Mautner, em casa, com
seu inseparável violino - Leo Martins / Agência O Globo
Por Arnaldo Bloch
RIO — Não faz muito tempo, Jorge Mautner desceu do seu
mítico apartamento térreo no Alto Leblon (que parece uma casa maluca por estar
na curva de uma ladeira) e passou a morar num local mais próximo de Amora, sua
filha. A proximidade o salvou: no fim de julho, teve um infarto e foi resgatado
com extrema rapidez por ela. Alguns minutos a mais seriam fatais. O episódio
provocou reflexões no compositor e escritor, demiurgo-mor da herança
tropicalista, autor de “Deus da chuva e da morte”. Nesta entrevista, ele
descreve a experiência e fala do “livro-bomba”, em dez volumes, sobre sua
militância nos anos de chumbo, no qual está trabalhando.
Você quase foi, mas
não foi, e voltou. Descreva a experiência.
Eu estava aqui. Fiz sete horas de ginástica e deitei.
Acordei com uma dor. Apertei aqui (mostra o peito). Apertei, apertei. Aí
passou. Não é nada, pensei. Meia hora depois, veio a segunda, dez vezes mais
violenta. Telefonei. Amora, minha filha, me salvou. Em cinco minutos estava lá
embaixo o Alvim, motorista, amigo da casa. O médico, doutor Mansur, ficou pasmo
de me ver: contou que no caminho para o hospital estava ouvindo “Maracatu
atômico”, uma coincidência maravilhosa. Puseram os eletrodos. Parecia tudo bem.
Aí veio o terceiro ataque, fulminante. Olha a isquemia!, gritaram. E já fui
para a cirurgia. Foram três, para limpar as artérias e botar os stents.
A dor do infarto é
quase um mito. As pessoas descrevem de várias maneiras. Qual a sua?
Pontiaguda e estilhaçante. Como uma bomba que explode no
centro e vai te quebrando por dentro. Oito meses atrás fiz um exame, disseram
que eu estava 100%, ia viver mais 40 anos. Mas eu sentia dores pelo corpo todo,
e um cansaço. Acho que foi o cigarro. Comecei aos 69 anos. É como diz o samba
de Noel: “Joguei meu cigarro no chão e pisei/Sem mais nenhum, aquele mesmo
apanhei e fumei/Através da fumaça neguei minha raça chorando, a repetir:/Ela é
o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir”. O que o samba não diz é que
morrer sentindo dores horrorosas... Foi uma experiência fatal...
Quase fatal... você
não morreu.
Fatal. Infarto é sempre fatal. Já capotei de carro com uma
turma que se estraçalhou, voei pela porta e me recolheram, algum anjo de carro.
Tive também úlcera perfurada e, há 8 anos, uma septicemia aguda. Mas essa,
agora, foi fatal.
Como se sente agora?
A energia voltou assim que desentupiram as artérias e
puseram os stents. É impressionante. Estou melhor do que nunca. Acabaram a dor
e o cansaço. Tenho muito fôlego. Faço esportes desde os 7. Em 1958 comecei o
tai chi. Até hoje fico nas bases, o tigre, a cegonha, o cavalo, a águia. Posso
ficar horas vendo televisão fazendo bases. Graças a Lao-Tse, pai do taoismo.
Mas tem também o Sun-tzu. Ele dizia que o ser humano já nasce malvado. Cresce,
e fica pior. Os bons se nutrem do que os malvados produzem. Isso o Thomas
Hobbes pegou e pôs no Leviatã e levou para Adam Smith: quanto mais egoísta,
mais propiciador. A ambição e o egoísmo, tão achincalhados, seriam as
qualidades mais nobres se olharmos por este ângulo.
Você está em qual
categoria? Ambicioso e egoísta ou nem tanto?
Estou em todas as categorias. Eu sou o Messias.
Mautner: após o
infarto e a inserção de três stents, peito aberto para o que der e vier - Leo
Martins / Agência O Globo
Qual foi, e é, seu
diálogo com a morte?
Nasci um mês depois que meus pais chegaram (no Brasil).
Minha mãe estava abalada com as mortes dos seus parentes na guerra. Meu pai,
que era da resistência, desde pequeno me iniciou nas coisas do Holocausto.
Nunca mais! Tenho os selos antinazistas guardados. Fiquei com a babá que era
filha de santo e me levava ao candomblé depois da missa. Ela entrava num quarto
e voltava como uma rainha, me pegava no colo, e os tambores ribombavam. Eu
brincava com soldadinhos de chumbo e fazia as formações das falanges
macedônias. Em São Paulo eu saía do Dante Alighieri, descia a Itapeva e ia num
necrotério que tinha no fundo do hospital Matarazzo. Ficava olhando, para ver
como era a morte.
E como ela é?
Lembra do “deus da chuva e da morte”? A morte é tudo. O ser
humano, que é 90% chimpanzé e 10% bonobo, começa a cultura dele pelas urnas
funerárias. Nenhum outro animal faz isso. Ok, os elefantes de vez em quando vão
ver os ossos dos ancestrais, levantam com a tromba, ficam lá meia hora e vão
embora. Mas o homem cultiva. Tudo é ligado à pulsão de vida e da morte que
somos nós, e que é a natureza. Uma estrela bate na outra, explode e nasce mais
uma. A morte é o fundamento da vida e está sempre ligada à criação. Meu pai
está morto e sempre converso com ele. O que importa? Como dizia o Nelson
Jacobina, tudo que se imagina está em algum lugar. Ele trabalhou 40 anos
comigo, teve uma metástase e nem a pílula mais cara, nem a metadona, melhoravam
as dores. Só quando ele tocava. Em Jacareí insistiu num bis de uma hora.
Drauzio Varela não entendia como. O que acha disso? Um milagre? É que os
neurônios, como sempre insisto, são pura emoção.
Foi o que você pensou
no hospital?
Depois do terceiro ataque me deram uma substância que a
partir daí amenizou tudo e foi só felicidade... e continua. No hospital eu não
pensava na morte. Ao contrário: fui imbuído de uma imensa alegria por estar com
a Amora e os médicos e as enfermeiras, fazendo piadas sobre judaísmo.
Conte uma.
Bóris encontra Jacó chorando nas docas de Nova York e diz:
“Sei por que você está triste. É que você está aqui na América e a família
ficou na Lituânia. Aí Jacó responde: “Não, Bóris. Eu estou triste porque o
navio com a família chega amanhã”. (Muitos risos). É isso: o deboche do próximo
é proto-pré-nazista. A ironia salvadora é consigo próprio.
Diga mais sobre a
amálgama chimpanzé-bonobo.
Nossa espécie foi a mais sanguinária. Tinham que lutar com
outros chimpanzés e gorilas. A organização deles é como uma paranoia militar:
cada um tem um posto e quer passar a perna no outro, exatamente como nós
fazemos. Então não só trucidamos outras tribos, como, em períodos nos quais
está tudo bem, tem comida para três meses, todo mundo feliz, o chefe como quem
não quer nada pega um bebê, gira e quebra o crânio dele no tronco de uma
árvore, para dar sinais ao outro lado do rio, onde os bonobos, uma sociedade
matriarcal, os desafia e atrai. Tudo acaba em sexo e aí se forma a nova
espécie. Essa guerra continuou. Quando nasci, o führer estava vivo. Quatro anos
depois, eu saudava a volta da Força Expedicionária. Sou um homem de estado.
Falando em homem do
estado, você está escrevendo um livro que mexe com sua experiência nos anos de
chumbo.
É o livro-bomba. Fala da minha militância, durante 14 anos,
no PCB. Um ano e meio antes do golpe já sabíamos. E vai até o período em que
Gil e Caetano foram chamados de volta para dar alento ao povo brasileiro, que,
em profunda melancolia e depressão, não acreditava na redemocratização. Mas
eles não sabiam que era por isso. Era uma exigência do governo militar. Violeta
Arraes tentou me demover, impedir, para dramatizar a luta armada. Eu era o
velho comissário. Tem revelações incríveis. Meu papel nisso tudo. Serão dez
volumes em flashback. O primeiro já está na editora.
E o impeachment?
Respondo de minha maneira diagonal. Não há abismo em que o
Brasil caiba. É tudo artificial. A seca é artificial. Temos os maiores
aquíferos do planeta. Não existe satélite nem foguete nem celular nem internet
sem um minério chamado nióbio. Sem ele o mundo acaba. O Brasil tem 95% das
reservas. Com estrada de ferro os preços cairiam 60%. Se navegássemos nos rios,
85%. Não vamos sair dessa enquanto não destinarmos 25% de tudo para educação,
cultura e saúde. O resto é tudo blefe. Nunca tivemos lei nem governo. Foi o
povo que fez tudo. Durante a escravidão, meses eram feriado para a Senzala
ensinar tudo para a Casa Grande, inclusive como governar.
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