Tom Hanks e Denzel
Washington no filme Filadélfia (1993), que aborda o drama da aids no início dos
anos 80
Por Rafael Galvão
Lembrei uns dias atrás de um dos tantos motivos para odiar
os anos 80, esses que os últimos tempos têm edulcorado e levado a uma
reapreciação degenerada da sua música horrível, da sua moda tenebrosa, do seu
cinema cheio de maneirismos infelizes.
Aquela década viu a primeira geração a chegar à puberdade
sob o fantasma aterrorizante da Aids.
Para quem nasceu nos anos 90 a Aids é uma doença grave,
incurável, e que condiciona em maior ou menor grau a vida sexual de todos. Mas
naqueles tempos um diagnóstico de Aids era uma sentença de morte quase
imediata, e dolorosa. Eu ainda lembro da confusão que cercou a sua descoberta,
a maneira como as pessoas inicialmente a chamavam de “praga gay”, e de como o
pânico se espalhou aos poucos, mas com firmeza, ao verem que gays não eram suas
únicas vítimas.
Uns anos atrás, conversando com Almir Santana, coordenador
da luta anti-Aids em Sergipe, comentei que o número de contaminações parecia
estar diminuindo. Ele, delicadamente, me deu uma aula e tentou me ensinar a não
falar besteira sobre o que eu não entendo. Este blog é prova de que ele não
conseguiu.
O que mais me surpreendeu foi a informação de que, depois de
anos em declínio, o número de infecções vinha aumentando em três segmentos:
jovens gays do sexo masculino, velhos e mulheres casadas. Os dois últimos me
pareceram bem lógicos: os velhos ganharam o presente inestimável do Viagra, mas
não os novos hábitos; mulheres casadas não costumam usar preservativos com seus
maridos, mesmo os que têm um pé fora do armário.
Eu só não consegui entender imediatamente o caso dos jovens,
que eu achava terem aprendido com o sofrimento dos que lhes precederam — até
lembrar que adolescente é animal idiota, e essa juventude usa camisinha
principalmente para evitar filhos, não para evitar morrer. Além disso, o fato
de que aparentemente pode-se viver hoje normalmente com o vírus faz com que a
urgência em evitá-lo diminua.
A geração anterior à minha lembrava dos tempos anteriores,
tempos perdulários de fartura e exuberância e alegria de viver; e por isso os
mais odaras tentavam entender o que se passava, os mais místicos viam a Aids
como uma espécie de punição pelo desbunde dos anos 70. A minha, que não tinha
vivido nada disso, tinha apenas o medo e a obrigação de desenvolver uma visão
nova sobre a moral sexual, algo que tentasse combinar a liberdade alcançada com
a ameaça constante de morte.
Isso se tornou pior quando Henfil e seus irmãos foram
condenados à morte por receber transfusões de sangue contaminado. Alguns anos
depois, como se a situação já não fosse crítica o suficiente, Magic Johnson
anunciou que tinha o vírus e nós levamos um golpe fatal no pé do ouvido,
coitados de nós, que então nos víamos diante da prova definitiva de que era
possível pegar Aids com mulheres. “É, gente. Ferrou de vez.”
Lembrei dessas coisas que o tempo deveria ter enterrado
porque vi uns trechos de uma série recente da Globo, ambientada no início dos
anos 80, que tinha entre seus personagens uma moça morrendo de Aids. Me
impressionou a maneira como ela era bem tratada, como as pessoas bebiam do seu
copo, beijavam sua boca. Tão bonito.
E tão falso. Era tudo mentira. Esse cenário quase idílico,
do amor superando a incompreensão e a ignorância, não existiu. Naqueles anos 80
a regra era o medo, e a falta de certezas. As pessoas tinham medo. Medo de
abraçar, medo de apertar a mão, medo até de respirar o mesmo ar que o
“aidético”, era assim que os portadores de HIV eram chamados, respirava. Certo,
não demorou tanto assim para entendermos que abraço não transmitia Aids. Mas
nenhum pesquisador tinha certeza absoluta de que beijo não transmitia. E o medo
continuou por muito tempo.
Já faz um bom número de lustros, isso. Os anos passaram, a
cura não veio mas o pânico passou. E como o esquecimento leva sempre a distorções,
hoje as pessoas até acreditam piamente que os anos 80 foram uma época boa.
Mas os que vivemos aqueles anos sombrios temos uma missão
diante das novas gerações. Temos o dever cívico e moral de descortinar a
tragédia daqueles dias. Esses eram os anos 80, os bons anos 80 em que sentíamos
que a vida tinha nos pregado uma peça de muito mau gosto e encerrado a festa
justamente na hora em que conseguíamos driblar os leões de chácara e entrar. E
como se não bastasse, toda essa tragédia se desenrolava ao som da música
desgraçada de Rosana, Yahoo e Kátia Cega.
Nenhum comentário:
Postar um comentário