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sábado, fevereiro 01, 2020

Helvécio Nogueira e o fim do mundo na casa da Dinoca



Novembro de 1956. A 1ª Igreja Batista Regular do Amazonas funcionava na Rua Carvalho Leal, entre as ruas Itacoatiara e Tefé, no mesmo local onde, em 1969, foi inaugurado o Ginásio Batista do Amazonas, sendo renomeado para Instituto Batista do Amazonas em 1971.

Para quem não sabe, a doutrina batista regular é bem mais conservadora e tradicional do que a de outros batistas. Eles se consideram fundamentalistas e separatistas, são pré-milenistas, dispensacionalistas, rejeitam o pentecostalismo, o ecumenismo e qualquer de suas expressões, não aceitam o casamento entre crentes e não crentes (eles se consideram o único povo de Deus), e têm verdadeiro desprezo por católicos, testemunhas de Jeová, adventistas, mórmons, presbiterianos, luteranos et caterva.

Os batistas regulares afirmam que a segunda vinda de Jesus Cristo será um acontecimento no mundo físico, envolvendo o arrebatamento pré-tribulacionista e um período de sete anos de tribulação, após o qual ocorrerá a batalha do Armagedon e o estabelecimento do Reino Milenar de Jesus Cristo na Terra.

Naquela época, nos anos 50, a 1ª Igreja Batista Regular do Amazonas possuía um paredão de som digno de sound-system jamaicano, que dava para ser ouvido da Igreja de Santa Rita de Cássia, ali onde hoje está o Terminal de Integração, até a Igreja Adventista da Cachoeirinha, ali nas imediações do Colégio Márcio Nery.

Diariamente os pastores da igreja ocupavam os microfones do portentoso paredão de som para executarem suas prédicas, tendo uma especial predileção em anunciar o fim do mundo.

Morador do entorno do Campo da Barra, na Rua Tefé, Helvécio Nogueira, então com 14 anos, era um dos moleques que ficavam assustados com as mensagens apocalípticas reverberadas diariamente pelos pastores. Mas como soe acontecer em um bairro majoritariamente católico, as pregações apocalípticas dos pastores acabaram se convertendo em uma simples “modinha” religiosa. Ninguém mais dava a mínima.

Os pastores resolveram apelar. Em novembro daquele ano, eles não só anunciaram o início do fim do mundo, como também cravaram a data: quarta-feira, dia 21, a partir das 15 horas. A profecia virou o assunto favorito do bairro.

Na quarta-feira, dia 21, na casa do Helvécio, a rotina não foi alterada. O marceneiro Hilário saiu para trabalhar, Selmo Caxuxa saiu para trabalhar, a molecada (Helvécio, Olga, Stanislaw, Ismelinda, Maria Gertrudes, Sérgia e Afonso Libório) saiu para estudar e dona Ozina Nogueira (aka “Dinoca”, irmã do seu Hilário) foi cuidar dos afazeres domésticos.

Por volta das 10 horas da manhã, um vendedor de frutas apareceu na rua e dona Dinoca comprou uma dúzia de tucumãs-arara, com a carne de cor quase alaranjada de tão maduros, e comandou a partilha: um para cada um dos curumins menores, três para ela e três para seu Hilário. Como já era um adolescente punheteiro, Helvécio não teve direito ao “mimo”.

Por volta do meio-dia, com todos os curumins reunidos na mesa para o almoço, dona Dinoca distribuiu a sobremesa (os tucumãs, claro!) e cantou a pedra:

  Eu estou indo lá embaixo comprar uma máquina de costura Singer porque vou começar a costurar pra fora. Vou deixar na petisqueira esses seis tucumãs, para eu e o Hilário comer quando a gente voltar. Se comportem!

(A expressão “lá embaixo” para dizer “ir ao centro da cidade” merece uma explicação. Quando os ingleses invadiram Manaus, nos anos 40, durante o esforço de guerra em prol da borracha, eles se referiam ao centro histórico como “downtown”, que é o termo correto em inglês. Algum professor de inglês manauara – provavelmente formado por correspondência pelo Instituto Universal Brasileiro – traduziu o termo literalmente (“cidade baixa”) e a bobagem acabou pegando – talvez para se contrapor ao bairro de Educandos, chamado de “cidade alta”. Aí, os suburbanos quando queriam se deslocar até o centro diziam que “iam lá embaixo” e todo mundo entendia. Choses.)

Deitado numa rede depois do almoço, Helvécio relia pela enésima vez o romance “Moby Dick”, do Herman Melville, enquanto vigiava o resto da curuminzada fazendo suas tarefas escolares como se fosse o próprio capitão Ahab procurando pelo cachalote branco a bordo do barco Pequod. O sol estava abrasador.

De repente, numa dessas inversões climáticas típicas de Manaus, os trovões começaram a ribombar, os relâmpagos passaram a riscar o céu e, em questões de minutos, o bairro ficou praticamente às escuras. Caiu um verdadeiro dilúvio pra Noé nenhum botar defeito.

Os curumins da casa começaram a chorar e rezar, completamente desesperados. Sim, aquilo devia ser o início do fim do mundo.

Pragmático a vida inteira, Helvécio ligou o “foda-se!”: já que todo mundo ia mesmo bater as botas, por que não dar cabo primeiro dos suculentos tucumãs-arara?...

Ele não pensou duas vezes: abriu a petisqueira, apanhou os seis tucumãs e se mocozou no porão da casa para degustar as iguarias solitariamente, como convém a um condenado à morte.

O bairro continuou às escuras por quase 45 minutos, com a chuva caindo torrencialmente e as ruas se transformando em igarapés caudalosos. Mas aí, de repente, tudo voltou ao normal. A chuva parou, o céu se abriu, o sol voltou a brilhar. Foi quando Helvécio caiu na real: o fim do mundo só ia sobrar pro lombo dele. Dito e feito.

Quando dona Dinoca chegou em casa e não viu os tucumãs na petisqueira, simplesmente recebeu uma pomba-gira pela esquerda: começou a praguejar, bufar, ameaçar, uivar e cuspir fogo. Ela só sossegou o facho depois que o irmão chegou do trabalho e aplicou um corretivo de responsa no pequeno punguista.

Helvécio levou uma surra de galho de cuieira de criar bicho. E nunca mais acreditou nas profecias dos pastores batistas regulares. Acontece. Cada uma.

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