SONETO ALTISSONANTE
Barulho é o que se faz na poesia,
de dentro para fora do poema.
Se não for ruidoso o próprio tema,
a forma desafina a melodia.
Se o atonal virou monotonia,
resolve-se na crítica o problema.
É só polemizar, com tinta extrema,
se a pança deve estar ou não vazia.
A fome, última instância do organismo,
define o decibel do belo artístico,
que vai de zero a dez em ativismo.
A coisa se resume neste dístico:
Mais pintam de fatídico um abismo,
maior seu interesse e grau turístico.
SONETO DESARVORADO
Parece que as moléstias pulmonares
voltaram numa escala assustadora.
Pandêmicas já são, como se fora
romântica a aridez dos nossos ares.
Pulmões são, um por vez, nem sempre aos pares,
os alvos das bronquites, da traidora,
fatal tuberculose, e assobiadora
se torna a inspiração nos lupanares.
A pleura dói nas costas, e no peito
reflete a grossa tosse da traquéia,
que, plena de catarro, é um cano estreito.
Asmática e pneumônica, a plebéia
manada arfa no denso (ou rarefeito)
bulício da poluta Paulicéia.
SONETO DOS BAIXOS TEORES
Mulher fumando é foda! Aquilo fede
que nem pólvora podre e nada poupa:
o cheiro pega em tudo, até na roupa
dos outros, e o perfume pouco impede.
Se o papo rola em bar, quando ela arrede
seu pé dali, a toalha cheira a estopa
mofada e foi cinzeiro até da sopa
o prato esvaziado, e o copo excede.
Fumaça ardida sopra ela na cara
de todos com quem fala, e do nariz
sai bafo de dragão que ódio dispara.
Coitada, bem que tenta, como eu fiz,
livrar-se desse vício, mas a tara
podólatra e o cigarro pedem bis...
DEFECTIVO
eu mordo
tu mastigas
ele engole
nós digerimos
vós cagais
eles policiam
SONETO RASGADO
Fenômeno curioso, força oculta
suspende de repente o meu sintoma
de febre, dor de dentes ou glaucoma
na véspera do exame ou da consulta.
Vem desde nossa infância à idade adulta,
e nada tem a ver com o diploma
exposto em consultórios ou a soma
cobrada, que nos dói mais que uma multa.
O fato é que saramos num instante,
com medo, porventura, do motor,
da pinça, faca ou coisa semelhante.
Porém o que nos causa mais pavor,
acima até do inferno que viu Dante,
é o mórbido sorriso do doutor...
CONFORME O NEXO
para Leila Míccolis
prenda do lar renda bruta
puta tributo ou escrava
tanto lhe faz dá na mesma
coma 1 merda ranho escreva
leia não leia pau come
se roda bolsa na esquina 2
tem cacete cassetete
cabaço capacho escova
se se casa caso não
se prostitua ele estupra
não paga em dólar e supra
_____
1. variante: "cama"
2. variante: "esquiva"
SONETO A RENATO RUSSO
Embora original, gênio, perito,
do nosso rock um raro uirapuru,
vivia ensimesmado e jururu,
talvez por não ser grego nem bonito.
Entendo a sua angústia e o seu conflito,
meu ídolo, meu mártir, meu guru!
Causou você, primeiro, um sururu;
depois, tristeza, e então calou seu grito.
Respeito quem é triste, ou aparenta.
Os outros grandes brincam: Raul, Rita
ou cospem mera raiva barulhenta.
Cazuza também brinca, mas medita.
Arnaldo Antunes testa, experimenta.
Renato faz da dor a dor: maldita!
SONETO POETICONOGRÁFICO
A "poeticidade" decomposta
"depoe da citi", ou seja, da cidade,
coisa que Augusto fez com propriedade,
pois é do cru concreto o que mais gosto.
Meu bloco aqui coloco só em resposta
ao Jomard, de Recife, esse confrade
que vê na sua Veneza o bruto jade
rajado, que craveja a nossa costa.
Bevi do concretismo a poesia
que é líquida e se esconde atrás da pedra
qual água no sertão: Cabral sabia!
A poeticidade jamais medra
se não citar também cidadania,
concreta qualidade: a mais paredra!
SONETO TRAMBIQUEIRO
Bandido, celerado, meliante,
pirata, bucaneiro, bandoleiro,
corsário, flibusteiro, pistoleiro,
falsário, plagiário, ator, farsante.
Mentor, capanga, cúmplice, mandante,
ladrão, sequaz, comparsa, quadrilheiro,
facínora, assaltante, tesoureiro,
banqueiro, figarista e tutti quanti.
Prefeito, magistrado, malfeitor.
Jagunço, deputado, edil, suplente.
Um estilionatário, um senador.
O vice, o candidato, o pretendente.
O correligionário, o estuprador.
O Papa, o ditador, o presidente.
MOTE MARTELADO
Bem melhor que foder diariamente
É parir um poema a cada dia.
GLOSA AGALOPADA
O romano, que é prático e prudente,
Já falou: Nulla dies sine linea
E a missão do escritor assim define-a:
Bem melhor que foder diariamente.
Tem razão o latino, porque a gente
Nove meses demora pra dar cria.
Mais vantagem, portanto, percebia
No martelo e na glosa que na foda,
Pois o gozo, a quem nunca se acomoda,
É parir um poema a cada dia!
SONETO PREJUDICIAL
Na bolsa de valores se baseia
um ânimo excessivo e uma "euforia",
chamada de "otimismo", que irradia
tentáculos na mais global aldeia.
Mas quando alguém descobre que bambeia
o frágil castelão de nota fria,
o pânico se instala e, mal o dia
desponta, está vazia a que era cheia.
Fortunas se evaporam que nem fumo
e sólidas empresas pro buraco
lá vão, pra dar da crise só o resumo.
Foi ontem, mas parece ser tão fraco
na mente esse episódio, que eu espumo
de raiva, tanto o assunto me enche o saco!
MOTE MOMENTOSO
Quem mandou pisar na bosta?
Agora limpa a sujeira!
GLOSA
Quando alguém diz que não gosta
De política, mas vota
No ladrão, só borra a bota:
Quem mandou pisar na bosta?
Mal seu pé naquilo encosta,
Sente o que o governo cheira!
O eleitor erra a primeira,
Na segunda o voto nega:
Confiou na escolha cega,
Agora limpa a sujeira!
SONETO DOS PESOS E MEDIDAS
Disseram-me que, à tarde, na TV
exibem-se programas de mau gosto:
nojento rango o povo está disposto
a ver sendo comido por cachê.
Minhocas vivas? Lesmas? Qual o quê!
O nojo é mais embaixo: sobre o rosto
do bravo voluntário vê-se exposto
um vômito de carne "fesandê".
Só isso? Não! Num prato de espaguete
misturam vermes moles e moventes
e uns ovos de esturjão, pra que complete.
Baratas alguém trinca entre dois dentes
e chupa a "maionese"! E inda há quem vete
as taras por chulé como "doentes"!
SONETO DA VIGARICE
Remédios falsificam com farinha!
Dinheiro, em xerocópia! Tem pirata
no rádio e no CD, sem quem combata
a fraude no tamanho da sardinha!
Entope com hormônios a galinha
e os ovos lhe rotula quem a mata
de "light" e "dietéticos"! De errata
carecem os jornais em cada linha!
Expande o contrabando seu mercado,
e as urnas fajutadas no varejo
engrossam os partidos no atacado!
Nem tudo está perdido, alegre, vejo:
não há chulé sintético inventado
capaz de tornar frio o meu desejo!
SONETO REAL
As coisas, como são, ninguém aceita,
e todos tentam dar-lhes aparência
mais doce e palatável, providência
inócua, já que a sorte rola e deita.
Políticos transformam a desfeita
cruel dum desafeto em ocorrência
banal e superada, inda que pense-a
a sério quem a sofre e não confeita.
Num dia um trata ao outro de "ladrão",
"safado", "corno" e "bicha"; no seguinte
houve "mal-entendido" e "distorção".
O fato é que quem ouve é mau ouvinte:
se xingam-se é porque, na certa, são
piores, muito além do que se pinte!
SONETO DO DECORO PARLAMENTAR
– O ilustre senador é um sem-vergonha!
– O quê?! Vossa Excelência é que é safado!
E os dois parlamentares, no Senado,
disputam palavrão que descomponha.
Um grita que o colega usa maconha.
Responde este que aquele outro é viado.
Até que alguém aparte, em alto brado
anima-se a sessão que era enfadonha.
Inútil tentativa, a da bancada,
de a tempo separar o par briguento:
aos tapas, se engalfinham por um nada...
Imagem sem pudor do Parlamento,
são ambos mais sinceros que quem brada:
– Da pecha de larápio me inocento!
SONETO NÃO GOVERNAMENTAL
O que é, o que é? Responda antes que eu gongue!
Tem cara, ora de creche, ou de hospital,
às vezes até banco, e o capital
tem crédito que encurte, ora que alongue.
Nem clube de gamão, nem pingue-pongue,
nem mutirão, nem multinacional,
nem fundo de quintal, nem estatal!
Não adivinha? É simplesmente a ONG!
Mais extra-oficial é o combativo
estilo do Greenpeace ou dos anarcos,
que enfrentam as potências com motivo!
Meu caso é bem atípico: com parcos
recursos conto, e da visão me privo,
mas contra os baleeiros vão meus barcos!
SONETO BARRACO
Maldito! Fidaputa! Desgraçado!
Safado! Sem-vergonha! Salafrário!
Tratante! Sacripanta! Mercenário!
Xibungo! Bicha! Aidético! Viado!
Galinha! Vaca! Sífilis do gado!
Esposa de bundão! Filha de otário!
Sinônimo de "à toa" em dicionário!
Cadela! Égua! Vadia! Frango-assado!
Cadela é sua mãe! Bicha é você!
É a vó! Vá chupar pau! Vá dar xibiu!
Você que vá tomar! Você que dê!
Estou de saco cheio e cu vazio,
cagando em tudo! E sabem mais o quê?
Mandando tudo à puta que pariu!
SONETO COCHILADO (ou COXILADO)
Depois que fiquei cego, na lembrança
às vezes a grafia um branco dá:
não sei se escrevo "chícara de chá"
ou "xícara de xá" tem mais usança.
Um S ou C cedilha sempre dança
(ou "dansa"?)... É "farsa" ou "farça"? É "ca" ou "qua"
a sílaba em "catorze"? Não me vá
dizer que "transa" soa como "trança"!
Estou perdido! Sei que, por princípio,
cognatos são homógrafos, mas vejo
que "extenso" de "estender" é particípio!
Se X tem "extra", é justo que o traquejo
a "destra" como "dextra" estereotipe-o
e ao falo a "juxtaponha" por gracejo!
SONETO BATISMAL
No manual de estilo está disposto
que Pequim é "Beijim" e estouro é "boom".
Bandido é "cidadão", bunda é "bumbum".
Prostituta é "modelo", cara é "rosto".
Mas que mania estúpida! Que gosto
de achar que flatulência ou peido é "pum",
que "alcoólico" é o alcoólatra ou bebum,
como se trocar nome é trocar posto!
Pra mim, "beijim" é o beijo do mineiro,
"bumbum" é só bundinha de neném
e puta é puta mesmo, bem rasteiro!
A mídia quer ditar o que convém,
porém, no linguajar do brasileiro,
não vem com viadagem, que não tem!
SONETO TERMINAL
Se o velho e retardado agora for
"idoso" e "excepcional", é mais precisa
a forma que, hoje em dia, se eufemiza:
"terceira idade", "terceiro setor".
Se um cego é um "invidente", é de supor
que, já "deficiente", exige, à guisa
de adendo, um "visual", e que precisa
ainda do bordão de "portador".
De quê? "Necessidades", obviamente!
Não basta? Inda tem mais: "especiais"!
Que idéia esses babacas têm na mente?
Não é com eufemismos que se faz
justiça ao "aleijado"! O que ele sente
é a dor de ser da raça dos "mortais"!
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