Audálio Dantas, um
jornalista com alma de poeta
Por Joaquim Ferreira dos Santos
O jornalismo é feito o samba do Nelson Sargento sobre um
grande amor em perigo — agoniza mas não morre. É por isso, depois de um maio
com muitas perdas, que se deve dizer apenas um breve “descansa em paz” para
Audálio Dantas, o grande repórter da geração de ouro da revista “Realidade”. No
dia 30, ele fez a passagem desta para uma outra edição.
Que seja suave seu encontro com os coleguinhas que também já
preencheram as laudas do tempo, desceram às oficinas mais profundas desta
existência impressa em off-set e não podem mais, por esse motivo de força
maior, participar dos plantões de fim de semana. O prazo da matéria encerrou.
Só há espaço suficiente na página para agradecer às fontes exclusivas por
tantos furos em off, dar uma olhada de soslaio na estagiária de calcanhar sujo
e fechar este caderno. Aproveitando a distração do ombudsman, pode substituir o
ponto final seco do jornalismo moderno pela vibração vintage e agradecida de
muitos pontos de exclamação!!!!
Ganhava-se pouco, mas era divertido e chegou a hora de
disparar ao mesmo tempo o teclado de todas as Remingtons da Redação, jogar para
o alto todas as bolinhas de papel de lauda que estiverem à mão, e saudar
Alberto Dines, o editor do “Jornal do Brasil” nos anos 1960, também ido em maio
para algum outro desafio. Risque-se com tinta alegre o seu nome do “seboso”, o
fichário com os telefones de jornalistas e fontes, uma peça de higiene tão
precária que um dia, décadas depois de uso coletivo na Redação, amanheceu com a
inscrição na capa: “Interditado pela Saúde Pública”.
Todas as pautas foram cumpridas por Dines, entregues ao
chefe de reportagem com duas cópias em carbono e no dia seguinte registradas
com a glória da chamada no alto da primeira. Que vá em sossego. Quando
encontrar o Zózimo Barrozo do Amaral, sua cria, devolva-lhe com carinho a
pergunta que ele transformou em bordão de jornalistas. Ao chegar na roda do
cafezinho, o elegante colunista social perguntava: “E aí, come-se alguém por
seu intermédio?”.
Não há mais textos para copidescar, velho Dines, nenhuma
necessidade de pegar a caneta esferográfica e cortar expressões rebarbativas
como “via de regra”, “decúbito dorsal” ou “valente soldado do fogo”. O grande
trabalho acabou. No sutiã do seu obituário, a linha solta que o “JB” inventou
para segurar a manchete, o redator-chefe das estrelas universais escreverá “o
jornalismo nunca mais foi o mesmo”. Que essa despedida para longe do seu
observatório de imprensa se faça ao velho estilo das noites de sexta-feira.
Diante do “pescoção”, a tarefa hercúlea de fechar os jornais de sábado, de
domingo e de segunda-feira, os jornalistas, ainda sob a eufórica liberdade do
politicamente incorreto, abriam garrafas de uísque por todos cantos da Redação.
Só assim, calibrados, partiam na medida e nada mais para realizar a maratona de
títulos no formato 3 linhas de 13 toques.
Alberto Dines, o olhar
da resistência no jornalismo
Outra garrafa de uísque deve ser aberta em honra a Giuseppe
Amato, que também em maio cobriu pela última vez sua Olivetti Lettera com a
capa de plástico e deixou de machucar as pretinhas, o jeito não pedante de um
jornalista evitar o verbo “escrever” e ao mesmo tempo uma referência
brincalhona, ainda sem risco de ser policialmente interpretada, às teclas
escuras da máquina. Quando chegava no andar da Redação, o ascensorista do
prédio do jornal anunciava “Parque de diversões!” e Giuseppe Amato, às vezes
vestido com a camisa do Fluminense, às vezes chamando alguém de “velho
atrasador de jornais”, era mais um dos motivos dessa alaúza. Havia também quem
pautasse o repórter estagiário para ir ao Zoológico e entrevistar seu novo
diretor, o Dr. Leão.
Se Giuseppe Amato era um italiano que sonhava ser um
malandro carioca, o português Borges Neto, seminarista na adolescência, cruzava
a Redação com a paciência de um diácono. Estava convencido de que praticava os
mandamentos de Deus revisando com rigor carinhoso o mau uso da língua, caçando
cacófatos, pleonasmos, redundâncias e a abundante clicheria embutida no
“tresloucado gesto”, no “pranteado pai” e no “batalhão de fotógrafos”. Sua
Bíblia era o dicionário. Um dia colocou a mão sobre ele e pediu ao repórter, em
nome de uma santíssima trindade do jornalismo formada por Joel Silveira, Paulo
Francis e Pompeu de Souza, que evitasse a desgastada expressão “rosto novo” — a
não ser que o assunto fosse cirurgia plástica.
Eram grandes jornalistas os que se foram em maio. Se
questionados pelo chefe de Redação com o clássico “Temos isso?”, todos
responderiam com a eficiência do “Temos mais”. Destacaram-se em Redações onde
hoje a dura realidade do mercado de notícias exige foco radical no
profissionalismo e não permite tamanho repertório de folclores divertidos. A
esses craques da pirâmide invertida, da entrevista ping-pong e do
salário-ambiente juntou-se, também em maio, a doce figura de Ramiro Alves,
liberado de cumprir a escala de plantões terráqueos desde o dia 24. Descansaram
e aqui vão esses 4.142 caracteres em homenagem. O resto é calhau, barriga, fake
news. O samba, o grande amor e as Redações até agonizam. Não morrem.
Transformam-se.
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