Pesquisar este blog

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Vinicius de Moraes segundo Geraldinho Carneiro




Não me lembro se conheci Vinicius em certa noite no Antonio's ou se asilado na casa de Cecil Thiré (onde fui parar casualmente), egresso de uma de suas inumeráveis separações. Mas foi em 1968, com certeza, e, como era de seu feitio, Vinicius me disse palavras amáveis.

Dois anos mais tarde, também por acaso, presenciei o ato final de outra separação tumultuada, na casa de Nana Caymmi, onde o poeta tomou uma coça de sua ex-amada, diante de meus olhos juvenis. Marx tem uma frase brilhante sobre as repetições da História, ciranda de dramas, farsas, etc. Naquela altura do campeonato, eu ainda não tinha lido Marx e não fui capaz definir o gênero literário do episódio.

Em 1973, me lembro como se fosse hoje, fui a uma festa em sua casa na Gávea, na rua Frederico Eyer, com meu parceiro Egberto Gismonti e Dulce Nunes. Tive impressões contraditórias. De um lado, fiquei fascinado com o charme do poeta e a atmosfera vagamente feliniana da festa; de outro, meio paradoxalmente, achei que esse Vinicius de Moraes era um cara obeso e decadente, assim corno seus poemas, incompatíveis, ao menos em parte, com meu marxismo-hedônico ou hedonismo marxista da ocasião – pois, durante o dia, Machado Penumbra da nova geração, eu escrevia poemas e letras obscuramente bem-intencionadas para o Egberto e, durante a noite, batia ponto na esbórnia.

Para completar, ainda na contraditória festa do parágrafo anterior, surpreendi uma troca de olhares carregada de cumplicidade. Otelo de mim mesmo, decidi investigar e descobri que Vinicius, aIguns anos antes, tinha namorado a minha namorada. Senti ciúme retrospectivo. Mas descobri, também, que tínhamos certas afinidades eletivas.

No ano seguinte, Vinicius andou fazendo umas canções com Eduardo Souto Neto (aliás, os dois fizeram uma valsinha tchury-tchury) e ficou encantado com uma música que eu e o Eduardo tínhamos composto em 69, chamada Choro de Nada. A letra era toda rimada em ada, com exceção de um dos últimos versos, Vinicius queria trocar o tal verso e incluir o chorinho no seu novo disco com Toquinho. Eu não concordei.

Em 1975, fui passar uma temporada na Itália, trabalhando com Astor Piazzolla. Um belo dia recebi uma carta na casa do Astor, na Via dei Coronari. Era Eduardo, cheio de dedos, comunicando, com sua habitual delicadeza, a gravação do choro. Logicamente, Vinicius tinha trocado o meu verso branco. 2 X 0.

Mas, depois: de minha volta ao Brasil abdiquei das últimas restrições morais e musicais ao poeta. Em suma, apaixonei-me irremediavelmente. Tomamos alguns porres na casa de amigos comuns. Falamos muita besteira. Lembro de um réveillon de 73 ou 74, estilo milagre econômico, entre o horror político e o arrebatamento lisérgico. As hard-drugs começavam a pintar no Rio de Janeiro. Lá pelas 9 horas da manhã, debaixo de um calor senegalesco, restavam umas poucas pessoas na liça. Vinicius sugeriu que cantássemos. Eu peguei o violão e puxei uma das mais lindas canções do poeta, que soava meio irônica cm pleno verão carioca: “Por que toda manhã me traz / 0 mesmo sol sem esplendor?” Quase morremos de rir.

Assim, birita vai, birita vem, fui me desfazendo aos poucos de minha tendência parricida, espécie de fatalismo psicológico com que as novas gerações, por amor à auto–afirmação, brindam as anteriores. Mas, para falar a verdade, o ranço dessa herança bastarda continuou embaraçando sutilmente, quanta incompetência!, as minhas relações com Vinicius. Ficamos cúmplices, mas não ficamos íntimos.

Andei freqüentando a sua casa na Gávea, com ou sem pretexto. Para fazer uma antologia (abortada) de suas letras de música, por encomenda de Gastão de Holanda; para mostrar poemas; para entrevistá-lo; para conversar fiado. Duas vezes o poeta me recebeu em seu banho de imersão matinal, estirado na banheira, completamente nu. Parecia um patrício da velha Roma lmperial. Sêneca, por exemplo.

Fui visitá-lo pela última vez no princípio de 1980. Vinicius tinha ficado doente. Foi hidrocefalia, se não me engano. Agora começava a se recuperar. Tomava aulas de violão com Wanda Sá, andava entusiasmado com a perspectiva de ir a um encontro internacional de poetas, não me lembro onde, para o qual era convidado de honra. Fiquei deslumbrado com o seu pique.

Em fins de junho, Vinicius e Gilda Queirós Mattoso apareceram numa pequena reunião produzida por Marilda Pedroso. Eu e minha mulher tínhamos ficado grávidos naquele dia, e o poeta, com sua mania de médico amador, nos deu vários conselhos. 10 quilos mais magro, ele parecia consigo mesmo nas fotos da década de 40. Todos ficamos emocionados. Após a sua saída de convalescente, à meia-noite, cantamos e bebemos em sua intenção.

Poucos dias mais tarde, no caminho para o cemitério São João Batista, eu pensava na estranheza da presença/ausência de Vinicius, entranhado no fundo da história dos afetos do Brasil e, ao mesmo tempo, seqüestrado da tarde calorenta do Rio de Janeiro. Foi um enterro estranho. Não havia o menor sinal de desespero e, ao contrário da expectativa do poeta, revelada no poema A Hora Íntima, ninguém propôs solene­mente a construção do seu pedestal. Quase sorrindo, as pessoas cantaram canções de despedida: “Se todos fossem iguais a você! Que maravilha viver”.

O rosto emergindo entre as flores, Vinicius, filho de Oxalá, era um morto sem metafísica. Mas, por via das dúvidas, me lembrei de uma reza forte para saudar sua partida no barco da Grande Mãe: “Notre Dame de L’Amour, iluminai vossos vitrais, levantai âncora ó galera gótica dos meus martírios vossos santos aos remos o Corcunda no mais alto mastro Jesus na torre de comando e buscai serenamente o grande caudal no qual me abandono náufrago coberto de flores em demanda do abismo claro e indevassável da morte, Saravá!”

Nenhum comentário: