Texto: Plinio Valério
Foto: Antônio Menezes
A vida de Carmem era perambular pelas ruas da cidade. Sua
ocupação preferida: fazer carretos para algumas pessoas que compravam no
mercado Adolpho Lisboa e correr atrás dos meninos que mexiam quando ela
passava.
Tudo que pedia e tudo que ganhava era para levar ao Hospício
Eduardo Ribeiro e repartir com suas colegas.
Juntava tudo e diariamente ia ao hospício dividir o
apanhado.
Todos que aqui vivem, pelo menos na faixa de vinte e dois
anos em diante, se lembram de “Carmem Doida”.
As crianças se divertiam com ela e os adultos dela gostavam
pois sempre foi uma pessoa prestativa e solidária.
De repente Carmem sumiu.
Dela não se ouviu mais falar. Morreu – pensaram todos.
Mas Carmem vive, só que paralítica.
Está nesta situação desde 74, vítima de um guarda que a
colocou para fora de um ônibus.
Ela caiu, bateu a cabeça e o joelho e dali por diante
começou a ter problemas até ficar paralítica.
Reclama, mas se conforma com seu destino.
Agora, que o Natal se aproxima, ela fica indócil, pois para
ela o Natal era e continua sendo a mais bela festa de todas.
Carmem vive o Natal. Ela até já fez seu pedido a Papai Noel:
quer ganhar dois cadernos e um lápis com borracha, de cores preto e vermelho.
Um pedido simples para quem vive como ela vive.
Descobrindo Carmem
A primeira surpresa: “Carmem Doida” está viva. Mora com uma
senhora numa rua perto da prefeitura.
Fomos até lá.
Dona Zizi, a dona da casa, nos recebe bem e fala um pouco a
respeito de Carmem ao mesmo tempo que nos conduz ao seu quarto.
– Carmem. Esses dois rapazes são de um jornal. Vieram
conversar contigo.
– Eu vou sair no jornal, é? Minha cara vai aparecer?
– Vai sim, é só você concordar...
Ela concordou e começou a falar. O jeito, o modo de falar e
as palavras que usa são as mesmas, só não os gestos.
As pernas imóveis cobertas por um lençol e as mãos também
imóveis colocadas por sobre o peito.
Só os olhos se movimentam. Enormes e espertos, como esperto é o seu modo
de falar.
Segunda surpresa: Carmem sempre teve um lar.
Desde os três anos de idade vive com a mãe de Dona Zizi, com
quem foi criada e que depois de doente chama de mãe.
Passava o dia inteiro na rua, mas dormia em casa.
Não precisava de nada, pois dispunha de tudo. Se deixavam
ela perambular pelas ruas era porque o médico pedia para não impedi-la.
Esteve internada algumas vezes, mas sempre soube o que fazia.
Adorava correr atrás dos meninos pelas ruas e conversar com
as donas de casa quando fazia a faxina nas casas.
Ganhava dinheiro, comida, roupas e outras coisas mais,
juntava tudo num saco e rumava para o hospício, lá dividia com a turma.
Ela adquiriu este hábito desde a primeira vez que esteve por
lá.
Levava até tabaco escondido debaixo da roupa pra distribuir.
Tem uma queixa: ninguém a visita.
– Na rua era Carmem, Carmem, Carmem... Todo mundo gostava de
mim. Mas hoje ninguém vem aqui me ver...
Terceira surpresa: Carmem tem 59 anos e Anjos como
sobrenome.
É natural do Cacau Pirera e nasceu no dia 18 de abril de
1918.
Jamais esqueceu a data de seu aniversário e sempre fez
questão de ganhar presente.
Tem um calendário na grade de sua cama com duas datas assinaladas:
25 de dezembro e 18 de abril.
Ela está indócil.
– Já fez minha carta, sobrinha?
– Ora, Carmem, você já está muito grande para ganhar
presente de Papai Noel.
– Mas eu quero...
– O que você quer ganhar?
– Eu quero ganhar (pausa) dois cadernos grandes e dois lápis
com borracha. Vermelho e preto!
Dona Zizi diz que ela ainda tem o hábito de anotar tudo que
faz. Só que não escreve.
Risca uns números e chama isso de tarefa.
Qualquer coisa que faça ou diga, pega o caderno e anota
(risca).
– Você só quer isso de Papai Noel?
– Só. Só quero isso... Será que ele me dá?
– Pode ficar tranquila, ele vai dar sim.
Diariamente Carmem ia ao Mercado Adolfo Lisboa a fim de
fazer carretos.
Num dia – ela não lembra qual – do ano de 1974, foi chamada
por uma senhora.
Pegou a encomenda e rumou para a Estação de Ônibus.
Como sempre fazia, entrou pela porta da frente.
Nunca pagou ônibus na vida.
Um guarda viu ela entrando e botou-a pra fora dizendo:
– Sai daqui. Lugar de doido é no hospício!
E a empurrou. Ela caiu. Bateu a cabeça e joelho.
Chegou em casa e não contou nada. Escondeu.
Com o passar do tempo foi sentindo uma dor esquisita no
joelho.
Levada ao médico foi receitada, mas não havia tempo.
Acabou ficando paralítica.
Vive recolhida a um quarto desde 1974 e até para tomar banho
tem que ser carregada, trabalho que é feito diariamente pelas empregadas de
Dona Zizi.
Lucidez
Apesar de tudo ela ainda é lúcida:
– Sou doida, mas tenho juízo – diz ela.
A verdade é que Carmem sempre soube o que fazia.
Nunca fez nada que não soubesse explicar.
A uma brincadeira, responde com outra:
– O Bombalá mandou lembranças pra você...
– Êta! Aquele doido?! (risos)
Dona Zizi diz que os médicos nunca souberam explicar ao
certo qual o problema de Carmem, já que ela sempre agiu direito.
Gostava de correr atrás de meninos, fazer carreto, faxina e
andar de ônibus.
– Seu negócio era perambular pelas ruas e nós não podíamos
impedi-la – conta Dona Zizi.
Mas todas as noites, por volta de seis e meia, o mais tardar
sete horas, ela voltava.
Natal e aniversário
Duas datas tem significado especial para Carmem: Natal e seu
aniversário.
No tempo que podia andar, dia de seu aniversário ia às
rádios colocar melodia para ela mesma e exigia presente das pessoas conhecidas.
Não sabe explicar porquê, mas ainda gosta.
O Natal para ela é a data máxima da humanidade.
Faz festa, vive, adora a comida de Natal.
Aqui, um lamento:
– Ah, meu Deus! Que saudade de andar. Que saudade das minhas
colegas. Das vitrines, dos meninos, das festas, das ruas... Saudade de tudo.
O assunto é desviado. Poupamos este sofrimento a Carmem.
– Você nunca quis casar não?
– Êta! Pra lá. Sou doida, mas tenho juízo.
Doida, tendo juízo ou não, Carmem ainda vive.
Sente prazer em falar das coisas que fez.
Conta coisas incríveis e ri, tal qual uma criança traquina.
Fica feliz da vida quando recebe uma visita e lamenta não
ter sido visitada ultimamente.
Se perde em pensamentos quando alguém cita o nome de Bebel,
um motorista de ônibus que ficava lá pela estação:
– Você gostava do Bebel?
Ela responde com um sorriso malicioso.
E quando nos despedimos, ela diz:
– Já vão, queridos?
(publicado no jornal A
Crítica, em 21 de novembro de 1977)
Um comentário:
Muito bom! Quando comecei a ler nao atentei para a data, pensei que se tratasse daquela Sra. Que andava nua pelo dom Pedro, acho q tb a chamavam de Carmem Doida ( acredito q esta morreu atropelada há algum tempo atras).
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