Alex Castro
As pessoas mais felizes, as que vivem no presente e
aproveitam cada minuto, são as que menos têm medo da morte. As pessoas que mais
escuto falar em medo da morte são sempre aquelas que mal vivem. Quem viveu
quarenta anos felizes, lindos e intensos não tem medo de morrer, pois sempre
terá tido quarenta anos felizes, lindos e intensos. Quem viveu setenta anos de
freio puxado, eternamente adiando sua gratificação, sonhando sempre com um
futuro que nunca chega, essa pessoa se péla de medo de morrer, pois a morte é
justamente a negação concreta do futuro lindo que ela sempre se enganou que
teria.
Antes de irmos mais longe: muita gente confunde “ter medo de
algo” com “não querer que algo aconteça”, mas são coisas bem diferentes. Por
exemplo, ninguém quer morrer em desastre de avião mas nem todo mundo tem medo
de avião. Eu não tenho medo de morrer. Minha vida foi linda e foi vivida
intensamente, nos meus termos, do meu jeito. E o futuro, bem, o futuro nos
reserva a todos a velhice, a decadência física, a dor, a solidão, a morte. Quem
teve um bom passado e vive intensamente o presente não tem nenhum amor pelo
futuro.
Quem tem mais medo de morrer são justamente aquelas pessoas
que tiveram passados chatos e vivem presentes frustrantes, que depositam todas
as suas esperanças em um futuro mítico, onde se mudarão para a casa dos sonhos,
encontrarão o príncipe encantado, se aposentarão do trabalho chato, conseguirão
escrever aquele livro... e aí tudo ficará bem, todas as promessas se
realizarão, o futuro... finalmente... acontecerá em toda a sua plenitude!
Para elas, morrer não é somente o fim de um presente feliz
(algo já desagradável em si), mas a negação de todos os sonhos que fariam seu
presente tedioso valer a pena. A morte, se acontecer antes do futuro prometido
que lhes daria sentido à vida, roubaria suas próprias vidas de sentido. Daí,
tanto medo de morrer.
Guimarães Rosa sofreu um ataque cardíaco enquanto escrevia “Grande
Sertão: Veredas”, um dos maiores monumentos da língua portuguesa. Depois de
finalmente publicar o livro, em 1956, nunca mais empreendeu nada de peso, por
medo de deixá-lo inconcluso. Sua produção depois disso fica mais fraca, sem
ambição: nada no nível de “Sagarana” ou “Corpo de Baile”, as obras anteriores
ao seu grande romance. Finalmente, como tinha previsto, morreu de ataque
cardíaco em 1967.
Estou há seis anos escrevendo um romance chamado “Cria de
casa: histórias de empregadas & escravos”. Já tenho duzentas boas páginas
escritas e o livro vai ficar enorme. Seria bem chato morrer antes de terminar.
Mas não seria o fim do mundo.
Algumas pessoas duvidam que não tenho medo de morrer. Dizem
que é claro que todo mundo tem medo de morrer! Óbvio! Como não? Tenho vontade
de abraçar essas pessoas. De lhes dar consolo e carinho. Porque, para elas,
esse medo existencial é tão vasto e profundo, tão entranhado e constitutivo, que
nem mesmo conseguem conceber a vida sem isso. Que horror viver cheio de tanto
horror.
Algumas pessoas justificam seu medo da morte por causa da
prole. É como se elas mesmas não fossem razão suficiente para permanecerem
vivas: “Não posso morrer... O que seria dos meus filhinhos??!!” Ou como se ter
filhos de algum modo significasse que sua sobrevivência era mais importante que
a dos outros pobres mortais: “Me deixem entrar no último bote! Tenho três
filhinhos pequenos!”, etc. Ou como os filhos finalmente justificassem seu
terror e os deixassem livres para chafurdar à vontade nos seus medo
existenciais: “Sim, tenho medo-pânico da morte... Fico acordado à noite
pensando em como morrer deve ser apavorante... Mas não é por mim, sabe? É pelo
Paulinho e pela Julinha!
Já eu não tenho filhos. Não tenho nem funcionários, sócios,
associados. Ninguém depende de mim. Nem mesmo o Oliver, meu cachorro, que seria
disputado à faca por umas três amigas. O mundo não precisa da minha presença. O
mundo não sentiria minha falta. (Nos comentários, muita gente vai concordar e
até vibrar.) Tudo continuaria igual, a terra ainda girando, nenhuma criança
morreria de fome. Existe nisso uma enorme alegria, uma grande liberdade, um
profundo alívio.
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