De que servirão
instalações e legado olímpicos para os pobrezinhos da Cidade de Deus?
José Nêumanne
Nos dez primeiros dias da Olimpíada de Londres, em 2012, o
Brasil figurava na 28ª colocação no quadro de medalhas, 1 acima da 29ª até as
18 horas desta segunda-feira, com 1 medalha de prata mais e 2 de bronze menos,
1 mais no total: 1 de ouro, 3 de prata e 4 de bronze. São 8 agora e foram 7 há
quatro anos. A delegação participante desta edição é recordista, com 465
atletas, 188 mais que os 259 que foram a Londres (79,5% maior, portanto) e 206
mais que o recorde anterior (277), na de Pequim. O Comitê Olímpico Brasileiro
(COB) estabeleceu a meta de chegar ao 10º lugar em pódios, posição atual da
Coreia do Sul com 6 de ouro, 3 de prata e 5 de bronze, 14 no total, quase o
dobro das conquistas brasileiras até agora. E o que vale mais: 6 a 1 em número
de medalhas de ouro. Na Rio 2016 serão disputadas 306 provas, quatro a mais do
que os 302 de 2012.
No último fim de semana, em entrevista à GloboNews, emissora
oficial do evento, com 16 canais de transmissão, o presidente do COB e do
Comitê Organizador da Rio 2016, Carlos Artur Nuzman, qualificou como “positivo”
o balanço da primeira semana do evento. Na certa, ele não considerou as
perspectivas de desempenho atlético, longe de assegurar o acesso do País ao
Primeiro Mundo dos campeões olímpicos, mas o mantém no vexaminoso lugar de
sempre, com poucos acessos ao pódio, se comparados com inscrições de atletas em
disputas. Ainda assim, o ufanismo irrealista do atleta que virou cartola não
produziu a primeira parolagem pública a virar notícia na primeira semana dos
torneios.
Antes do festejado espetáculo de abertura, que encantou
jornalistas estrangeiros, prontos para dar notícias sobre vítimas da zika e da
chikugunya e velejadores contaminados pelas fezes boiando na deslumbrante Baía
da Guanabara, que inspirou o compositor Cole Porter, começaram a pipocar no
noticiário os senões e, depois deles, a enxurrada de declarações desastrosas,
que ascendeu ao pináculo do poder político.
Uma bala perdida estilhaçou o retrovisor de uma viatura da
Guarda Nacional, convocada a participar da segurança da capital olímpica
mundial, mas logo fomos tranquilizados: aquele “incidente” nada teve que ver
com os Jogos Olímpicos. Que, no fim das contas, nem tinham sido inaugurados.
Primeiros a ocupar a bela Vila Olímpica inacabada, os
atletas australianos nem entraram em seus alojamentos, de vez que não dispunham
de condições adequadas. Diante das notícias, o prefeito parlapatão da antiga
Cidade Maravilhosa brincou com a hipótese de providenciar cangurus para
divertirem os incômodos hóspedes incomodados. A piada infame não foi levada em
conta e Eduardo Paes terminou ganhando um canguruzinho de pelúcia. Antes dos
australianos, os homens da Guarda Nacional não encontraram chuveiros nem camas
adequadas nas casas que lhes foram reservadas e também foram vitimados pela
incúria dos gestores.
O deslumbramento dos espectadores com o espetáculo de
abertura não impediu os desastres da infraestrutura. Plateias das arenas não
viram os jogos porque as filas impediram. O público que compareceu à estreia do
torneio de futebol feminino perdeu parte do jogo porque alguém escondeu o
cadeado que abriria um portão da Arena Nilton Santos, craque que não merecia
homenagem desse jaez. No primeiro dia, faltou comida nos equipamentos
esportivos, pois não havia quem a fornecesse na quantidade necessária. Foram
convocados concessionários de quiosques, mas as refeições não atenderam à
procura por falta de quem as servisse. Garçons foram contratados, mas aí faltou
a matéria-prima demandada.
Até o décimo dia depois da abertura, não se registrou nenhum
dos temidos ataques terroristas. Isso, contudo, não impediu que houvesse uma
baixa: o PM Hélio Vieira Andrade, de Roraima, foi morto com um tiro na cabeça,
dirigindo uma viatura ocupada por outros dois militares de fora do Rio: um
capitão do Acre e um praça do Piauí. Não foi um “acidente”, como definiu o
presidente em exercício, Michel Temer, de forma pra lá de desastrosa. E, de
fato, o assassinato não “deslustrou” a Olimpíada. Serviu, sim, foi para exibir
a sesquipedal desumanidade insensível dos poderosos chefões de nossa República.
Ocupada em se livrar do impeachment inevitável, a presidente
afastada, Dilma Rousseff, não se dignou sequer a lamentar a morte do agente a
serviço da lei. O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou que a
Guarda Nacional errou, por ter entrado em local ocupado por traficantes de
drogas. Nada disse de novo: todos sabem que tais traficantes invadiram partes
do território brasileiro como se comandassem facções do Estado Islâmico em
terreno hostil. O tido como inviolável esquema de segurança não havia contado
com esse fato notório para qualquer brasileiro de posse de suas faculdades
mentais.
Aliás, Alexandre de Moraes preferiu disputar uma modalidade
na qual o Brasil é imbatível: brigar com um colega do governo por um lugar no
pódio dos noticiários. Às vésperas da Olimpíada, com a Amazônia e a capital do
Rio Grande do Norte ardendo, ele instalou seu QG no Rio para se mostrar ao
mundo como comandante do aparato federal de segurança da Olimpíada, competindo
com o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio
Etchegoyen. Menos exibicionista do que o civil, o militar optou por
desaparecer.
Ao inventar o balanço “positivo” da Rio 2016, seu
encarregado em chefe, Nuzman, perdeu uma excelente ocasião para mostrar que a
incompetência dele e de sua equipe produziu pelo menos uma revolução nos
hábitos e costumes nacionais. Logo no começo da Olimpíada, um ônibus da
organização com jornalistas patrícios e estrangeiros foi acertado por um
“objeto contundente” desconhecido. Antes que a polícia fluminense o
identificasse, outro similar foi atirado contra outro ônibus no mesmo local. A
diferença entre os dois incidentes (ou melhor, “acidentes”, como prefere o
presidente) é que o segundo, ao contrário do primeiro, não feriu ninguém. Ambos
são adicionados aos crimes sem autoria conhecida na cidade. Só que desta vez
ninguém pôs tranca na porta arrombada.
Nenhum desses casos produziu feridos, graças a Deus. Da
mesma forma que o assalto à mão armada a atletas americanos saindo de uma festa
na Hípica. Ao contrário de seus colegas, Ryan Lochte, nadador que conquistou
medalha de ouro num revezamento, não se deitou no asfalto, como exigiam seus
assaltantes. Nem por isso o grupo foi executado friamente, como sempre o fazem
os bandidos. E assim estes não prejudicaram a imagem do Rio e do Brasil no
exterior seria se tivessem assassinado (por “acidente”?) um ianque com uma
medalha dourada no peito, mantido intacto, em prova inconsciente de respeito
hospitaleiro ao insigne visitante.
Idêntica cortesia foi negada ao atleta pelo ministro dos
Esportes de Banânia. Do alto de seu espírito hospitaleiro de carioca da gema,
Leonardo Picciani, o garoto cujas bochechas denotam uma vida sedentária, sem
pretensões esportivas, criticou o visitante porque este não estaria em hora nem
em lugar apropriados. Segundo a autoridade, cujo topete é digno dos “embalos de
sábado à noite” nos anos 1970, a segurança da Olimpíada no Rio de Janeiro é
“absolutamente eficiente” nas competições e nos treinos em Deodoro, no Engenho
de Dentro e nas arenas. Sua constatação é desmentida pelas falhas na revista
pessoal e de bolsas de pessoas com ingresso e pelos flagrantes postados pela
delegação chinesa de pessoas se escondendo de um tiroteio. Não foi só para
contrariá-lo que, nesta segunda-feira, 15, rompeu-se um cabo de aço que
sustentava uma câmara de TV, que desabou, atingindo sete pessoas, quatro delas
levadas ao hospital.
No instante em que Picciani perpetrava aquela idiotice, o
sociólogo britânico David Goldblatt, especialista em Jogos Olímpicos, dava
entrevista a Silo Bocanera, da GloboNews, desmentindo a bazófia de que
Olimpíadas deixam legados de interesse social, como garantiram Lula, Sérgio
Cabral e Eduardo Paes em Genebra, em 2009, após o anúncio da vitória do Rio
sobre Tóquio, Madri e Chicago. O scholar disse ainda que todo o lucro de tais eventos vai
para o COI, o maior culpado pela crônica do desastre anunciado em nossos
gaiatos trópicos à beira-mar. E reduziu a pó a teoria de Paes de que a iniciativa
privada assumiu a maior parte das despesas na primeira Olimpíada na América do
Sul. Para Goldblatt, esta só serve para enriquecer corruptos, pois se gasta
mesmo é em obras públicas, que invariavelmente viram elefantes brancos, sem
serventia para nada. Até agora não apareceu ninguém para informar de que servirão
o Parque Olímpico de Deodoro e o Bulevar do Porto para os pobrezinhos da Cidade
de Deus, onde nasceu e foi criada a judoca de ouro Rafaela Silva.
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