A Ciranda Tradicional abriu o 15º Festival das Cirandas na sexta-feira, 26, com um atraso de 90 minutos.
É que o ônibus dos jurados “pifou” nas imediações do Lago do Ubin e eles só puderam chegar ao Parque do Ingá por volta das 23h.
Os cirandeiros, que deviam começar sua apresentação às 21h30, devem ter ficado apreensivos com a espera.
Resultado: a ciranda não mostrou a mesma garra dos dois anos anteriores, quando havia conquistado o bi-campeonato, e fez uma apresentação apenas razoável.
Até mesmo a gloriosa TOT (Torcida Organizada Tradicional), que estava em busca do hexacampeonato, acabou não rendendo o esperado e deixou o título de “melhor torcida” escapar por entre os dedos para a Flor Matizada.
O tema proposto pela ciranda (mostrar os contrastes de Manacapuru) era bastante interessante e fazia parte da “Trilogia Cabocla” que já havia rendido dois títulos aos simpáticos brincantes do bairro Terra Preta.
Parecia uma fórmula batida, mas é batendo o bolo que se costuma render.
O enredo abordava o casamento da meiga Maria de Jesus com o endiabrado Luiz Cão (avôs do vice-prefeito Messias Furtado), a história do galo encantado da dona Cléia que colocava ovos dourados, a Visagem que puxava carroça noite e dia, relembrava as fogosas damas da noite Maria Bacu e Chica Taracuá, apresentava o hilariante seu Bocais, que vivia se lamentado que ao invés de comprar um motor desconfiava de que havia comprado um submarino (o barco dele vivia afundando), a mulher loura que se transformava em porca nas noites de sexta-feira, até chegar ao time Princesa do Solimões, que tem como símbolo o marítimo tubarão em vez das nossa fluviais piraíba ou pirarara, ou, tudo bem, um boto tucuxi.
O apresentador Vivaldo Azevedo (aka “Teacher”), incoporando um matuto contador de causos, deu um show a parte e salvou a noite.
O mesmo pode ser dito da “Tocata de Ouro”, que não deixou a peteca cair em nenhum momento.
Os cantadores Bruno e Marlon também mostraram seus dotes vocais, arrancando aplausos até dos torcedores rivais.
O requebrado das cirandeiras da Tradicional (Deus, o requebrado das cirandeiras da Tradicional!) mostrou mais uma vez porque a caçulinha das cirandas é considerada a mais hardcore das três: no trançadinho, no bailado corrido e no dorsal carpado, não tem pra ninguém.
Elas deitam e rolam, pintam e bordam.
As alegorias, apesar do belo acabamento, não estavam muito convincentes e deixaram uma impressão meio “déjà vu” na plateia.
Eram muito previsíveis.
Aparentemente, sobrou forma e faltou conteúdo.
Os efeitos de luzes também ficaram meio rebarbativos.
Em compensação, a Porta Cores Yana Monteiro e a Cirandeira Bela Brígida Matos estavam simplesmente deslumbrantes.
Em linhas gerais, a Tradicional ficou aquém de suas possibilidades e amargou um terceiro lugar.
Meu amigo Papão deve estar de cabeça quente até agora, mas faz parte do jogo.
A Flor Matizada abriu a segunda noite, no Palco do Ingá, pontualmente às 21h30 de sábado.
O cordão de entrada entrou num ritmo tão eletrizante, que pegou meio mundo desprevenido.
A ciranda estava mostrando a chegada e o estabelecimento dos índios Mura na região, iniciando o aldeamento daquela que é hoje a cidade de Manacapuru.
O tema proposto pela ciranda era contar a história do município da época colonial até os dias de hoje.
O enredo mostrou o ciclo da juta, as festas religiosas mais tradicionais (incluindo a centenária festa de Santo Antônio da Terra Preta) e trouxe de volta vários personagens típicos da ciranda original, como seu Manelinho, Caboclo Pescador, Mãe Preta, o estabanado Caçador e o histriônico pássaro Carão.
Também não foram esquecidas as primeiras turmas organizadas do município (Máfia, Pop e Fap), antigas boates (Mocambo, Velha Guarda, Galop), os principais blocos carnavalescos (Sapo da Madrugada, Bloco da Maisena) e o mais autêntico folião da Princesinha, José Alberto Dias da Luz, o popular “Tartaruga”.
O ex-vereador Modesto Alexandre, maior compositor de marchinhas carnavalescas do município, também foi homenageado.
No quesito mulheres bonitas e saradas, o dérriere das cirandeiras da Flor Matizada (Deus, o derriére das cirandeiras da Flor Matizada!) já são uma instituição local.
Dessa vez, elas abusaram na coreografia sincronizada e na plasticidade da indumentária.
Foi uma apresentação impecável, de tirar o fôlego, do começo ao fim.
O apresentador Ivan Oliveira e os cantadores Paulo Filho (aka “Bebezinho”) e Erinho mostraram a mesma competência de sempre.
A Orquestra Matizada também estava tinindo nos cascos.
O que faltou para a Flor Matizada ser campeã?
Um melhor acabamento nas alegorias.
Ao contrário da Tradicional, a Matizada apostou tudo no conteúdo e deixou de lado a forma.
Havia alegorias que não deveriam sequer entrar na arena de tão mal resolvidas.
A pira olímpica, por exemplo, que tinha um efeito de luzes maravilhoso, ficou parecendo uma pirâmide maia abandonada às pressas pela metade por causa de alguma profecia celestina.
Em compensação, a Porta Cores Paula Vasconcelos e a Cirandeira Bela Vanessa Simplício também estavam simplesmente deslumbrantes.
Era impossível olhar pras uma das duas sem colocar “quebranto”.
Mas o ponto alto da Flor Matizada foi a homenagem às professoras que, nos anos 80 e 90, introduziram a brincadeira no município: Fátima Fernandes Barreto (Flor Matizada), Terezinha Vieira Fernandes (Ciranda Tradicional) e Wanderleia Nogueira (Guerreiros Mura).
As três educadoras estavam ali, ao vivo e a cores, conferindo o nível de espetáculo cênico em que se transformaram aquela simples brincadeira de alunos.
Foi realmente emocionante, apesar das alegorias que representavam as três escolas não passar de lixo a ser reciclado.
A emoção que contagiou o Parque do Ingá não livrou, é claro, a Flor Matizada de ficar em 2º lugar na disputa.
A ciranda Guerreiros Mura encerrou a terceira noite do festival no domingo, entrando na arena, pontualmente, às 21h30.
Foi a noite em que o Parque do Ingá recebeu o maior número de pessoas, quase todos de Manacapuru, já que a maior parte dos visitantes havia ido embora cedo para suportar o martírio que é o retorno de balsa em Iranduba.
O tema proposto pela ciranda era contar a fuga dos hebreus do Egito, sob o comando de Moisés, em busca da Terra Prometida.
Em mais uma inovação, os cirandeiros do bairro da Liberdade resolveram acrescentar elementos teatrais na ciranda para ver em que ia dar.
Deu em mais um título.
Contando uma história quase linear, que ia do nascimento de Moisés (o parto na arena foi incrivelmente realista!) até o recebimento dos Dez Mandamentos já no Monte Sinai, passando pelas dez pragas, pela travessia do mar Vermelho e pelos milagres no deserto, a ciranda Guerreiros Muras caprichou no acabamento das alegorias e fantasias, transformando o Parque do Ingá em um luxuoso palácio egípcio.
Pra sacanear, o cordão principal, ricamente ornamentado, entrou na arena sob a cirandada “Eu sou pitiú”, o apelido politicamente incorreto dado aos brincantes da Liberdade pelas outras cirandas para acentuar sua origem humilde.
Quem via aquelas meninas lindíssimas, de uma alegria contagiante, cantando a pleno pulmões a cirandada-desabafo, se lembrava automaticamente daquele dito espirituoso do carnavalesco Joãosinho Trinta de que “quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta mesmo é de luxo”.
Um tapa na cara da concorrência, mas com luvas de pelica. Ducarálio!
Com exceção do apresentador Klinger Araújo, que andou tartamudeando algumas vezes por problemas decorrentes do “ponto” eletrônico, os demais itens individuais da ciranda esbanjaram categoria e competência.
A Porta Cores Sabrina Salles (sublime!), a Cirandeira Bela Vallisnéria Segadilha (um desbunde!) e o cantador Gamaniel Pinheiro deram um show de bola.
A Tocata Mura parecia uma orquestra sinfônica comandada pelo maestro Isaac Karabtchevsky.
Some-se a isso o bailado frenético das cirandeiras Mura (Deus, o bailado frenético das cirandeiras Mura!) e aí temos a fórmula mágica para conquistar o nono título da agremiação (contra cinco da Flor Matizada e três da Tradicional).
Os jurados, com certeza, premiaram a ciranda que teve a coragem de pegar um tema bíblico conhecido por todos e transformá-lo em um enredo que em nenhum momento soou profano.
Ao fugir da temática amazônica e assuntos correlatos, a Guerreiros Mura começou a gerar um novo ovo da serpente, abrindo um leque quase infinito de possibilidades temáticas.
Agora já se sabe que a criatividade anda de mãos dadas com a originalidade e nada é estranho ao mundo das cirandas.
Onde isso vai dar só o futuro poderá dizer.
Mas com certeza o Festival de Cirandas de Manacapuru nunca mais será o mesmo.
Apesar de torcedor da Flor Matizada, curvo-me a realidade dos fatos: a ciranda Guerreiros Mura foi bem melhor e mereceu o título.
Um salve pra nação guerreira!
Valeu, cachorrões!
Parabéns, Renato e Cley!
No próximo ano tem de novo. Fui.
NOTA DO EDITOR DO MOCÓ:
Para conferir maiores detalhes daquelas três noites mágicas, clique aqui.
Um comentário:
Vc sim é o cara!!! Sintentizou tudo o que observei durante as noites do Festival de Cirandas de Manacapuru. Ainda não havia lido esse fanatstico ponto de vista, ainda mais depois do resultado. O Blog ainda continua sendo mais util e um golpe ao âmago de quem torce por torcer, e não ver o que olhos devem enxergar.Parabens!!!
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