Em novembro, chegou às livrarias brasileiras Homo deus: uma breve história do amanhã,
de Yuval Noah Harari, autor de Sapiens.
Após mostrar, no livro anterior, toda a evolução da espécie humana até chegar
nos dias atuais, seu novo trabalho vai além: Homo deus especula qual será o futuro da humanidade na Terra.
Em agosto, quando o livro foi lançado na Inglaterra, David
Runciman escreveu para o The Guardian sobre os principais temas que Yuval Noah
Harari aborda no livro, texto que reproduzimos a seguir (tradução de Carlos
Alberto Bárbaro).
* * *
No âmago desse livro fascinante reside uma simples, mas
arrepiante, ideia: a natureza humana será transformada no século XXI porque a
inteligência está se desacoplando da consciência. Não, não vamos construir tão
cedo máquinas que, como nós, possuam sentimentos, o que se chama consciência.
Os robôs não se apaixonarão uns pelos outros (o que não significa que sejamos
incapazes de nos apaixonar por robôs). O fato é que já construímos máquinas —
enormes redes de processamento de dados — que conseguem identificar nossos
sentimentos melhor do que nós mesmos: isso é inteligência. O Google — o
mecanismo de busca, não a empresa — não possui crenças ou desejos próprios. Ele
não se importa com o que buscamos e nem vai ficar ofendido com o nosso
comportamento. Mas ele consegue processar esse comportamento para saber o que
queremos antes que nós mesmos o saibamos. Isso tem o potencial de alterar o
significado de ser humano.
Em seu livro anterior, o best-seller mundial Sapiens: uma breve história da humanidade,
Yuval Noah Harari abordou os últimos 75 mil anos da história humana para nos
lembrar de que não há nada de especial ou essencial quanto àquilo que somos.
Somos um acidente. O Homo sapiens é apenas um dos modos possíveis de se ser
humano, um acaso da evolução, como o de qualquer outra criatura no planeta.
Aquele livro se encerra com a reflexão de que a história do Homo sapiens pode
estar chegando ao fim. Ao mesmo tempo em que estamos no auge do nosso poder, é
possível, porém, que tenhamos chegado a seu limite. Homo deus: uma breve história do amanhã parte dessa reflexão para
explicar como nossa incomparável capacidade de controlar o mundo que nos cerca
está nos transformando em algo novo.
As provas de nosso poder estão por toda parte: não apenas
conquistamos a natureza, mas começamos também a derrotar os piores inimigos da
humanidade. A guerra é cada vez mais obsoleta; a fome é rara; as doenças estão
na defensiva no mundo todo. Obtivemos esses triunfos ao construir redes cada
vez mais complexas que consideram os seres humanos como unidades de informação.
A ciência evolucionária nos ensina que, em certo sentido, não somos senão
máquinas de processamento de dados: também nós somos algoritmos. Ao manipular
esses dados, podemos determinar nosso destino. O problema é que outros
algoritmos — aqueles que construímos — podem fazer isso de maneira muito mais
eficiente que nós. É isso o que Harari quer dizer ao falar no desacoplamento da
inteligência e da consciência. O projeto da modernidade foi erigido sobre a
ideia de que os indivíduos são a fonte tanto do significado quanto do poder.
Somos concebidos para fazer escolhas: como eleitores, como consumidores, como
amantes. Isso, porém, não é mais verdade. Somos agora o que dá às redes o seu
poder: elas usam nossas noções de significado para determinar o que vai
acontecer conosco.
Nada disso constitui novidade. O Estado moderno, que já
conta cerca de quatrocentos anos, não passa na verdade de uma outra máquina de
processamento de dados. O filósofo Thomas Hobbes, escrevendo em 1651, chamou-o
“autômato” (ou o que poderíamos chamar de robô). Sua qualidade robótica é a
fonte de seu poder, e também a sua ausência de sentimentos: Estados não possuem
consciência, que é o que lhes permite, por vezes, fazer as coisas mais
terríveis. O que mudou agora é que há máquinas processadoras que são bem mais
eficientes do que os Estados: como Harari afirma, os governos descobriram ser
quase impossível acompanhar o ritmo do avanço tecnológico. Tornou-se também
muito mais difícil sustentar a crença — compartilhada por Hobbes — de que por
trás de cada Estado existem seres humanos reais, de carne e osso. A insistência
moderna acerca da autonomia do indivíduo está vinculada à visão de que seria
possível encontrar o coração deste mundo sem coração. Se se continuar
arranhando uma burocracia sem rosto será possível, eventualmente, descobrir um
funcionário público com sentimentos reais. Faça isso com uma ferramenta de
busca, porém, e tudo o que se descobrirá são locais de dados.
Não estamos senão no início desse processo de transformação
orientada por dados, e Harari diz que não há muito o que possamos fazer para
frear o processo. Homo deus é um
livro do gênero “fim da história”, mas não no sentido bruto de acreditar que as
coisas chegaram à sua conclusão. Antes o oposto: as coisas estão se movendo tão
rápido que é impossível imaginar o que o futuro possa trazer. Em 1800, era
possível conjecturar sobre como seria o mundo de 1900 e qual seria nosso lugar
nele. É isto o que é a história, uma sequência de eventos em que os seres
humanos são os protagonistas. Mas o mundo de 2100 é agora, no presente, quase
inimaginável. Não temos a mínima ideia de onde vamos nos encaixar, se é que
vamos. Podemos ter construído um mundo que não tem lugar para nós.
Considerando o quão alarmante é pensar assim, e uma vez que
ainda não chegamos lá, por que não fazer algo para impedir que isso ocorra?
Harari supõe que a crença moderna de que os indivíduos comandam seu destino
nunca foi muito mais do que uma crença. O poder real esteve com as redes.
Indivíduos são criaturas relativamente impotentes, não sendo páreo para leões
ou ursos. É o que os indivíduos podem fazer como grupos que lhes permitiu
assumir o controle do planeta. Tais agrupamentos — corporações, religiões,
Estados — compõem agora uma vasta rede de fluxos de informação interconectados.
Encontrar pontos de resistência, onde unidades menores podem resistir às ondas
de informações afogando o mundo, torna-se mais difícil a cada minuto.
Alguns têm desistido da luta. No lugar dos princípios
fundadores da modernidade — o liberalismo, a democracia e a autonomia pessoal —
há uma nova religião: o dataísmo. Seus seguidores — muitos deles moradores do
Vale do Silício, na Califórnia — colocam a sua fé na informação,
encorajando-nos a enxergá-la como a única fonte verdadeira de valor. Somos
aquilo que fornecemos para o processamento de dados. Potencialmente, há aí uma
enorme vantagem, a saber: iremos enfrentar cada vez menos obstáculos para
conseguir o que queremos, porque a informação que necessitaremos será
imediatamente acessível. Nossos gostos e nossas experiências irão se fundir.
Nossas expectativas de vida também poderão aumentar consideravelmente:
dataístas acreditam que a imortalidade é a próxima fronteira a ser cruzada. Mas
a desvantagem é óbvia, também. Quem seremos “nós” depois de tudo? Nada mais do
que uma acumulação de pontos de informação. As distopias políticas do século XX
buscavam esmagar os indivíduos com o poder do Estado. Isso não será necessário
no século em marcha. Como diz Harari: “No século XXI há mais probabilidade de
que o indivíduo se desintegre suavemente por dentro do que brutalmente esmagado
de fora”.
As corporações e os governos continuarão a prestar homenagem
às nossas individualidades e necessidades características, mas, a fim de
satisfazê-las, terão de “decompor seus subsistemas bioquímicos”, todos eles
permanentemente monitorados por poderosos algoritmos. Há aí também um aspecto
político distópico: os primeiros convertidos — os indivíduos que se inscreverem
primeiro para o projeto dataísta — serão os únicos que ainda terão algum tipo
de poder real e se tornarão relativamente intocáveis. Fazer parte dessa nova
super-elite será incrivelmente difícil. Serão exigidos níveis heroicos de
educação e nenhuma dose de escrúpulos em fundir sua identidade pessoal com
máquinas inteligentes. A partir de então, será possível se tornar um dos novos
“deuses”. É uma perspectiva sombria: uma pequena casta sacerdotal de videntes
com acesso à melhor fonte de conhecimento, e o resto da humanidade como simples
ferramentas de seus vastos esquemas. O futuro poderia ser uma versão digital
com carga plena do passado distante: o Antigo Egito multiplicado pelo poder do
Facebook.
Harari é cuidadoso o suficiente para não afirmar que essas
bizarras previsões irão de fato ocorrer. O futuro, afinal, é desconhecido. Ele
reserva suas opiniões mais contundentes para o que tudo isso deve significar
para o estado atual das relações entre os seres humanos e os animais. Se a
inteligência e a consciência estão se separando, então isso situa a maioria dos
seres humanos na mesma posição que os outros animais: seres capazes de sofrer
nas mãos dos possuidores de inteligência superior. Harari não demonstra estar
muito preocupado com a possibilidade de robôs virem a nos tratar como tratamos
as moscas, com violenta indiferença. Antes, ele quer que reflitamos sobre como
nós estamos tratando os animais em nossas vastas fazendas industrializadas. Os
porcos, sem dúvida, sofrem ao viver em condições precárias ou ao serem
violentamente separados das suas crias. Se concluímos que esse sofrimento não
conta por não estar aliado a uma inteligência superior, então estamos construindo
uma vara para nosso próprio lombo. Logo, o mesmo será verdade em relação a nós.
E qual será então o preço do nosso sofrimento?
Homo deus é um
livro muito inteligente, repleto de percepções afiadas e sagacidade mordaz.
Mas, e Harari provavelmente seria o primeiro a admitir, é inteligente apenas
pelos padrões humanos, que não são nada de mais. Pelos padrões das máquinas
mais inteligentes é pouco claro e especulativo. Os conjuntos de dados são
bastante limitados. Seu poder real vem do sentido de uma consciência individual
por trás dele. É um livro peculiar e atraente, com um toque de gelo em seu
coração. Harari se preocupa com o destino dos animais em um mundo humano, mas
escreve sobre as perspectivas para o Homo sapiens em um mundo orientado por
dados com uma despreocupação sublime. Tenho que admitir que achei o livro
profundamente instigante, mas isso pode ser por causa de quem eu sou (além de
tudo, um homem). Nem todos vão achar o mesmo. Mas é difícil imaginar que alguém
poderia ler este livro sem sentir uma espécie de vertigem ocasional. Nietzsche
escreveu certa vez que a humanidade estaria prestes a navegar em mar aberto,
após ter finalmente deixado para trás a moral cristã. Homo deus nos faz sentir como se estivéssemos de pé à borda de um
penhasco ao fim de uma longa e árdua jornada. O que passou não parece mais tão
importante agora. Estamos prestes a dar um passo no vazio.
Texto original: The Guardian
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