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terça-feira, julho 24, 2012

Brasil: entre o mar tenebroso e a tranquilidade enganosa



Por Enio Squeff - de São Paulo

Do Oiapoque ao Chuí há uma cultura chamada “popular” que está tão longe da mídia quanto das academias. O Brasil, nas suas profundezas, talvez esteja gerando algo, não se duvide. E se não será previsto pela grande imprensa, é porque nunca, desde que ela começou a existir, foi ela a detectar certos caminhos da história.

Quem sabe seja apenas uma pretensão imaginar que vivemos um período de ruptura, “como nunca antes na história deste país.” Ao tentar explicar a inacreditável resistência dos vietnamitas à agressão dos EUA, (desde bem antes, o país mais poderoso do mundo), um observador chamava a atenção para o rio Mekong – o caudal mais importante do Vietnã: ele seria plácido na superfície, quase um lago em sua película visível, mas extremamente agitado, com fortes correntes nas suas profundezas. O rio explicaria a serenidade de um povo pobre, mas inacreditavelmente aguerrido.

Quase nada do Brasil de hoje sugere, a propósito, algo de revolucionário sob um mar de tranquilidade. A longuíssima greve dos professores universitário federais tem recebido o tratamento como qualquer outra, em tempos de governos conservadores, ou seja, nenhum diálogo, só a reiteração de que a proposta do Planalto é a última – uma platitude sem alvoroços, tanto pela determinação dos grevistas de persistirem em seu movimento, quanto do governo de não transigir em mais nada.

Na cultura artística parece se dar o mesmo. O que se sabe é o que a grande mídia divulga: nada mais – ou menos – que os sucesso que ela mesma engendra. No entanto, talvez estejamos vivendo sobre um Meckong: sabemos dos grafiteiros – e pichadores – que estão transformando as fachadas edificadas das grandes cidades. Temos vagas notícias de que as festas juninas do nordeste são eventos que mobilizam milhões.


Do Oiapoque ao Chuí há uma cultura chamada “popular” que está tão longe da mídia quanto das academias. E a polícia, principalmente a paulista, de tanto ouvir de parte da população e dos programas televisivos que ”com bandido, é só matando”, sabemos que estaria apenas seguindo à risca a cultura brasileira da violência. Já não nos espanta que a eventual desatenção a uma ordem de parada da polícia militar, mereça menos que vinte tiros de grosso calibre ao previsível infrator.

Que isso tem a ver com a cultura artística?

Entre os muralistas mexicanos da primeira metade do século XX – Diego Rivera, Siqueros, Orozco – tudo era motivo para que lançassem a suas tintas nos grandes painéis públicos. O húngaro Bela Bartok – talvez o maior compositor do século XX – encontrava na arte popular da Europa Central e parte do oriente médio, um manancial inesgotável. Tinha para si que o povo, na sua criatividade espontânea – mas certamente permeado também pela incipiente cultura industrializada do seu tempo – era uma matéria prima sempre disponível. Em síntese: apesar dos críticos – ou por isso mesmo – a arte, a grande arte, parece ser uma torrente invisível que corre turbilhonante a despeito das águas plácidas das superfícies do mundo.

Não que o mundo esteja estagnado. Não se sabe de que forma as artes, na Europa, responderão às greves, ao racismo explícito, ou antes, ao renascimento do nazismo, de um novo o anti-semitismo (mas agora contra os árabes), e, enfim, mas sobretudo, como será vista, no futuro, a resposta artística ao cinismo estarrecedor dos governos que, ao reconhecerem que os banqueiros mentem e mentiram, nem de longe se dispõem a acabar com o subsídio escandaloso ao capital financeiro.

Há quase o mesmo no Brasil. Ao menor sinal de crise na suinocultura, o governo se apressa em liberar dinheiro. Quanto às universidades, nada. São, por enquanto, mini terremotos localizados: não se sabe com que tintas e cores, esses pontuais abalos irão colorir paredes e telas, e com que palavras e imagens, poemas, romances, peças de teatro e filmes transparecerão do período em que vivemos. Por enquanto, os ecos de 1968 parecem ser a data limite das últimas rebeliões visíveis de nosso passado imediato. No entanto, o futuro certamente não irá consignar as coisas da mesma maneira.

Woody Allen pespega bem a inconsciência que as épocas têm de si mesmas, não obstante o revolucionarismo embutido nas artes e nos acontecimento. Em seu “Meia Noite em Paris” há um diálogo entre o personagem principal e Toulouse-Lautrec numa bem pensada – e maravilhosa – cena de volta aos tempos. O personagem do século XX fica tão espantado quanto nós, os espectadores, quando o Toulouse-Lautrec assevera que a “Belle Époque”, dos impressionistas (a qual hoje veneramos, como o princípio da modernidade) seria, para ele e seus companheiros de luta, uma época estéril e decadente.


Dos que conhecem um pouco a história da arte, lembra-se que, como no filme, se nos fosse dado estar ao lado de Van Gogh em seu leito de morte, talvez não lográssemos convencê-lo de que, ao contrário do que ele dizia em seu delírio de moribundo – sua obra seria fundamental para o futuro. A arte, na modernidade e para os que a vivem, parece ser sempre um Mekong. Só que a realidade não se afigura muito diferente. Essa a questão do Brasil atual.

Na atualidade, consideramos como muito bem vindas as administrações das crises e as manifestações artísticas que consignamos à “vanguarda”. Talvez o que consideramos à frente do nosso tempo, seja justamente o que o futuro irá julgar o mais datado e sem interesse algum. Certas constatações parecem irretorquíveis: a ideia, por exemplo, de que a iniciativa privada iria provir a arte brasileira de meios para se expressar, continua relativamente uma ideia mais escassa do que no tempo dos modernistas de 22. Quanto ao caráter “revolucionário” da arte em si mesma, tudo parece se resumir a um esforço inútil de apenas “épater les bourgeois” como se dizia antigamente.

Haverá sem dúvida, e paradoxalmente, algo mais do que simples aviões “de carreira” no horizonte cultural do Brasil. O “nunca na história deste país” talvez pareça e é uma frase de efeito. Mas o Brasil, nas suas profundezas, talvez esteja gerando algo, não se duvide.

E se não será previsto pela grande imprensa, é porque nunca, desde que ela começou a existir, em momento algum, foi ela a detectar certos caminhos da história. Talvez ainda se diga e repita nos cursos de jornalismo que os jornalistas serão os primeiros a anunciar o fim do mundo. Definitivamente, não parece que serão eles os primeiros a fazê-lo: eles parecem ignorar que a realidade do Mekong é sempre mais embaixo.


Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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