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terça-feira, julho 16, 2019

Parati e Paiaiá



Por Mouzar Benedito

Está rolando mais uma edição da Flip, a famosa Festa Literária Internacional de Parati, este ano homenageando Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões”. Canudos, certamente, é um tema recorrente das conversas na Flip deste ano. Poucos dias depois, outra festa literária se inicia, bem longe da charmosa Parati, mas tem algo a ver.

São José do Paiaiá, no município de Nova Soure (Bahia), será a sede da II Festa Literária da Biblioteca do Paiaiá. A primeira ocorreu há dois anos, e eu participei dela. Participaria desta que vai acontecer de 24 a 26 de julho, mas não posso por problemas pessoais.

Então, o que tem a ver com a Flip? É que foi de Nova Soure que Antônio Conselheiro partiu para fundar o arraial de Belo Monte, na fazenda Canudos.

Walnice Nogueira Galvão, grande entendedora da obra de Euclides da Cunha, deu a palestra inicial na Flip. E ela esteve no Paiaiá. Lá, conheceu a biblioteca fundada por uma espécie de Dom Quixote do Sertão, Geraldo Moreira Prado, mais conhecido como Alagoinhas (o apelido, ganhado em São Paulo, se deve à proximidade da sua terra com esta que é a maior cidade da região).

É uma biblioteca simples, onde crianças e adultos percorrem os corredores, retirando das estantes os livros que lhes interessam e leem em algumas mesas ali. O detalhe é que o Paiaiá tem 600 habitantes, e a biblioteca tem 120 mil volumes! Segundo a própria Walnice Nogueira Galvão pesquisou e concluiu, é a maior biblioteca em comunidade rural do mundo. E segundo meus cálculos, nela há 200 livros por morador, incluindo recém-nascidos. Onde mais tem uma biblioteca dessas?

Alagoinhas, o responsável




Geraldo saiu do Paiaiá nos anos 1960, com apenas o curso primário concluído. Veio para São Paulo, trabalhou, entre outras coisas, como porteiro de um prédio na Boca do Lixo. Com tempo ocioso na portaria e curiosidade, leu muito. Sonhava ser médico. Fez o exame de madureza (supletivo que dava diploma equivalente ao segundo grau de hoje) e acabou estudando mesmo foi História, na USP. Morou no Crusp, o Conjunto Residencial da USP, que foi ocupado pelos militares em 17 de dezembro de 1968, quatro dias depois da edição do famigerado AI-5.

Eu morava lá também, estudava Geografia, e fomos todos para o presídio Tiradentes. Alguns de nós (eu inclusive) fomos levados para o Dops em seguida. Ele escapou dessa.

Havia um bando de desgarrados com uma militância política, etílica e musical e nós fazíamos parte desse bando. Continuamos amigos e militando nessas coisas todas e na literatura também.

O Alagoinhas fez mestrado e doutorado, tornou-se pesquisador, professor universitário, um monte de coisas. Em 2002, morando no Rio de Janeiro, separou da mulher e teve que mudar para uma casa menor. O que fazer com os mais de 50 mil livros que tinha? Não cabia tudo na nova moradia. Tinha que “dispensar” pelo menos 12 mil livros. Vender para sebos, de jeito nenhum!

Ari, um sobrinho dele, sugeriu: por que não manda para o Paiaiá e abre uma biblioteca aqui? Topou. Foi o início da biblioteca. Muitos amigos ficaram sabendo e foram doando livros. Até o Antônio Cândido mandou para lá algumas obras preciosas. O próprio Ari virou um militante da literatura, estudou letras na Universidade Federal de Sergipe e, quando o conheci, estudava biblioteconomia.

Mas e daí? O que adianta ter 200 livros por habitante, se ninguém ler? Uma grande preocupação do Alagoinhas é esta, que a biblioteca não seja um mero depósito de livros. Então, promove regularmente atividades para formar leitores, não só com moradores locais, mas de toda a região.

Pinga inflacionada

Antes de “falar” do evento que vem aí, umas lembranças, do evento anterior, em 2017, a I Festa Literária da Biblioteca do Paiaiá.

Fui um dos palestrantes, e meu tema era o que rola de imaginário nas cabeças de nós brasileiros, principalmente dos sertões. Saci, Lobisomem… Tinha gente que entendia disso no Paiaiá, e o papo foi muito bom. E ouvi palestras de gente das universidades federais de Sergipe e da Bahia, da Universidade de Feira de Santana, de gente do Museu do Índio do Rio de Janeiro, e de alguns outros órgãos, até de Brasília. E houve também teatro infantil, música etc.

O que mais me chamava a atenção era o fascínio de crianças que mal tinham acesso a algum livro e naquele momento, com toda a liberdade, vasculhavam tudo, com curiosidade, os olhos brilhando. Para cada atividade chegavam uns quatro ou cinco ônibus lotados, vindos de várias cidades.

Passei quatro dias lá. No dia em que cheguei, fui direto para a biblioteca, com outros participantes e de lá fomos tomar umas cervejas numa birosca do outro lado da rua. Uma árvore grande, dava sombra às mesas embaixo, e a conversa rolou solta. Depois de mais de duas horas conversando e bebendo, falei: “Gente… Isso aqui me lembra a minha terra no início dos anos 1950, quando eu era criancinha. Nesse tempo todo em que estamos aqui não passou nenhum carro, nenhum veículo motorizado”.

Olhamos para os dois lados e não havia sequer um automóvel ou caminhão estacionado. E estávamos no meio da rua considerada principal, na verdade, pode-se dizer, única rua, porque as outras são travessas dela. É uma rua bem larga, com casas baixas. A mais alta é a da biblioteca, pois o Geraldo construiu em cima dela uma sala para palestras, debates e apresentações artísticas, e em cima dessa sala, o apartamento dele. Com esses três andares, a casa é conhecida como o Empire State do Paiaiá. E com a certeza de que não haveria trânsito, uma boa tenda foi erguida para atividades no meio da rua.

Depois de algumas cervejas me bateu a vontade de tomar uma cachacinha. Não tinha nesse bar. Mas recomendaram: uns duzentos metros mais à frente tinha a vendinha do Pedro Puro, que vendia cachaça, e mais: ele, com 93 anos de idade e sarando de uma chikungunya, era conhecedor dos efeitos medicinais das garrafadas de cachaça com pinga e ervas ou raízes. Fomos lá. Um rapaz que já tinha ido ao Paiaiá antes me avisou: “Tem um problema. A pinga aumentou muito de preço. No ano passado custava dez centavos a dose, agora tá custando 25 centavos”.

Éramos seis pessoas. Pedi uma com umburana, outros escolheram sabores diferentes ou pinga pura e eu paguei a rodada: R$ 1,50. Resolvemos experimentar outros sabores e acabei pagando no total quatro rodadas para seis pessoas. Gastei, nas 24 doses, R$ 6,00!

Na mensagem que o Alagoinhas me mandou perguntando se ainda dava pra eu ir lá, me deu a notícia, transmitida pelo celular: “Estou na venda do Pedro Puro. A pinga não aumentou nestes dois anos, continua a 25 centavos a dose”.

O que vai ter este ano




Com mais apoio de algumas instituições, apesar da crise, a Festa deste ano vai ter muito mais atividades. Terá circo, apresentações de teatro, banda de pífano, feira de produtos agroecológicos e artesanato rural, orquestra, bumba-meu-boi, projeção de filmes e cavalgada, além, é claro, das atividades literárias, que incluem venda, troca e doação de livros e revistas.

Muita gente boa estará lá, palestrando, inclusive, Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, culminando, no encerramento, com um baile na rua, em frente ao prédio da biblioteca.

A Festa é também o IV Encontro sobre Livro e Leitura do Semiárido Baiano, que tem como tema “A importância de ler”. Literatura de cordel, políticas culturais, contação de histórias, oficinas, jogos educativos, bioética e outros temas da atualidade estarão no cardápio.

Como chegar lá

São José do Paiaiá fica a 231 km de Salvador, indo pela BR-110, que liga a capital baiana a Paulo Afonso, passando pela região de Canudos. Tem ônibus de Salvador para lá, mas o povoado não tem pousadas, hotéis ou restaurantes, quem for deve se hospedar em Nova Soure, que é pertinho.

Mas pode ocorrer também de alguém oferecer quartos ou casas inteiras. Na minha ida, todos nós que preferimos ficar ali, fomos hospedados assim, de graça! E para comer, afora sanduíches ou eventuais pratos feitos, um sobrinho do Alagoinhas, craque na cozinha, oferecia pratos saborosíssimos por R$ 10,00. Quem sabe este ano terá também! Falem com os organizadores pelo e-mail bibliotecadopaiaia@gmail.com.

Algumas curiosidades




Não sei se em Parati algumas coisas ligadas a Canudos serão conversadas, e lembro-me de duas delas aqui.

O nome do arraial que chamamos de Canudos era na verdade Belo Monte. O nome Canudos era da fazenda onde ele se localizava. E a palavra canudos, no caso, se deve à planta chamada popularmente de canudo-de-pito, um arbusto abundante ali, cujas hastes, fininhas, são ocas e eram usadas como canudos para cachimbos de barro. Na minha terra, em Minas Gerais também usava-se canudo-de-pito.

Outra planta que deu nome a uma área do local acabou virando “celebridade” num certo sentido. É a favela, uma árvore que dá favas. Um morro ao lado de Belo Monte tinha muito dessa planta e por isso era conhecido como Morro da Favela. O exército que conseguiu exterminar o arraial se instalou ali, com canhões inclusive. De lá, bombardearam Belo Monte, sem piedade, até que as forças do exército invadiram o que restava do arraial. Uma mortandade sem limites: os militares encontraram lá (claro que houve fugitivos que escaparam), no meio dos cadáveres, um velho, uma criança e dois feridos.

Os soldados que participaram dessa chacina foram para o Rio de Janeiro achando que seriam recebidos com glória, mas não lhes ofereceram nem casas para morar. Montaram barracos no Morro da Previdência e ironizavam comparando com o Morro da Favela. Daí, favela ficou sendo o nome daquele morro também, em seguida se estendeu para outros morros com moradias precárias e por fim para todos os conjuntos de barracos, precários. Virou tudo favela.

Agora, algo que não tem nada com a Flip: quando o Alagoinhas mandou os primeiros 12 mil livros para lá, num caminhão cedido por uma transportadora, no momento em que o caminhão era descarregado ante a curiosidade geral, a TV Globo dava a notícia de um roubo de livros da Biblioteca Nacional. Uma fofoqueira local saiu esparramando que os livros que o Geraldo mandou para lá eram os roubados da Biblioteca. Ajudou na divulgação…

Outra coisa: Domingos Jorge Velho um, dos bandeirantes mais cruéis, contratado para destruir o Quilombo de Palmares no final do século XVII, antes disso já dizimava povos indígenas no Nordeste. O Payayá, de língua gê, foi um desses povos. O bandeirante comandou os primeiros brancos (embora tivesse indígenas também na sua horda) a aparecerem na região. Os descendentes dos que sobreviveram se espalharam e hoje se encontram em alguns municípios baianos. Cerca de 40 famílias vivem em Cabeceira do Rio, povoado do município de Utinga, na Chapada Diamantina, onde criaram o MAIP (Movimento Associativo Indígena Payayá) que, entre outras coisas, dedica-se à recuperação do rio Utinga e ao reflorestamento da área.

Tentei descobrir o significado da palavra paiaiá (ou payayá) e não consegui.

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