Por Enio Squeff - de São Paulo
Do Oiapoque ao Chuí há uma cultura chamada “popular” que
está tão longe da mídia quanto das academias. O Brasil, nas suas profundezas,
talvez esteja gerando algo, não se duvide. E se não será previsto pela grande
imprensa, é porque nunca, desde que ela começou a existir, foi ela a detectar
certos caminhos da história.
Quem sabe seja apenas uma pretensão imaginar que vivemos um
período de ruptura, “como nunca antes na história deste país.” Ao tentar
explicar a inacreditável resistência dos vietnamitas à agressão dos EUA, (desde
bem antes, o país mais poderoso do mundo), um observador chamava a atenção para
o rio Mekong – o caudal mais importante do Vietnã: ele seria plácido na
superfície, quase um lago em sua película visível, mas extremamente agitado,
com fortes correntes nas suas profundezas. O rio explicaria a serenidade de um
povo pobre, mas inacreditavelmente aguerrido.
Quase nada do Brasil de hoje sugere, a propósito, algo de
revolucionário sob um mar de tranquilidade. A longuíssima greve dos professores
universitário federais tem recebido o tratamento como qualquer outra, em tempos
de governos conservadores, ou seja, nenhum diálogo, só a reiteração de que a
proposta do Planalto é a última – uma platitude sem alvoroços, tanto pela
determinação dos grevistas de persistirem em seu movimento, quanto do governo
de não transigir em mais nada.
Na cultura artística parece se dar o mesmo. O que se sabe é
o que a grande mídia divulga: nada mais – ou menos – que os sucesso que ela
mesma engendra. No entanto, talvez estejamos vivendo sobre um Meckong: sabemos
dos grafiteiros – e pichadores – que estão transformando as fachadas edificadas
das grandes cidades. Temos vagas notícias de que as festas juninas do nordeste
são eventos que mobilizam milhões.
Do Oiapoque ao Chuí há uma cultura chamada “popular” que
está tão longe da mídia quanto das academias. E a polícia, principalmente a
paulista, de tanto ouvir de parte da população e dos programas televisivos que
”com bandido, é só matando”, sabemos que estaria apenas seguindo à risca a
cultura brasileira da violência. Já não nos espanta que a eventual desatenção a
uma ordem de parada da polícia militar, mereça menos que vinte tiros de grosso
calibre ao previsível infrator.
Que isso tem a ver com a cultura artística?
Entre os muralistas mexicanos da primeira metade do século
XX – Diego Rivera, Siqueros, Orozco – tudo era motivo para que lançassem a suas
tintas nos grandes painéis públicos. O húngaro Bela Bartok – talvez o maior
compositor do século XX – encontrava na arte popular da Europa Central e parte do
oriente médio, um manancial inesgotável. Tinha para si que o povo, na sua
criatividade espontânea – mas certamente permeado também pela incipiente
cultura industrializada do seu tempo – era uma matéria prima sempre disponível.
Em síntese: apesar dos críticos – ou por isso mesmo – a arte, a grande arte,
parece ser uma torrente invisível que corre turbilhonante a despeito das águas
plácidas das superfícies do mundo.
Não que o mundo esteja estagnado. Não se sabe de que forma
as artes, na Europa, responderão às greves, ao racismo explícito, ou antes, ao
renascimento do nazismo, de um novo o anti-semitismo (mas agora contra os
árabes), e, enfim, mas sobretudo, como será vista, no futuro, a resposta
artística ao cinismo estarrecedor dos governos que, ao reconhecerem que os
banqueiros mentem e mentiram, nem de longe se dispõem a acabar com o subsídio
escandaloso ao capital financeiro.
Há quase o mesmo no Brasil. Ao menor sinal de crise na
suinocultura, o governo se apressa em liberar dinheiro. Quanto às universidades,
nada. São, por enquanto, mini terremotos localizados: não se sabe com que
tintas e cores, esses pontuais abalos irão colorir paredes e telas, e com que
palavras e imagens, poemas, romances, peças de teatro e filmes transparecerão
do período em que vivemos. Por enquanto, os ecos de 1968 parecem ser a data
limite das últimas rebeliões visíveis de nosso passado imediato. No entanto, o
futuro certamente não irá consignar as coisas da mesma maneira.
Woody Allen pespega bem a inconsciência que as épocas têm de
si mesmas, não obstante o revolucionarismo embutido nas artes e nos
acontecimento. Em seu “Meia Noite em Paris” há um diálogo entre o personagem
principal e Toulouse-Lautrec numa bem pensada – e maravilhosa – cena de volta
aos tempos. O personagem do século XX fica tão espantado quanto nós, os
espectadores, quando o Toulouse-Lautrec assevera que a “Belle Époque”, dos
impressionistas (a qual hoje veneramos, como o princípio da modernidade) seria,
para ele e seus companheiros de luta, uma época estéril e decadente.
Dos que conhecem um pouco a história da arte, lembra-se que,
como no filme, se nos fosse dado estar ao lado de Van Gogh em seu leito de
morte, talvez não lográssemos convencê-lo de que, ao contrário do que ele dizia
em seu delírio de moribundo – sua obra seria fundamental para o futuro. A arte,
na modernidade e para os que a vivem, parece ser sempre um Mekong. Só que a
realidade não se afigura muito diferente. Essa a questão do Brasil atual.
Na atualidade, consideramos como muito bem vindas as administrações
das crises e as manifestações artísticas que consignamos à “vanguarda”. Talvez
o que consideramos à frente do nosso tempo, seja justamente o que o futuro irá
julgar o mais datado e sem interesse algum. Certas constatações parecem
irretorquíveis: a ideia, por exemplo, de que a iniciativa privada iria provir a
arte brasileira de meios para se expressar, continua relativamente uma ideia
mais escassa do que no tempo dos modernistas de 22. Quanto ao caráter
“revolucionário” da arte em si mesma, tudo parece se resumir a um esforço
inútil de apenas “épater les bourgeois” como se dizia antigamente.
Haverá sem dúvida, e paradoxalmente, algo mais do que
simples aviões “de carreira” no horizonte cultural do Brasil. O “nunca na
história deste país” talvez pareça e é uma frase de efeito. Mas o Brasil, nas
suas profundezas, talvez esteja gerando algo, não se duvide.
E se não será previsto pela grande imprensa, é porque nunca,
desde que ela começou a existir, em momento algum, foi ela a detectar certos
caminhos da história. Talvez ainda se diga e repita nos cursos de jornalismo
que os jornalistas serão os primeiros a anunciar o fim do mundo.
Definitivamente, não parece que serão eles os primeiros a fazê-lo: eles parecem
ignorar que a realidade do Mekong é sempre mais embaixo.
Enio Squeff é artista
plástico e jornalista.
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