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quarta-feira, janeiro 29, 2020

Helvécio Nogueira e o valentão do bairro



Maio de 1953. Redator da Associação Comercial do Amazonas (ACA), seu Alfredo Magalhães morava ao lado do Campo da Barra, na Rua Tefé, na Cachoeirinha. Em 1950, ele havia se candidato a deputado estadual e causado frisson na cidade. Numa época em que iluminação pública era ficção científica, seu Alfredo fazia seus discursos montado em cima de um caixote de madeira, com um megafone na mão e uma lamparina na outra, para iluminar o comício. Ficou conhecido como “Alfredo Lamparina”, mas não foi eleito.

Seu Alfredo era pai dos moleques Rui Magalhães, Zé da Barra, Carlito Mão-de-pilão e Maria Helena. O educadíssimo Rui se tornou o melhor jogador de dominó da época, com uma característica original: se sentava sempre de costas para a mesa. Sua única exigência era que o jogo fosse “cantado”. Ele mentalmente ia montando o jogo na cabeça e sentando suas pedras, sem errar uma única vez. Nunca perdeu uma partida. Na quarta rodada, ele já sabia quais pedras estavam nas mãos de cada jogador e dificilmente se equivocava. Era um gênio.

Zé da Barra ganhou esse apelido porque, se pudesse, passaria 24 horas por dia jogando futebol no Campo da Barra. O invocado Carlito Mão-de-pilão, por sua vez, era o desordeiro da rua. Dava porrada em tudo quanto era moleque da sua idade. Gostava de brigar e brigava bem. Quando não encontrava ninguém que quisesse sair na porrada com ele, ficava dando murros e chutes nos postes de luz feitos de acariquara até escalavrar os dedos das mãos e os peitos dos pés. Era um sadomasoquista de carteirinha que gostava de tocar terror.

Aos 11 anos, Helvécio Nogueira também morava nas imediações do Campo da Barra, na companhia de quatro irmãos (Olga, Stanislaw, Ismelinda e Maria Gertrudes) e de três primos (Selmo Caxuxa, Sérgia e Afonso Libório). Nessa época, seu pai, o marceneiro Hilário, estava fazendo as esquadrias da mansão do empresário João Braga, ali no cruzamento da Rua Paraíba com a Rua São Luiz, em Adrianópolis.

Diariamente, Helvécio levava uma marmita de comida para seu pai, esperava ele terminar de almoçar, e levava a marmita de volta para casa. Indo e voltando a pé, evidentemente, que a molecada da época era muito diferente da atual “geração nutella”. O único vício de Helvécio era jogar bolinhas de gude. Era um ás no “ronda-dedo”. E no Campo da Barra sempre havia muitos moleques brincando de bolinhas.

Um dia, depois de ter cumprido sua tarefa diária, Helvécio nem foi em casa deixar a marmita vazia: já parou no Campo da Barra e começou a fazer a faxina entre os moleques que estavam no local. Um dos patos depenados foi o invocado Carlito Mão-de-pilão. O sujeito ficou puto:

– Você me ganha nesse jogo de merda, mas eu te dou porrada!

Helvécio tentou contemporizar:

– Porra, Carlito, eu não quero brigar contigo. Se você quiser, eu devolvo as bolinhas que você perdeu...

O sujeito ficou mais puto ainda:

– Pode enfiar essas bolinhas no cu, zé ruela! Eu te dou porrada, porra! Eu te dou porrada!

Pacifista até a medula óssea, Helvécio, ouvia as imprecações calado.

De repente, Carlito deu um chute tão violento na marmita vazia, que ela bateu nas estacas de mourão que cercavam o Campo da Barra e já caiu no chão completamente detonada.

Na mesma hora, Helvécio sentiu nas costas a lambada de cinturão que ia receber em casa ao devolver a marmita naquele estado. O sangue lhe subiu à cabeça. Perdido por um, perdido por mil. Sem outra alternativa, ele resolveu “sair na porrada” com o desordeiro.

Chutes pra cá, murros pra cá, Helvécio se defendia como podia, até perceber a chegada no local do seu primo Paulo Nogueira (hoje delegado aposentado da Polícia Civil). Dois contra um talvez empatassem o jogo, um deles, sozinho, fatalmente seria massacrado, era só questão de tempo.

– Porra, meu primo, compra essa briga comigo... – ganiu Helvécio, desesperado.

Paulo Nogueira não deu a mínima.

Percebendo que Paulo Nogueira havia “esfriado”, Carlito Mão-de-pilão ficou mais arretado do que nunca. O sujeito estava com o diabo no couro e começou a distribuir sopapos com vontade.

De repente, ele conseguiu acertar um murro violento no rosto de Helvécio que, com o impacto, bateu com a cabeça nas estacas de mourão. Ele passou a mão na nuca e quando olhou, sua mão estava banhada de sangue. O filho da puta havia lhe partido a cabeça.

Helvécio ficou possesso. Saiu dando murros, chutes e pernadas no valentão numa velocidade tão impressionante que Carlito começou a recuar, tão surpreso quanto incrédulo. Sem perder a fúria, o ímpeto e o embalo, Helvécio deu uma rasteira tão poderosa no adversário, que Carlito caiu no chão, de peito pra cima, feito um pacote bêbado.

Aí, sem vacilar, Helvécio sentou em cima do peito do valentão, prendeu sua cabeça entre as próprias coxas e passou a socar impiedosamente a cara do infeliz, que rapidamente se transformou em um disforme patê de fígado. O sangue escorria em cascata do nariz do valentão do bairro.

Quando a turma do “deixa-disso” resolveu interferir e tirar Helvécio de cima do moribundo, ele ainda conseguiu dar uma mordida no rosto do Carlito, arrancando um grande naco de carne da bochecha do sujeito.

Enquanto Carlito chorava feito um bezerro desmamado e lambia suas feridas, Helvécio era comboiado em triunfo para casa, carregando o seu valioso troféu de guerra: a marmita amassada.

Desse dia em diante, Carlito Mão-de-pilão corria léguas ao pressentir o Helvécio se aproximando, estivesse onde estivesse. A história correu pelo bairro como fogo em capoeira.

Vascaíno desde criancinha, Helvécio teve uma das adolescências mais tranquilas da Cachoeirinha porque, por onde ele passava, os moleques repetiam:

– Foi esse cara aí que deu porrada no Carlito Mão-de-pilão! Ele é muito foda numa briga de rua! Não tem pra ninguém, mano, não tem pra ninguém! Só te digo isso...

Assim nascem as lendas.

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