é este aqui: A Moral to This Song). Mas acho que esses tempos passaram, mesmo, porque as tecnologias mudaram. Twitter e Facebook suplantaram os blogs.

Isso não é uma confissão de ludismo; porque reclamar disso é como o dono de cinema que reclama da Netflix, e porque embora use hoje muito pouco, já houve um tempo em que eu estava quase viciado naquela miséria. Mas não dá para negar que o Facebook tornou os blogs obsoletos. Blogs como este aqui  essencialmente ensaísticos, sem escopo definido, basicamente conversa jogada fora, uma espécie de bar virtual  foram perdendo o sentido, até porque Facebook e Twitter são muito mais eficientes nesse aspecto.

É por isso que a maior parte daquelas pessoas que escreviam blogs pode ser encontrada hoje no Facebook; mas num fenômeno curioso, poucas, pouquíssimas escrevendo algo remotamente bom quanto seus blogs d’antanho.

Acho que funciona assim: o sujeito pensa em algo sobre o que gostaria de escrever. Nos tempos do blog ele escreveria um texto mais longo e mais pensado. Hoje ele simplesmente joga imediatamente no Facebook ou no Twitter uma ideia concisa, excessivamente simplificada do que gostaria de dizer. E daí não há mais motivo para escrever.

A impressão que tenho é que o que se escreve no Facebook são essencialmente comentários que buscam o simplismo, links para alguma coisa, autopromoção descarada, essas coisas. Parece haver uma busca pela frase definitiva, o aforismo “lacrador” que vai ser compartilhado mais vezes, o que por si só condiciona qualquer debate a pouco mais que uma batalha de slogans. 

Posts  hoje chamados “textões”, o que já indica a má vontade com que são vistos  nem são raros, mas sofrem de um mal inevitável: estão soterrados em uma imensidão de outros textões e textinhos. Não têm a dignidade que sua posição de destaque em um blog lhe dava. Mais que isso, o grande problema é que ao mesmo tempo outras 10, 20 pessoas estão escrevendo essencialmente a mesma coisa, com maior ou menor grau de raiva.

Eu não tenho muitas dúvidas de que o Facebook é um dos responsáveis pelo estado psicológico atual do mundo, pelo aumento da ansiedade, da irritação, da intolerância: para o bem ou para o mal, uma certa hierarquia de vozes se perdeu, e o resultado, ao menos por enquanto, é um mal-estar generalizado, um recrudescimento de confrontos que eram apenas latentes ou estavam disfarçados.

Mas o pior, mesmo, é que ele acabou com os blogs.

Este blog mesmo “acabou” em 2010, e não pode culpar as redes sociais; tinha virado uma obrigação que passava a me incomodar, porque já não fazia tanto sentido. O fato de saber que há leitores exerce uma influência que pode ser positiva ou deletéria, porque por mais que a gente negue isso lhe obriga a escrever, de certa forma, e é positiva quando você está com vontade e deletéria quando o saco está cheio. 

Além disso, depois de quase dois mil posts é meio difícil achar algo que lhe interesse e que você não tenha escrito. Os comentários razoavelmente despretensiosos sobre quaisquer bobagens que eu fazia aqui no começo começaram a parecer insuficientes, à medida que gente que se levava mais a sério, com mais gana, começou a escrever o que eu teria escrito.

Finalmente, a “facebookização” do debate, o crescimento do processo de “guetização” impulsionado pela ascensão desses movimentos identitários de todos os tipos, quase invariavelmente infantilizados, ajuda.

Dia desses teve uma passeata da mulher negra. Uma moça disse que, se você não fosse negra, que ficasse em casa. Tem discussão possível nesse caso? Eu não tenho tempo nem estômago para esse tipo de debate. Na verdade, não tenho mais para quase nenhum, nem os bons. Os tempos em que eu me divertia com as pseudo-feministas passaram.

Mas a verdade é que, depois de tantos anos, ele tinha passado a ser parte da minha vida; por isso voltei, mas sem a obrigação que eu mesmo me impunha. E ele vai ficar por aqui para sempre, acho (ou pelo menos até eu morrer, se é que vou morrer um dia, e deixar de reservar o domínio); às vezes com um texto, às vezes não.

Não acho que precise de mais que isso. Ele já está vivendo em um tempo emprestado, mas que bom; a este blog, que me deu alegrias, raivas e amigos, basta apenas continuar existindo. Não porque é ou deixa de ser lido: mas porque é parte indissociável de minha história.

A Amazônia não merece isso, Temer!


Por Fernando Gabeira

Tenho discretas razões para supor que Temer compreenderá o equívoco de abrir para a mineração, na Amazônia, uma área do tamanho da Dinamarca. No passado, ele se tornou dono de terras em Alto Paraíso, e a comunidade que trabalhava há anos ali foi a Brasília pedir ajuda. Terras em Goiás foram distribuídas a políticos do PMDB. Temer nem sabia exatamente como eram e o que produziam. Pressionado pelos agricultores alternativos que trabalhavam ali, Temer resolveu abrir mão de suas terras e as doou à cidade de Alto Paraíso.

Agora, não se trata apenas de alguns, mas de 47 mil hectares. As terras não são de Temer, mas do Brasil e, de uma forma indireta, de toda a Humanidade. Quando os militares criaram a reserva, a ideia era pesquisar e explorar os recursos de uma forma estratégica. Não creio que pensaram nisso como um momentâneo desafogo a uma crise econômica provocada pela incompetência e corrupção.

Não quero raciocinar em termos de estatal ou privado, ou mesmo de nacional ou estrangeiro. Depois que os militares criaram a reserva, muita água passou por baixo da ponte, ou mesmo por cima, com os eventos climáticos extremos.

No fim da década dos 1980, o Brasil ainda era um vilão internacional porque desmatava a Amazônia. Lembro-me de uma reunião de cúpula na Holanda em que Sarney não foi porque tinha medo de uma reação negativa. Na época, além das queimadas e de outros fatores, houve ainda o episódio de negarem passaporte a Juruna.

Com a realização da Rio-92, o maior encontro de estadistas no pós-guerra, o papel do Brasil começou a se alterar. De vilão ambiental, tornou-se um interlocutor importante e passou a ser visto como ator decisivo nos acordos sobre o aquecimento global.

A Amazônia tornou-se para o mundo um espaço a ser preservado, respeitada a autonomia nacional sobre suas terras. Países como a Noruega acharam que se a Amazônia era importante para a sobrevivência de todos, deveriam investir nela em projetos sustentáveis. E fizeram isso.

Você mesmo esteve na Noruega, embora a tenha confundido com a Suécia.

A grande crise iniciada em 2008 e fatos posteriores, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, enfraqueceram mas não destruíram a disposição planetária de contribuir com a Amazônia.

Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta. E de uma certa maneira, despreza os potenciais investimentos em projetos sustentáveis em nome de uma saída que me parece anacrônica e predatória.

Tudo bem, Temer, você dirá que serão respeitadas as regras ambientais para a mineração. Mas quem percorre Minas Gerais e outros pontos do país constata rapidamente que elas não são respeitadas no Sudeste onde, teoricamente, concentra-se o grosso da fiscalização.

No segundo decreto, você criou um comitê ligado à chefia da Casa Civil para monitorar as atividades de mineração nessa faixa que engloba parte do Amapá e do Pará. Não consigo me convencer disso. O chefe da Civil, Eliseu Padilha, é investigado por crimes ambientais no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul. E as acusações são amplas, vão de desmatamento a construção de pistas de pouso clandestinas. Pouca gente sabe disso. Mas está disponível na internet e no próprio Supremo.

Além de arruinar o trabalho de construção da imagem nacional, o governo nos propõe uma fórmula de controle na qual a raposa toma conta do galinheiro. O namoro do PMDB com as riquezas naturais da Amazônia vem de longe. Romero Jucá é o mais destacado parlamentar buscando fórmulas para regulamentar a mineração nas terras indígenas.

Nesse momento, Temer, você está cedendo às piores influências no manejo da Amazônia. Se fosse simplesmente um opositor, talvez pudesse me alegrar com essa decisão. Antes de ser opositor, sou brasileiro e lamento ver o Brasil caindo de novo naquele desprezo internacional que sentimos em Haia, no fim da década de 1980. É uma ilusão você pensar que tudo dará certo. Até mesmo Padilha e Jucá, que devem estar comemorando, não percebem que estão atraindo um furacão contra eles. Deveriam ser mais discretos, mas a aposta é de levar tudo porque aqui não se pune ninguém.

No momento em que publico este artigo, estou tentando entrar na reserva, que não tem acesso fácil. O argumento de que garimpeiros clandestinos estão por lá não justifica esta abertura às grandes empresas. Aliás, Temer, existe uma possibilidade de você estar se deixando execrar inutilmente. As empresas que você quer atrair também estão no mundo e devem sofrer pesadas campanhas em seus países de origem.

Não me importa que você confunda Noruega com Suécia, Paraguai com Portugal, ou mesmo reviva a União Soviética. O essencial é não confundir a Amazônia com Goiás, onde tantas terras foram passadas a líderes do PMDB. É um lugar tão complexo, capaz de sepultar não apenas os sonhos pioneiros como o de Henry Ford, mas também as grandes trapaças.

domingo, agosto 27, 2017

Vitória de Amazonino


Por Paulo Figueiredo

Leonel de Moura Brizola cultivava uma visão prática dos fatos, certamente em razão de sua história de vida, com origem nos estamentos mais humildes da população brasileira. Sobre eleições dizia que tudo era muito simples e que a vitória ou a derrota ocorria em função do candidato a ser enfrentado.

Comparava a disputa politica a um campeonato de natação para observar que ganhava quem nadasse melhor. Parece óbvio, mas nem tanto, uma vez que haverá sempre quem queira encontrar explicações estranhas para os resultados eleitorais, com objetivos ou interesses nem sempre muito claros.

Agora mesmo, nestas eleições suplementares no Amazonas, com o processo ainda em curso, mas com a vitória de Amazonino Mendes já assegurada, há quem diga que foi o candidato quem menos concorreu para o excelente resultado de sua candidatura.

Percentuais foram estabelecidos, não se sabe sequer com que critérios, e neles coube ao candidato o menor índice – 10%, como responsável pelo sucesso da campanha.

Sem a menor cerimônia, os 90% restantes seriam devidos a apoios recebidos de lideranças políticas e do marketing, numa proporção de 60 a 30%, respectivamente, como viabilizadores do projeto político e da conquista do governo.

Lembro da eleição de Omar Aziz governador em 2010. Na ocasião, houve quem sustentasse igual raciocínio, a tal ponto que Aziz fazia questão de destacar que seus apoiadores é que tinham ganho a eleição, em tom de indisfarçável ironia, pois sabia que os louros da vitória lhe pertenciam.

Ora, ora, como é elementar, quem ganha e quem perde é o candidato e seu adversário, um em função da performance do outro, como observava Brizola.

No entanto, como resulta evidente, jamais se poderá diminuir a importância das alianças políticas, do apoio de lideranças fortes e da ação de estrategistas e marqueteiros na edificação do conjunto da obra.

Ainda assim, embora respeitando quem pensa o contrário, inconcebível a inversão de valores de forma tão radical, superestimando-se determinadas participações com menosprezo à atuação do candidato.

No caso da eleição em tela, não custa notar, num e noutro sentido, o peso significativo no concurso eleitoral dos candidatos presentes no segundo turno, ambos com denso currículo político.

Foram governadores, prefeitos de Manaus e senadores da República, com alentada experiência de décadas em várias eleições.

Portanto, nada mais verdadeiro do que afirmar que os dois tiveram peso de extrema relevância no processo, na esteira da vitória ou da derrota, sendo certo que agora colhem o que realmente plantaram ao longo dos anos.

Amazonino Mendes, maduro e tolerante, racional, senhor de sua própria idade, fez uma campanha serena e impecável. Conseguiu inclusive a adesão entusiástica da juventude, tal e qual Bernie Sanders nas eleições primárias estadunidenses, constatação que merece destaque, porquanto demonstra que idade não é documento, pelo lado positivo ou negativo.

Mendes transmitiu segurança e experiência, num momento de graves incertezas em relação aos destinos do Amazonas e da Nação. Em nenhum momento caiu na armadilha de promessas vãs, irrealizáveis, nas quais ninguém mais acredita. Dispôs-se, com base em discurso espontâneo, apenas a arrumar a casa e a reconstruir o Estado, tarefas hercúleas.

Na outra ponta, Eduardo Braga fez o inverso, com linguagem típica de sua personalidade, insolente e autoritária. Nem o enviesado pedido de perdão de público no programa eleitoral no rádio e na tevê, a quem possa ter tratado com rispidez ou grosseria, providenciado sob encomenda e a destempo, foi capaz de convencer potenciais destinatários.

Apresentou realizações imaginárias, com números fictícios, para dizer o mínimo, e montou a campanha estruturada num rosário de promessas não factíveis, em tão curto espaço de tempo, reservado ao mandato-tampão.

De mais a mais, ao contrário de Amazonino, bem-sucedido ao optar pelo nome de Bosco Saraiva, Braga elegeu mal e pagou caro ao trazer Marcelo Ramos para companheiro de chapa, um fiasco sob todos os aspectos, um enorme desastre político e eleitoral.

Ao comparar as escolhas que deverá fazer na hora do voto, a propósito, usando bordão da campanha de Braga, o povo, quando informado com a verdade sobre os candidatos e seus projetos, acerta sempre. Somente erra, quando não recebe dados corretos e reais, em cima dos quais fará suas opções na urna.

Reconhecendo que toda e qualquer adesão é indispensável, diante do brocardo de que em política cisca-se pra dentro, que fique de uma vez assentado que quem perdeu foi Braga e quem venceu foi Amazonino, com escusas pelo truísmo que salta aos olhos.