Por Mouzar Benedito
Li a notícia da morte do cineasta José Mojica Marins, conhecido aqui como Zé do Caixão, e no exterior como Coffin Joe, e isso me provocou algumas lembranças.
Lá pelo final dos anos 1960, eu tinha o hábito de frequentar um restaurante que servia uma ótima paella (por favor, leitores, a pronúncia espanhola é paelha – paeja é pronúncia argentina). Era rico? Nadinha. Era funcionário público e ganhava pouco. Mas na época dava para traçar com alguma regularidade essa comida que hoje custa muito caro.
O restaurante a que me refiro, de cozinha espanhola, chamava-se “Bosque de Viena”. Nada a ver, né? E se o nome austríaco destoava, a música ao vivo também: nada de flamenco ou algo parecido, era música latino-americana, executada por paraguaios exilados em São Paulo, fugindo da ditadura de Stroessner.
Localizado na rua Vitória, na região conhecida como “Boca do Lixo”, no centro de São Paulo, o “Bosque de Viena” era bem barateiro, e frequentado por gente meio dura como eu e também por jornalistas e artistas, entre eles o Zé do Caixão. Vi muitas vezes lá o Zé do Caixão. Nunca conversei com ele, mas olhava curioso suas unhas enormes, imaginando a dificuldade dele para certas tarefas, como tomar banho e limpar-se no banheiro.
Bom, antes de ir para outro assunto sobre ele, esclareço para jovens de hoje que talvez nem tenham ouvido falar da “Boca do Lixo”. Tinha esse apelido por ser área de “baixa prostituição”. Havia também uma área de “alta prostituição”, com prostitutas de “alto nível”, funcionando em boates frequentadas por empresários. Localizada no entorno da rua General Jardim, era chamada de “Boca do Luxo”.
Agora um assunto que parece não ter nada a ver com estas lembranças: a Volkswagen lançou um carro muito bom, mas todo “quadrado”. Não era como uma Kombi, era como um carro comum, com partes mais baixas na frente (do motor) e atrás (porta-malas). Só que era todo com linhas retas, com vidros da frente e de trás descendo em 90 graus, e não inclinados. Logo foi apelidado de Zé do Caixão e acabou tendo a produção interrompida porque poucos o compravam, por causa do apelido.
Aí chego em mais uma história.
Quando a profissão de jornalista foi legalizada e passou-se a exigir diploma para seu exercício, havia muitos jornalistas sem curso nenhum. Para esses, deram dois anos para se legalizarem, pedirem o registro profissional no Ministério do Trabalho. Mas muitos deles não levaram a sério essa exigência achando que a lei não pegaria. Mas pegou. Aí os jornais deram ultimato: ou arrumam um diploma ou serão demitidos. Como não dava para “arrumar” um diploma assim de repente, tiveram a opção de fazer o curso de jornalismo e não serem demitidos porque estavam se legalizando.
A Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero foi a mais procurada por esses profissionais já experientes. Motivo? Tinha fama de ser boa, mas o principal é que nela o curso durava apenas três anos, enquanto em outras faculdades durava quatro anos.
Em 1974, eu não era jornalista ainda, mas queria ser, especialmente por causa da imprensa alternativa. Era, para mim, a oportunidade de ter uma profissão que ao mesmo tempo era possibilidade de militância contra a ditadura.
Foi muito interessante. Convivi lá com jornalistas já experientes e competentes, mas também tinha umas figurinhas difíceis. Por exemplo: Roberto Nunes Morgado, que já era juiz de futebol e, amalucado nas arbitragens, homossexual assumido, ficou conhecido como “Pantera Cor de Rosa”.
Algumas coisas que ele fez ficaram famosas, como a expulsão da PM que fazia a segurança em um jogo. Mostrou cartão vermelho para os policiais. E houve um jogo em que apitou sem entrar em campo, correndo pela lateral. Depois disso, se me lembro bem, ele foi afastado das arbitragens. Sei com certeza que uma vez pediram exame de sanidade mental dele, por causa de coisas como essas.
Jogadores de futebol, tinha alguns, inclusive de times da primeira divisão, como o Lance, atacante do Corinthians, e um defensor do Palmeira cujo nome não me lembro.
E mais: tinha também um assessor do Zé do Caixão. Mas não era só assessor, participava das filmagens. Já tentei muito me lembrar o nome desse jornalista, mas não consegui.
Numa segunda-feira, em 1976 ou 77, ele chegou à faculdade todo cheio de curativos. Curiosos, perguntamos a ele o que tinha acontecido.
Contou que o Zé do Caixão gostava de dar o maior realismo possível aos seus filmes. As atrizes tinham que ser treinadas para deixar aranhas andando de verdade nos seus corpos, por exemplo. Cenas com cobra, eram com cobras de verdade. E cenas nos cemitérios tinham que ser filmadas de acordo com o que apareceria nos filmes. Então, para uma sequência que se passava à meia-noite de uma sexta-feira, teria que filmar à meia-noite, na sexta-feira. Dessa vez, levou sua equipe para filmar algumas cenas com mulheres nuas em cima de túmulos, dentro do cemitério da cidade de Americana. Na sexta-feira, claro. E as filmagens começariam à meia-noite, com um relógio dando as devidas badaladas.
Acontece que um padre da cidade reuniu um bando de beatas e beatos armados de porretes e, quando ia chegando a meia-noite, essa turma invadiu o cemitério e desceu o porrete em todo mundo. Mulheres, assessores, ninguém escapou das porretadas. Toda a equipe foi parar no hospital.
Nosso colega não teve ossos quebrados, mas seu rosto ficou cheio de esparadrapos. O resto do corpo, segundo ele (que não mostrou) também.
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