Pesquisar este blog

quarta-feira, dezembro 27, 2006

A Política do Corpo em Leila Míccolis





















Paulo César Andrade da Silva (*)




A produção poética de Leila Míccolis, de 1965 a 1991, foi reunida no livro O bom filho a casa torra. Figura polêmica, advogada por formação e agitadora cultural, poeta e teórica da produção marginal dos anos70/90, Leila Míccolis continua incentivando a cultura alternativa no Brasil. Uma produção que se caracteriza por atuar num espaço marginal, utilizando métodos pouco ortodoxos de linguagem artística. No caso de Leila, sua poesia se caracteriza pela utilização da sexualidade como arma de combate, para denunciar uma série de aspectos relativos à posição da mulher na sociedade burguesa: a sua exploração pelo homem, o falso moralismo, a castração imposta pela sociedade, através de condicionamentos de comportamento sexual. Pode-se dizer que, nessa linguagem poética, o próprio corpo é usado como arma efetiva de combate para as transformações sociais.


Dando continuidade às conquistas básicas dos modernistas, como o direito à liberdade de expressão, o humor, a valorização do cotidiano, bem como certas técnicas de linguagem utilizadas pelas vanguardas — a síntese, o simultaneismo, as rupturas sintáticas, Leila Míccolis, ao mesmo tempo, apropria-se, sem qualquer cerimônia, dos mais diversas elementos do seu contexto — como a cultura de massa ou o comportamento hippie — e da literatura oficial, para depois subvertê-los; com pitadas de seu humor cáustico e ferino.


A produção literária já conhecida nos meios acadêmicos como poesia marginal, na qual se inclui a produção poética de Leila Míccolis, foi uma expressão de revolta que incorporou de maneira especial o seu contexto — o momento de maior radicalismo da ditadura militar no Brasil. Para analisá-la não se pode partir de conceitos puramente estéticos, ainda presos aos modelos de crítica formalista e estruturalista, que supervalorizam o texto como um todo acabado e harrnônico em suas relações estruturais. O contexto, para os poemas de Leila não é mera referência exterior, mas parte integrante da sua estrutura, englobando a forma e o conteúdo dos mesmos.


Silviano Santiago (1989) mostra como a literatura produzida no Brasil a partir de 64 começa a distanciar-se da literatura engajada dos anos anteriores. Esgota-se o otimismo em relação à utopia de uma vitória das forças progressistas. A violência e as desigualdades sociais crescem de tal forma que se toma ingênuo pensar, nos anos 70, no modelo de literatura engajada com que alguns intelectuais de esquerda julgaram ser possível mudar as estruturas sociais do país. Os próprios modernistas, como Oswald de Andrade, Graciliano Ramos e outros tiveram essa preocupação, quase didática, de esclarecer os leitores a respeito da exploração do homem pelo homem, como forma de colaborar para a superação desse estado degradante de injustiça social.


O desencanto em relação a essa forma de engajamento na luta direta contra um poder central determina certo deslocamento no foco da luta política nos anos 70. De acordo com as próprias palavras de Silviano, Santiago, a literatura brasileira pós-64:


Deixa de apresentar como tema principal e dominante a exploração do homem pelo homem. (...) Não se trata de lutar apenas contra o poder burguês sob a forma de centralização (...), a luta é e deve ser mais ampla, pois o poder toma as mais inusitadas formas no cotidiano do cidadão, subrepticiamente gerando — a partir da negação da diferença — forças repressoras que visam à uniformidade (racial, sexual, comportamental, intelectual, etc.). O deslize das questões dos e sobre os oprimidos para o questionamento amplo do opressor (do lugar de onde ele fala, dá ordens e dita leis — do modo como, mesmo revolucionário, pode ser conservador, etc.). O deslize está no centro das rebeliões de jovens que se multiplicaram nas décadas de 60 e 70 e nas suas explosões libertárias. (SANTIAGO, 1989: 11-14)


A nova geração, que cresce sob a forte repressão militar, começa outra fase de luta, explorando se chamou então de "nova sensibilidade". Buscando maior compreensão nas relações humanas, tanto nas leis externas (lutando pela supressão da violência e das prisões que a polícia fazia sem qualquer explicação), quanto nas relações internas, procurando libertar o indivíduo dos sentimentos de culpa e dando-lhe pleno direito à procura do prazer.


Se o poder coercitivo e sua microfisica2 pretendem controlar os membros mais rebeldes da comunidade, a imprensa e a poesia alternativas desenvolvem determinados mecanismos para o seu combate no cotidiano, ao veicular propostas não-oficiais de cultura (MÍCCOLIS, 1987: 77), minando a ditadura pelos seus interstícios, "ocupando espaços" como gostava de enfatizar Torquato Neto, outro expoente dessa geração.


Falar a partir da margens, sem entrar no embate corpo-a-corpo com o as forças do Poder. criando espaços de resistência dentro do sistema capitalista contemporâneo, não foi um ato isolado dos, nossos poetas marginais. Ao contrário, faz parte de diversas propostas de comportamento e de produção artística da pós-modernidade. Segundo o teórico Steven Connor. a paixão pelo marginal permeia a política cultural pós-moderna:


Articular questões de poder e valor na pós-modemidade é com freqüência identificar princípios centralizadores — do eu, do gênero, da raça, da nação, da forma estética — para determinar o que esses centros empurram para as suas periferias silenciosas ou invisíveis. Podemos ver o projeto como o de devolver a consciência dessas periferias ao centro. Essa dinâmica metafórico-topográfica é uma poderosa estratégia imaginativa que também envolve alguns riscos, sendo o mais importante a paixão pelo marginal. (CONNOR, 1992: 184)


Celebrar o marginal, como fizeram esses artistas é promover a emergência de formas de arte e de vida negadas e até reprimidas pelas instituições. A releitura de Leila Míccolis e dos marginais possibilita uma compreensão sintetizada dos embates sociais e culturais do Brasil durante a ditadura militar. O conceito de marginalidade, que atravessa toda essa produção cultural, não apenas revela novas formas de se conceber a linguagem poética, assumidas por essa geração, mas também oferece vasta possibilidade de compreensão dos principais aspectos da cultura e da sociedade brasileiras desse período.


Distanciando-se do caráter "sério" dos escritores e intelectuais engajados dos anos 60, como os poetas dos CPCs3 e dos diversos autores politizados da literatura brasileira, inclusive os modernistas. quase todos comprometidos com um projeto ideológico, poetas como Leila Míccolis e outros se impõem pelo deboche, pela procura de modos alternativos de vida e de comportamento, bem como pelo não compromisso com doutrinas. partidos ou grupos de tendências radicais, sejam liberais ou marxistas.


Até quando esses poetas escrevem sobre temas que refletem uma visão "séria" das questões políticas do momento, relacionadas de maneira pragmática a problemas do cotidiano, isso é feito com grande dose de humor, ironia e irreverência. O descompromisso ideológico é assumido como forma de rebeldia a sistemas de pensamento impostos por um grupo sobre os indivíduos. Nisso se verifica um dos aspectos românticos apontados por alguns críticos na produção dos poetas marginais (GUELFI, 1993).


Identificar expressão poética à própria experiência de vida é outra forte característica romântica do grupo — para o poeta Francisco Alvim, por exemplo, vitalidade é a palavra que define a poesia dessa geração 4 . Rejeitando a teoria do "fingimento", segundo a qual o poeta deve transpor para a linguagem estética as experiências de vida, com distanciamento crítico, Leila Míccolis, tal como os demais poetas dessa geração, propõe uma arte que esteja ao nível da vida. Uma espécie de antiarte, que se confunde com a própria vida.


Com a finalidade de agredir o bom-gosto e os valores morais da sociedade burguesa, ridicularizando tudo o que é oficial, Leila assume uma linguagem veemente e audaciosa, valorizando os palavrões e a pornografia como formas de expressão.


O sexo, que sempre foi escamoteado pela poesia engajada dos CPCs ou explorado como objeto de consumo pela indústria pornográfica, tomou outra dimensão nos anos 70. Com a poesia marginal os temas da sexualidade são integrados à valorização estética do cotidiano. Utilizando em seu "fazer poético" uma linguagem basicamente construída sobre coloquialismos, gírias e expressões pornográficas, os poetas marginais abordam essa temática não mais como totem ou tabu (MATTOSO, 1981: 61). O sexo passa a ser encarado naturalmente como uma das prioridades do cotidiano, revestido "de um tom desmistificador e líbertário, invocando questões ligadas à política do corpo e à luta contra a discriminação da mulher e do homossexual" (MATTOSO, op. cit.: 61). O poema "Bandeira" de Leila Míccolis traduz muito bem essas propostas:


Fazer sexo é também fazer política
de esquerda, de direita,
dependendo da receita
ou do regime...
Não é sujo nem sublime.
Vale só não se esquecer
de que há atentado ao poder...
Ou: como disse Manoel Bandeira
à sua maneira, e com grande visão:
"não queremos mais lirismo
que não seja libertação"

(MÍCCOLIS, 1992: 50)


O leitor que entra em contato pela primeira vez com a poesia de Leila Míccolis sente o impacto de estar diante de uma escritora que explora, de forma ousada, cenas cruas e realistas, num discurso que antes era privilégio dos homens. Mas a utilização da pornografia e do erotismo em sua poesia, como na de outros de sua geração, tem uma função muito diferente do que se verifica nos discursos libertinos. É preciso notar que existe um ponto-limite que separa o erotismo explorado pela indústria pornográfica, do erotismo utilizado como arma política (MORAES e LAPEIZ, 1985).


Exibindo explicitamente os corpos e reduzindo-os a objetos de prazer, sob a argumentação de que estão libertando o indivíduo da moral e da repressão, o discurso libertino tem por objetivo incentivar o consumo de produtos que exploram o sexo (revistas, sex-shops, pornovídeos. e outros produtos auto-erotizantes), alimentando a indústria que faz do corpo uma mercadoria. Toda essa produção pornográfica é direcionada à virilidade machista, visando ao desempenho sexual imediato. A sensação de "liberdade" que provoca, porém, não representa um afloramento do instinto de prazer. Ao contrário, produz uma satisfação pré-fabricada, descartável, que provoca uma resposta compulsiva de consumo cada vez maior desses produtos. Um ciclo vicioso incentivado por uma indústria que organiza a transgressão e domestica o desejo, impondo padrões de comportamento. (MORAES e LAPEIZ, 1985: 48)


Em outra direção encontra-se a face do erotismo no discurso libertário, ao qual pertence a poesia de Leila Míccolis. Ao se utilizar do elemento erótico, a poeta promove um deslocamento estratégico no campo da sexualidade, denunciando as relações de poder exercidas pelo homem sobre o sexo feminino. Leila se utiliza desse discurso para subverter a ideologia libertina. que mostra uma mulher explorada no mundo da pornografia, através de produtos elaborados do ponto de vista masculino e de textos que acabam por veicular uma propaganda degradante contra mulheres e homossexuais.


Leila acredita que, apesar do avanço das mulheres nos últimos anos (MÍCCOLIS, 1987), quando começaram a trabalhar e exigir direitos iguais, o estereótipo da "mulher ideal" continua sendo aquela que ajuda o marido (até trabalhando fora), a companheira, seu braço direito, o astro de Segunda grandeza. Diante desse quadro não é de se estranhar que, ainda no fim dos anos 70, as mulheres fossem incentivadas a gostar de poesias "românticas" — entendidas como "poesias sentimentalistas", que provocam emoções ligadas a sentimentos amorosos —, mais condizentes com sua pretensa natureza emotiva, sensível e pouco racional.


O discurso erótico, político e satírico, na perspectiva das propostas de contestação da sociedade burguesa de consumo, presente em praticamente toda a produção de Leila, desconstrói a fala tradicional da mulher que, marcada por um estilo contido, predominantemente lírico, valorizava a introspeção, o transcendentalismo, privilegiando imagens sutis e suaves. Renunciando a essa fala "contida", "reprimida", imposta à mulher, Leila Míccolis constrói um "eu lírico" que rejeita os padrões convencionais de comportamento feminino, estabelecidos pela sociedade burguesa. e os denuncia como formas de dominação e opressão.


Leila se utiliza de um discurso combativo, próximo ao feminismo dos anos 60, que enfatizava a reivindicação da igualdade de direitos, ao contrário do feminismo contemporâneo, que se concentra na discussão da diferença (OLIVEIRA, 1992). Entretanto, sua poesia acaba conquistando importante espaço para a voz feminina dissonante, subvertendo as convenções da linguagem que lhe foram impostas pela sociedade patriarcal. Explorando o erotismo e os aspectos realistas. declara guerra ao moralismo e à repressão que tolhiam a fala da mulher, como se vê no poema "Machão Ltdº:


Quando chega de repente,
quer me ver sempre contente,
se seu time ganha o jogo,
me provoca com o seu fogo;
se perde, briga comigo
e ainda me deixa a perigo.
Se lhe apraz parecer macho,
prefere que eu fique embaixo;
se escolhe mudar de clima,
permite que eu fique por cima...
Liga apenas pro seu gozo
e ainda se julga fogoso,
um amante de primeira.
Só mesmo muita cegueira...

(MÍCCOLIS, 1987:31)


Sempre se convencionou que tratar de "temas fortes", principalmente os relacionados a sexo, não ficava bem para as mulheres. "Falar de corpo, por exemplo, era correr o risco de comprometer-se, de ser considerada imoral, devassa, libertina" explica Leila no artigo "Da Arte Contemporânea para a Arte Contemporrânea"5. Além disso, as escritoras temiam que os leitores confundissem sua vida pessoal com a obra. Somente a partir dos anos 70 é que, por meio de canais fora dos círculos oficiais de cultura, vêm à tona proposições rebeldes e inconformistas.


A marginalidade da produção dos anos 70 não se explica somente devido aos meios artesanais de que se utilizavam os poetas — seus textos, quase sempre, eram editados em mimeógrafo, numa tiragem reduzida —, mas também, por terem eles atuado à margem dos parâmetros formais herdados do modernismo. Essa poesia redimensionou os conceitos do fazer poético e do próprio texto literário. Sua importância, porém, reside sobretudo no projeto de contestação e crítica da sociedade contemporânea, com suas propostas de comportamento e de vida fora dos circuitos institucionalizados pelo sistema.


Relacionada ao prazer e à alegria, a temática, da sexualidade na ótica da poesia marginal está ligada à idéia de luta política. No caso específico das mulheres tal abordagem permite uma reavaliação do próprio papel da mulher no sistema social. A poesia de Leila faz referências explícitas ao sexo, que não devem ser lidas como uma apologia ao amor livre mas sim ao direito de se dispor da própria sexualidade, colocando-se como sujeito e não como objeto do prazer.


Leila desmitifica a poesia como algo ligado ao Belo e ao sublime e defende o "movimento de arte contemporrânca —, "igualmente lírico, só que mal comportado — para os comportados". A autora argumenta que o "movimento" recebeu duras críticas por "mostrar outras formas de prazer além das preestabelecidas pelo "poder" e "por questionar a associação que sempre se faz da imoralidade com o sexo". o que serviria para camuflar outras "imoralidades como as degradações sociais (fome, miséria, alienação, ganância)". Segundo ela, o movimento também vem sendo alvo de crítica por não se restringir "à beleza (estética) dos corpos" ou "às carícias eróticas", mas por se aprofundar na crítica de uma sexualidade imposta e manipulada por interesses muito maiores que os individuais 6 .


A repressão sempre acompanhou a história da humanidade, independente da cultura, dos costumes, da raça e da cor. Para Marcuse (1978), um dos mentores intelectuais da contestação dos anos 70. os instintos naturais serão sempre atenuados e o prazer irremediavelmente reduzido em nome do trabalho e do desenvolvimento da humanidade, ou seja, em função do princípio da realidade.


As medidas totalitárias, que pretendem aniquilar toda a consciência crítica, preparando o ser humano para a submissão, e sobretudo para a grande renúncia exigida pela sociedade. constituem uma estratégia de moralização, que se realiza como eficiente exercício de poder, uma eficaz máquina de dominação, que. penetrando na vida cotidiana, se exerce sobretudo nos corpos dos cidadãos. fazendo-os viver de maneira autovigilante: e persecutória, o que é altamente benéfico para a organização do trabalho e do sistema sócio-econômico. (MARCUSE, 1978: 45)


O pensamento de Nietzsche, que já havia desmascarado a moralidade e o racionalismo da Filosofia Ocidental, teve importante papel na discussão sobre a crise da cultura no mundo moderno, sobretudo a partir da releitura de sua obra feita por Marcuse nos anos 60. Para o filósofo alemão, a fraqueza do homem. a desigualdade de poder e de riqueza. a injustiça e o sofrimento, foram atribuídos a uma culpa transcendente e a rebelião contra esses aspectos da sociedade burguesa foi chamada de pecado original", como se fosse uma desobediência a Deus (MARCUSE, 1978: 115).


Nietzsche e Leila possuem o mesmo projeto libertário: a quebra da tirania e do autoritarismo típicos da sociedade burguesa, por meio da exaltação do princípio do prazer. Nietzsche desvenda as raizes históricas desse autoritarismo utilizando-se do mito de Apolo, que representaria os aspectos transcendentais da fé e da ordem, cuja função seria a de pacificar, compensar e justificar a existência dos desprivilegiados na Terra, e.. ao mesmo tempo, proteger aqueles que os tornaram submissos. Segundo Nietzsche, em nossa tradição cultural, triunfou o apolíneo sobre o dionisíaco, que se relacionam aos aspectos da cultura ligados à ação e aos instintos.


No lado oposto de Apolo, Dionísio representaria a vontade de poder, ou seja, a pulsão fundamental da vida em seu impulso básico para "aumentar e se estender" (DUROZOI e ROUSSEL. 1990. 341). A idéia básica da filosofia nitzscheana seria a de recuperação desse impulso vital. que se encontra enfraquecido na massa da população. Dessa forma Nietzsche faz o elogio do instinto que representa o poder criador da vida, condenando a moral do pecado.


As propostas são semelhantes mas em vez do pensamento filosófico, Leila se utiliza da linguagem poética. Ao invés de discutir a repressão ao nível da civilização ocidental, ela aponta para os centros de poder disseminados pelo sistema da sociedade capitalista no contexto brasileiro. Disseminação efetuada por meio dos discursos e formas de comportamento dominantes.


A geração marginal dos anos 70 teve consciência das limitações de transformação da sociedade. Nem por isso introjetou a nebulosa atmosfera que vigiava constantemente os jovens naquela época. Sua poética dionisíaca é utilizada estrategicamente face a uma política que desejava o mundo sob controle. Mesmo quando abordam questões políticas da época, estão sempre driblando o mau-humor e o negativismo, pela afirmação do prazer e da alegria. Como a própria poeta afirma, a sua tônica "é o questionamento humano, a política do corpo, a acomodação às convenções, a microfisica do poder — que não está apenas em palavras de ordem ou em determinado regime político, mas que se incute principalmente no cotidiano, entre as "quatro paredes sacrossantas do lar" — perpetuada desde a cama à mesa"7


________________
1 Esta comunicação é parte de um capítulo da pesquisa intitulada "Poetas Marginais: Desafinando o Coro dos Contentes", financiada pelo CNPq com uma Bolsa de Iniciação Científica.
2 Segundo Michel Foucault, o poder não deve ser pensado somente como um centro de autoridade, baseado no Estado e outros órgãos representativos do sistema social, mas como uma força disseminada, difusa, que pode ser detectada em todas as esferas e camadas da sociedade e no comportamento cotidiano das pessoas. (FOUCAULT, 1989).
3 Centros Populares de Cultura, que, nos anos 60, tiveram como otjetivo conscientizar as massas trabalhadoras a respeito das espoliações sofridas por elas no sistema capitalista, incitando-as à luta contra as classes dominantes.
4 Entrevista concedida ao autor, a 8 de agosto de 1995.
5 Sem referência à fonte de publicação, o texto foi cedido por Leila Míccolis ao autor, juntamente com a entrevista que lhe concedeu a 10 de setembro de 1995.
6 Entrevista acima citada.
7 Entrevista acima citada.


(*) Paulo César Andrade da Silva é professor de Literatura da Universidade Federal de Verçosa

Tricotando: Helena Souza Freitas entrevista Leila Miccolis














Helena - Ainda recorda os seus primeiros passos no cenário das Letras? Como foram eles? Contou com algum apoio ou sobretudo com adversidades?


Leila Míccolis – Fui tida como garota prodígio, pois aos 3 anos já fazia quadrinhas e aos cinco trabalhava em rádio e TV. Porém, meu primeiro prêmio literário foi aos dez anos, num concurso sobre Índios. A partir daí gostei da experiência, entrei em outros certames e ganhei diversos, sempre incentivada pela minha mãe. Nunca parei de escrever, mesmo no tempo em que advogava. No entanto, abandonei a profissão para dedicar-me inteiramente à literatura, em 1978. Aí, as adversidades foram financeiras: abandonar uma profissão segura por outra totalmente incerta foi um ousado contrato de risco. A partir daí, tive que navegar em outras áreas que não só as da poesia ou dos concursos literários e aprender o ofício, autodidatamente.


Helena - Leila Míccolis tem exercido a sua escrita em diversos géneros literários. Consegue eleger o seu favorito?


Leila Míccolis – Sem dúvida a poesia... é minha menina dos olhos, meu chamego, meu xodó, talvez até por ser o gênero literário mais rejeitado, sob falsos slogans como o de que “poesia não vende”. Aqui no Brasil, poetisa chegou a virar termo pejorativo... Depois, gosto muito de crônicas (que, afinal, é a poesia do dia-a-dia, em prosa). Na Internet, no site Edadrebil, tenho mensalmente uma coluna dentro de “Arbítrio”, chamada: “Poesia toda prosa”, em que mostro os caminhos percorridos, na vida, pelo poético. Pode ser acessada em http://www.edadrebil.hpg.com.br.


Helena - Como se sente por ter reconhecimento literário num país com tão baixos índices de leitura?


Leila Míccolis – Feliz, naturalmente, também por não ser uma escritora restrita ao mercado editorial. Pertencendo, na poesia, à Geração 70, usei e uso performances e eventos que utilizam a oralidade e não passam pelo livro para chegar até o público. Lógico que livro é fundamental, mas há que se fazer veicular por outros meios além das livrarias.


Helena - Muitos autores consideram-na uma resistente por nunca ter deixado de escrever e de utilizar a palavra para enfrentar os problemas. Concorda com os que partilham desta opinião?


Leila Míccolis – Eu me considero resistente, não por nunca ter deixado de escrever, mas por usar a palavra da forma em que a uso, sempre tentando desmistificar preconceitos, autoritarismos, apontando falsos moralismos e hipocrisias sociais.


Helena - Em que situações usar da palavra abertamente lhe causou transtornos políticos, sociais ou de outra ordem?


Leila Míccolis – Minha poesia sempre foi muito polêmica; se ela incomoda até hoje, de início assustava ainda mais. Em plena ditadura militar, quando em 1978 eu escrevi Silêncio Relativo, mesmo sendo a edição totalmente paga por mim, a gráfica não aceitou fazer o livro e, sob muita pressão, até imprimiu, sem colocar seu nome, com medo de represália ou da apreensão da obra. E olha que eu não falava abertamente sobre o regime mas, lógico, meu ciclo familiar era um tanto inquietante, porque mostrava que política e repressão começam dentro da nossa casa. Também tive vários poemas censurados em Suplementos Literários e não só da época - até hoje, a primeira fase de minha poesia (mais agressiva) é pouco divulgada. Enfim, minha poesia não é “pacata e acomodada”. Com menos ou mais humor, ela questiona e mostra, muitas vezes, o ridículo de uma vida alienada, consumista e cheia de protótipos.


Helena - Além de escrever, dirige o site e a editora Blocos. Como concilia tantas tarefas?


Leila Míccolis – A direção não é só minha. É principalmente do Urhacy Faustino, meu companheiro, a quem cabe toda a parte gráfica. Eu fico com a seleção de texto, a parte mais agradável, a meu ver. Realmente o trabalho é grande: a Blocos acaba de fazer uma parceria internacional com a Rickmarc Publishing, de Londres e nossa revista eletrônica (que não é de uso apenas da editora, mas já conta ao todo com 1500 poetas) é atualizada diariamente. Felizmente, esse trabalho coletivo é bem recompensado — no mês passado (agosto/2001) tivemos 234.366 pages views, 45 países visitando Blocos. Aliás, convido todos a conhecer e participar em www.blocosonline.com.br. Não lido, porém, apenas com esta parte, tenho também meus compromissos profissionais como escritora, que não são poucos. No entanto, quando se ama aquilo que se faz, o tempo, cúmplice, age a nosso favor. Só pode ser isto...


Helena - Após reunir autores de todo o Mundo, organizar concursos e divulgar formas alternativas de edição, que projectos tem para o futuro breve do site Blocos Online?


Leila Míccolis – Queremos transformar Blocos Online em um grande portal, abrigando inclusive sites menores e menos visitados. No entanto, também estamos procurando um patrocinador, para que possamos crescer mais rápido.

Blocos Online nos sai muito caro financeiramente, é um espaço democrático cada vez maior (com mais de 10.000 páginas). e portanto cada vez mais oneroso para quem vive exclusivamente de literatura, como Urhacy e eu. Se pudéssemos investir mais nele, atingiríamos um maior número de pessoas. Por mais incrível que pareça, Blocos é lido mais no exterior do que no próprio Brasil, onde detém uma faixa de 23% a 25% de leitores. Assim, entre os projetos prioritários, está o nosso desejo de reverter esta situação. Já inauguramos as seções de poesia-animada (em flash), poesia-ilustrada e poema-objeto. Agora estamos estudando a implantação de um banco de dados e de outros recursos úteis e práticos, para deixar nossa revista eletrônica cada vez melhor.


Helena - A escrita para televisão, que representou êxitos como 'Barriga de Aluguel' ou 'Kananga do Japão' mudaram a sua projecção no palco literário brasileiro? Em que medida?


Leila Míccolis – Não digo que mudaram, mas ampliaram meu universo: acho que me tornaram mais conhecida. No Brasil, uma autora que quer viver profissionalmente de literatura, não pode ficar restrita aos direitos autorais de seus livros, ainda mais sendo eles de poesia. Precisa partir para outro tipo de veículos, que alarguem suas fronteiras. Foi o que aconteceu. Tornando meu nome mais conhecido, naturalmente minha literatura ganhou com isso também, pois é mais procurada e lida.


Helena - Considera-se uma autora feminina, feminista ou ambas? Ou, pelo contrário, nenhuma daquelas?


Leila Míccolis – Principalmente feminista. Infelizmente o termo (igual a “poetisa”) tornou-se pejorativo e as pessoas passaram a ter vergonha de usá-lo. Para mim, feminista é todo ato que visa a ampliação dos direitos civis e políticos da mulher. E, dentre esses direitos, está, inclusive, o do esclarecimento de seu emocional, através do qual ela é tantas vezes sutilmente manipulada. Portanto, minha poesia é feminista sim, embora não se dirija exclusivamente às mulheres, mas a todos os que efetivamente querem a construção de uma vida mais justa e saudável, em todos os sentidos.


Helena - Uma autora consegue publicação, respeito e consagração com a mesma 'facilidade' que um autor? Ou subsistem diferenças assinaláveis?


Leila Míccolis – Existem diferenças, lógico — facilidades e dificuldades extras, a serem vivenciadas pelo “sexo frágil”. Julgo, contudo, que com força de vontade, coragem e competência a mulher consegue furar qualquer tipo de prevenção ou bloqueio.


Helena - Em que aspecto a sua sensibilidade perante a vida se entrelaça com a veia de escritora?


Leila Míccolis – Eu sou daquelas que acreditam na coerência entre vida e obra. Pelo menos comigo acontece assim: eu não saberia dividir-me dicotomicamente, defendendo certos valores na minha obra e negando-os na vida cotidiana. Acho que é por isso que minha produção poética, mesmo quando se veste de tom irônico, tem um clima tão denso, tão forte e mobiliza tanto as pessoas: é que ela não é mera ficção; ela é baseada nos princípios em que acredito e numa postura de vida que investe, pessoalmente, nos valores que dissemina.


Helena - Consegue imaginar o Mundo sem Literatura e sem livros?


Leila Míccolis – Meu mundo é feito de literatura e para a literatura, porque, como Torquato Neto já afirmou, “escrever é apenas a ponta do iceberg”. Então, sem livros, o meu universo seria um deserto árido — território onde eu certamente não gostaria de habitar.


Helena - Tendo em conta que o gosto pela leitura depende muito da educação ministrada às crianças, que livros podem, na sua opinião, incentivar os mais novos e levar à formação de futuros leitores assíduos?


Leila Míccolis – Antigamente só se incutia o hábito de leitura, lendo-se. No mundo contemporâneo, porém, existem outros meios: a leitura de um livro, pela mãe, de modo passivo, não terá tanto apelo quanto um animado livro virtual em CD, ou um game interativo. Então, que a modernidade seja nossa aliada: encaremos certos jogos, como os de RPG, como um poderoso incentivo para as crianças começarem a formular uma linguagem narrativa própria.

Quanto mais elas se embrenharem pela ficção, mais se sentirão motivadas a conhecer outras histórias, até para criarem as suas. E aí, apresentá-las ao infinito universo do mundo impresso, acrescentará uma nova alternativa a ser descoberta e explorada por elas. Com relação ao tipo de livro ideal, creio que isso varia de criança para criança e é necessário que se tenha bastante perspicácia para fazer-se a escolha certa, ou seja, encontrar o livro mais “apetitoso” para cada leitor ou leitora-mirim.


Helena - Muitas vezes, numa determinada época e num determinado país, a literatura tende a homogeneizar-se. Sente falta de alguns temas nas prateleiras das livrarias?


Leila Míccolis – Não, não creio nisso. Homogeneizar a literatura é o mesmo que se falar em homogeneizar os seres humanos que a escrevem; na vida real, as pessoas sempre serão diferentes umas das outras e exprimem a diferença de posturas através de seus textos. Às vezes, apareceram até escolas literárias e/ou movimentos predominantes, mas, mesmo dentro deles, a unidade é meramente aparente. Veja, por exemplo: apesar de pertencermos à mesma Geração de 70, cuja característica principal, a meu ver, era a linguagem coloquial e irônica, pode-se colocar na mesma tendência à homogeneização as obras minhas, de Paulo Leminski, de Alice Ruiz, de Nicolas Behr, de Touchê, de Ulisses Tavares e de Glauco Mattoso? Claro que não. É que, em matéria de gente, cada cabeça é uma sentença, e, portanto, uma forma de expressão diversa. Generalizar me parece um tanto perigoso. Quanto às prateleiras das livrarias, creio que, no momento, o problema consiste não na multiplicidade temática nos livros expostos mas na falta de leitores que possam apreciar, entender e interessar-se por tão ampla variedade.


Helena - Que projectos ocupam actualmente os seus dias? E a médio prazo, quais os seus planos?


Leila Míccolis – Atualmente trabalho na roteirização final de um filme brasileiro (longa metragem), no crescimento de Blocos enquanto editora e revista eletrônica, no término do meu 4º curso on line de roteiro de televisão e no preparo dos meus próximos livros de poesia e de crônica. A médio prazo, aguardo a tradução do meu livro “Sangue Cenográfico” para o inglês e talvez aceite um convite para fazer novela no Japão.


Helena - Qual a sua opinião tem sobre o Literário Online e o seu papel de divulgação cultural?


Leila Míccolis – Acho que é um trabalho precioso, feito com muita honestidade, critério e amor. Obras como estas deveriam servir de exemplo para que nossa cultura fosse mais difundida e mostrada em toda a exuberância. Estão de parabéns, portanto, o Prof. Roberto Pires e todos os da sua equipe. Meu abraço a todos. Também quero agradecer a você, por tanta inteligência e sensibilidade na formulação das perguntas desta entrevista.


Helena - Pode deixar uma mensagem aos seus leitores e espectadores?


Leila Míccolis – Sim, com prazer. Fazer literatura em nosso país é um exercício árduo. No entanto, para quem a ama de corpo e alma, não fazer é mais difícil ainda. Portanto, lutemos pela regulamentação da profissão para a expansão do mercado, batalhemos pelos nossos créditos e demais direitos autorais, e, paralelamente a isto, não nos deixemos abater pelas críticas destrutivas, pela falta de incentivos, ou pelas “pedras no caminho”. Cabe ao escritor da atualidade, disposto a redigir seus livros, vendê-los e divulgar suas idéias, vencer primeiro os desafios que o separam da realização plena do seu ideal.

LEILA MÍCCOLIS, A PEQUENA NOTÁVEL












Cleber Teixeira e Leila Míccolis na Feira do Livro de Blumenau



Leila Míccolis é carioca, tem mais de 30 livros editados (poesia e prosa), com obras publicadas na França, México, Colômbia, África, Estados Unidos e Portugal, além de teatróloga, roteirista de cinema e escritora de novelas de tv, entre elas “Kananga do Japão”, “Barriga de Aluguel” e “Mandacaru”.

Elaborou verbetes para a “Enciclopédia de Literatura Brasileira” (MEC/OLAC) e também publicou: “Catálogo da Imprensa Alternativa”, 1986, pela RioArte/Prefeitª do RJ.

Publicada na Revista Poesia Sempre (Biblioteca Nacional/MEC), consta do Banco de Dados Informatizados do Banco Itaú - Módulo Literatura Brasileira, Setor Poesia (categoria: “Tendências Contemporâneas”) e dos “Cadernos Poesia Brasileira” - vol. 4, “Poesia Contemporânea”, editado pela mesma instituição, 1997.

Sua obra é citada e analisada por escritores como: Affonso Romano de Sant’Anna (Ed. Vozes/1978), Glauco Mattoso (Ed. Brasiliense/1981), Jair Ferreira dos Santos (idem/1986), Assis Brasil (Ed. Imago/FBN/UMC, 1998).

Co-edita Blocos, com Urhacy Faustino, revista impressa e eletrônica (www.blocosonline.com.br) e é Mestre em Ciência da Literatura/Teoria Literária na UFRJ, com Bolsa de Pesquisa pelo CNPq. Eis alguns de seus poemas:


Ponto de vista

Eu não tenho vergonha
de dizer palavrões
de sentir secreções,
vaginais ou anais.
As mentiras usuais
que nos fodem sutilmente,
essas sim são imorais,
essas sim são indecentes.


Atirador de facas

Arrancar as vendas
e acompanhar,
de olhos abertos,
a trajetória do punhal,
cravado em nosso corpo, em nosso peito,
a cada amor desfeito.


Engorda

Ilusões para os aflitos
para a mulher, segurança,
para a casa, samambaias;
consolo para os doentes,
conselhos aos desgarrados,
aos leitos de amor, cambraias.
Sorvete para as crianças,
esmolas para os famintos,
para os turistas as praias;
para os homens, futebol,
televisão para todos
e alface para as cobaias.


LIBERALidade

Há quem fale em "poder jovem"...
Se ele existe, que me provem,
pois se resolvo querer
o que os pais não estão a fim,
dizem que eu não tenho idade,
nem sequer maturidade
pra saber o que é bom pra mim.
Como eu prefiro as verdades
mesmo que sejam ruins
concluo olhando os meus brins
que poder jovem é escolher
a marca da calça JEANS...


Coprofagia

Tenho medo
de te mandar à merda
e gostares.


Democracia

A índia enrabada,
a negra explorada,
a branca fodida,
direitos iguais.


Na vida

Não sou comportada.
Puta e lésbica
e o que mais me der na telha,
pareço um pássaro
procurando espantalhos e alçapões,
querendo me expandir como sono
em pálpebras cansadas,
explodir em violência
no silêncio dos acomodados.
Puta e lésbica
e o que mais me der na telha
sou a seqüência
do que o primeiro gesto desencadeia.


Ciências físicas (e contábeis)

O homem se divide
em:
cabeça, bolso e membro.
A cabeça serve para pensar em mulheres.
o bolso para pagá-las.
o membro para fodê-las.
Mais alguma pergunta?


Reprodução

Trepamos como dois coelhos
para fazermos fedelhos
que dos pais serão espelho,
e treparão como coelhos.


Mau tempo

Coração assustado
à espreita de aparições,
temor constante,
o sobressalto até pelos estalos da madeira,
pelas sombras, pesadelos
e todas as tocaias que rondam o escuro,
e a perspectiva sombria
de não se estar vivo
no outro dia.


Vingança

Esmagar em silêncio
a palavra engolida e fingir-se contente.
Escolher em silêncio
o momento preciso
e escondê-lo no ventre.
Planejar em silêncio
a cobrança do medo
e sorrir entredentes.


Manchas

Cansada de brigar e botar banca,
num dos raros momentos de ternura,
eu hasteei minha bandeira branca
um tanto amarelada de gordura.


Três números de mágica

O espetáculo começa:
faço sair da cartola
televisões a cores,
automóveis
e imóveis
Em 180 prestações.
Depois te serro ao meio no caixão,
para salvar-te a seguir:
surges inteiro e pareces tão ileso
que nem dá para notar-se a castração.
Por último me cobres abracadabra
e volto ao tempo de menina
tirando da vagina objetos contundentes
que fizeram a minha vida e o meu hímen
complacentes.


Intuição

Ter nas pessoas
a confiança dos gatos,
que fecham os olhos
e esticam o pescoço,
na certeza do carinho.


Substituição

No meu prédio
compraram a área da frente,
toda arborizada,
para enfeitar a entrada.
Depois, acharam bobagem,
destruíram a paisagem,
e a transformaram em garagem.
Em
compensação, porém,

por amor à ecologia,
puseram, no mesmo dia,
papel pintado no hall
no qual se vê, sob o sol,
em nuances coloridas,
lindas árvores floridas...


Pena de morte

Eram bastante bons
aqueles tempos de ódio,
em que planejávamos nossos assassinatos,
pelo simples prazer de nos vingarmos:
eu te via com os dedos na tomada,
tu me vias sufocada pelo gás.
Tempos em que sorrias ao atravessar a rua,
e eu achava graça em ser atropelada;
tempos em que queríamos fazer um filho,
para espancarmos juntos,
nos dias de ócio;
em que eu te servia de escarradeira,
em vez de cozinheira e passadeira.
Depois, veio o amor,
que é como um lenço em que se assoa,
ou mãe que chicoteia e nos perdoa.
Hoje afago-te as corcovas
e lustro-te as botas novas.


Referencial

"Solteira de aceso facho
precisa logo de macho;
se é nervosinha a casada
só pode ser mal trepada;
viúva cheia de enfado
tem saudade do finado;
puta metida a valente
quer cafetão que a esquente.
Mulher não vive sem homem.
A prova mais certa disto
é que até as castas freiras
são as esposas... de Cristo.
Tal regra é tão extremista
que não contém exceção:
quem sai dela é feminista,
fria, velha ou sapatão".

E é com essa bagagem de preconceitos adquiridos
que chega-se à conclusão,
na separação de amores doloridos,
de que não houve culpados.
Só feridos.


Pacifismo

Das folhas dos pinheirais
faz-se a folha de papel
e faz-se o papel-dinheiro...
Dos seios dos seringais,
do seu leite empedernido,
sangrado através das rachas,
autores e industriais
nutrem-se até da borracha.
Daí, se ouvimos dizer,
que a literatura pode ser
das armas, a mais cruel,
é talvez devido ao fato
de que o ato de escrever,
com conseqüências funestas,
traga em seu bojo aborteiro
a matança de pinheiros,
e a extinção de florestas.


Sendas estelares

Eu fui um dia rainha
e o meu reino se estendia
do quarto até a cozinha,
mas depois foi restringido:
em vez de amante, o marido,
em vez de gozos, extratos.
Agora nem isso tenho
Apenas restam-me os pratos.


A seco

Tem coisas que a gente só diz de porre
se não o outro corre;
mas passada a bebedeira,
a gente acha que fez besteira,
não devia ter falado,
que se expôs adoidado,
à toa e foi tolice.

Finge-se então que se esquece o que disse,
culpa-se a carência, a demência, a embriaguez
responsáveis por tamanha estupidez.

E é aceitando este estranho cabedal
que quando se volta ao “estado normal”,
cada vez mais sós, na defensiva,
corroídos morremos de cirrose... afetiva.


Lembrete

Responsáveis
pela Terra
todos somos.
NÃO PISE NA GRAMA!!!
Gnomos...


Para conhecer um pouco mais sobre Leila Míccolis acesse http://www.blocosonline.com.br/sites_pessoais/sites/lm/index.htm