Por que conservadores
americanos e socialistas brasileiros, extremos opostos, estão incorporando,
cada vez mais, o cinismo às ideologias?
José Padilha, O Globo
Aqui nos EUA o processo até que foi engraçado, embora o
desfecho possa ser trágico. Depois de uma primária republicana ridícula, em que
os candidatos conservadores se mostraram extremamente fracos e foram
gradativamente eliminados da disputa pelo populismo histriônico de Trump, os
conservadores ficaram em quintanilhas. Ou se afastavam de Trump e entregavam a
Presidência aos democratas, ou coroavam Trump na convenção do Partido
Republicano. Fora algumas exceções, notadamente Ted Cruz, os conservadores fecharam
com Trump.
Estão comendo o pão que o diabo amassou. Trump associou-os
ao racismo (contra os mexicanos), à ideia de que é lícito que estrangeiros
interfiram nas campanhas eleitorais americanas (Putin e os hackers da Rússia),
ao ódio indiscriminado contra os muçulmanos, à renegociação intempestiva e
unilateral de tratados comerciais e militares (inclusive o da Otan), dentre
outras barbaridades.
A despeito de tudo isso, muitos conservadores ainda relutam
em dar o braço a torcer. Todavia, é crescente o desconforto entre eles. Devem
estar se perguntando: e se o Trump continuar a falar besteiras? E se ele ganhar
e fizer exatamente o que disse que vai fazer? O que vai acontecer com o
conservadorismo americano? Será ridicularizado para todo o sempre?
Já no Brasil, depois da completa desmoralização de Lula e do
Partido dos Trabalhadores durante o processo do mensalão, os socialistas também
ficaram em sinuca de bico, tendo que optar entre reconhecer a desonestidade do
PT e entregar o país à direita, ou continuar apoiando um projeto de poder
claramente corrupto. Salvo raras exceções, escolheram a corrupção.
Agora, acuados pela Lava-Jato e incapazes de dar o braço a
torcer, estão sendo forçados a adotar posições cada vez mais inverossímeis, o
que no longo prazo pode levá-los ao completo descrédito: Lula não sabia do
mensalão, Dilma não sabia da Eletrobras, Lula não sabia da OAS, Dilma não sabia
de Pasadena, Lula não sabia do Vaccari, Dilma não sabia de Belo Monte, Lula não
sabia do João Santana, Dilma não sabia do Paulo Bernardo, Lula não sabia do
Palocci, Dilma não sabia do Edinho, Lula não sabia do Bumlai, Dilma não sabia
do Odebrecht, Dilma e Lula, enfim, não sabiam do petrolão… Só rindo para não
chorar.
Por que será que os conservadores americanos e os
socialistas brasileiros, extremos opostos do espectro ideológico, estão sendo
forçados a incorporar, cada vez mais, o cinismo às suas ideologias? Será mera
coincidência? Acho que não. Apesar das diferenças ideológicas, os socialistas
brasileiros e os conservadores americanos parecem ter algo em comum.
Se você não acredita, olhe para a economia.
Depois de um aumento desenfreado nos gastos públicos, somado
a uma política de subsídio a grandes grupos empresariais via BNDES e a
programas sociais meramente redistributivos, o Brasil viu milhões de pessoas
saírem da miséria. Todavia, assim que a capacidade de endividamento do país
acabou, assim que as “pedaladas” e fraudes contábeis se tornaram insustentáveis
e muitos investimentos fracassaram por total inaptidão administrativa, a
realidade bateu à porta. O PIB caiu 10% em dois anos. A arrecadação minguou.
Hoje o Brasil tem 12 milhões de desempregados, a Petrobras
deve até a alma, os estados estão falidos, e a União precisa cortar cerca de R$
150 bilhões do Orçamento para recuperar o equilíbrio fiscal… Pessoas racionais
concluiriam: para melhorar de vida não basta gastar a esmo e redistribuir
renda. É preciso fazer investimentos que dão retorno. Sem capacitar a população
e aumentar a produtividade, a pobreza volta quando o limite do cheque especial
acaba. Os socialistas aprenderam a lição? Claro que não. A cada proposta de
corte nos gastos públicos e a cada menção da palavra “privatização”, gritam
slogans contra a volta da política neoliberal…
Por sua vez, depois do crescimento robusto da era Clinton e
do crescimento risível da era Bush, além da trágica ocupação do Iraque, os
conservadores americanos também viram suas doutrinas, militares e econômicas
serem refutadas uma a uma. A desregulamentação do sistema financeiro vai ajudar
a economia… O Obamacare vai quebrar o sistema de Saúde… O aumento dos gastos
públicos vai desvalorizar o dólar e gerar inflação… Não há aquecimento global…
Só bola fora. Mudaram de ideia? Claro que não. Continuam insistindo na tese de
que austeridade fiscal e redução de impostos, sobretudo para os mais ricos,
geram crescimento econômico. Para mostrar que estavam certos, aplicaram o
receituário ao estado de Kansas, e Kansas quebrou…
A verdade é que tanto a doutrina dos conservadores
americanos quanto a doutrina dos socialistas brasileiros só servem para gerar
narrativas cativantes e slogans baratos, mas não servem para balizar políticas
públicas sensatas.
De um lado temos os amigos do povo, os políticos altruístas
e sábios que vão usar o Estado para promover justiça social e salvar os pobres
da opressão dos ricos. Do outro, temos os grandes empresários e os
empreendedores destemidos, que, livres das regulações e da tirania do Estado,
vão desenvolver tecnologia, criar riquezas e beneficiar a todos.
A primeira história vende bem na América Latina, sobretudo
para artistas, sindicalistas e pseudointelectuais; a segunda vende bem no
interior dos Estados Unidos, sobretudo para brancos de classe média e
milionários. As duas narrativas são super simplificações da História econômica
e não resistem a um minuto de reflexão séria. Acontece que tanto os socialistas
de Lula quanto os conservadores de Trump são incapazes de pensar criticamente a
respeito de suas próprias crenças. Têm em comum uma profunda desonestidade
intelectual. É natural, portanto, que tendam ao cinismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário