Por Rubem Braga
Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de
nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era
cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater
outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma
acusação, um gesto agudo nos apontando.
Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com
mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de
alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram
toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos
quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das
buzinas, às vezes o ruído do elevador.
Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar;
tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se
aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá
fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a
campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta
escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse
quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo
seria invadido.
No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o
pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas
nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já
tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No
apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar
ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo
não era um sonho.
O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que
vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia
dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que
projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo
corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais.
Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria
vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e
inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas
limpas, de lençóis de linho.
O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia
menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e
muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós
dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da
população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com
maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos
defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal,
fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que
importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus
milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um
homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de
um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos
haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns
minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha
e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta
da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse
certeza de que havia alguém lá dentro.
Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se
afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa
felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce,
essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos
já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse
entrado na minha.
Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além
do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez
que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz,
eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão
esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos
gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para
que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um
ritmo imperceptível como um lento bailado.
Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha
fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres;
vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que
horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol
extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa,
senti vagamente que aquecia meus sapatos.
Fiquei um instante parado, encostado a parede, olhando
aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se
cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um
grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o
homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao
peito, como se fosse a minha salvação.
E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente
abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara;
alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já
havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o
telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado,
desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num
olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não
os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto,
ainda havia uma inútil, resignada esperança.
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