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quinta-feira, dezembro 21, 2006

A poesia iluminada de um cego às avessas




SONETO ALTISSONANTE


Barulho é o que se faz na poesia,
de dentro para fora do poema.
Se não for ruidoso o próprio tema,
a forma desafina a melodia.


Se o atonal virou monotonia,
resolve-se na crítica o problema.
É só polemizar, com tinta extrema,
se a pança deve estar ou não vazia.


A fome, última instância do organismo,
define o decibel do belo artístico,
que vai de zero a dez em ativismo.


A coisa se resume neste dístico:
Mais pintam de fatídico um abismo,
maior seu interesse e grau turístico.




SONETO DESARVORADO


Parece que as moléstias pulmonares
voltaram numa escala assustadora.
Pandêmicas já são, como se fora
romântica a aridez dos nossos ares.


Pulmões são, um por vez, nem sempre aos pares,
os alvos das bronquites, da traidora,
fatal tuberculose, e assobiadora
se torna a inspiração nos lupanares.


A pleura dói nas costas, e no peito
reflete a grossa tosse da traquéia,
que, plena de catarro, é um cano estreito.


Asmática e pneumônica, a plebéia
manada arfa no denso (ou rarefeito)
bulício da poluta Paulicéia.



SONETO DOS BAIXOS TEORES

Mulher fumando é foda! Aquilo fede
que nem pólvora podre e nada poupa:
o cheiro pega em tudo, até na roupa
dos outros, e o perfume pouco impede.

Se o papo rola em bar, quando ela arrede
seu pé dali, a toalha cheira a estopa
mofada e foi cinzeiro até da sopa
o prato esvaziado, e o copo excede.

Fumaça ardida sopra ela na cara
de todos com quem fala, e do nariz
sai bafo de dragão que ódio dispara.

Coitada, bem que tenta, como eu fiz,
livrar-se desse vício, mas a tara
podólatra e o cigarro pedem bis...


DEFECTIVO

eu mordo
tu mastigas
ele engole
nós digerimos
vós cagais
eles policiam




SONETO RASGADO


Fenômeno curioso, força oculta
suspende de repente o meu sintoma
de febre, dor de dentes ou glaucoma
na véspera do exame ou da consulta.


Vem desde nossa infância à idade adulta,
e nada tem a ver com o diploma
exposto em consultórios ou a soma
cobrada, que nos dói mais que uma multa.


O fato é que saramos num instante,
com medo, porventura, do motor,
da pinça, faca ou coisa semelhante.


Porém o que nos causa mais pavor,
acima até do inferno que viu Dante,
é o mórbido sorriso do doutor...




CONFORME O NEXO

para Leila Míccolis

prenda do lar renda bruta
puta tributo ou escrava
tanto lhe faz dá na mesma
coma 1 merda ranho escreva
leia não leia pau come
se roda bolsa na esquina 2
tem cacete cassetete
cabaço capacho escova
se se casa caso não
se prostitua ele estupra
não paga em dólar e supra

_____
1. variante: "cama"
2. variante: "esquiva"



SONETO A RENATO RUSSO

Embora original, gênio, perito,
do nosso rock um raro uirapuru,
vivia ensimesmado e jururu,
talvez por não ser grego nem bonito.


Entendo a sua angústia e o seu conflito,
meu ídolo, meu mártir, meu guru!
Causou você, primeiro, um sururu;
depois, tristeza, e então calou seu grito.

Respeito quem é triste, ou aparenta.
Os outros grandes brincam: Raul, Rita
ou cospem mera raiva barulhenta.


Cazuza também brinca, mas medita.
Arnaldo Antunes testa, experimenta.
Renato faz da dor a dor: maldita!




SONETO POETICONOGRÁFICO

A "poeticidade" decomposta
"depoe da citi", ou seja, da cidade,
coisa que Augusto fez com propriedade,
pois é do cru concreto o que mais gosto.


Meu bloco aqui coloco só em resposta
ao Jomard, de Recife, esse confrade
que vê na sua Veneza o bruto jade
rajado, que craveja a nossa costa.


Bevi do concretismo a poesia
que é líquida e se esconde atrás da pedra
qual água no sertão: Cabral sabia!


A poeticidade jamais medra
se não citar também cidadania,
concreta qualidade: a mais paredra!




SONETO TRAMBIQUEIRO

Bandido, celerado, meliante,
pirata, bucaneiro, bandoleiro,
corsário, flibusteiro, pistoleiro,
falsário, plagiário, ator, farsante.


Mentor, capanga, cúmplice, mandante,
ladrão, sequaz, comparsa, quadrilheiro,
facínora, assaltante, tesoureiro,
banqueiro, figarista e tutti quanti.


Prefeito, magistrado, malfeitor.
Jagunço, deputado, edil, suplente.
Um estilionatário, um senador.


O vice, o candidato, o pretendente.
O correligionário, o estuprador.
O Papa, o ditador, o presidente.




MOTE MARTELADO

Bem melhor que foder diariamente
É parir um poema a cada dia.

GLOSA AGALOPADA

O romano, que é prático e prudente,
Já falou: Nulla dies sine linea
E a missão do escritor assim define-a:
Bem melhor que foder diariamente.
Tem razão o latino, porque a gente
Nove meses demora pra dar cria.
Mais vantagem, portanto, percebia
No martelo e na glosa que na foda,
Pois o gozo, a quem nunca se acomoda,
É parir um poema a cada dia!


SONETO PREJUDICIAL

Na bolsa de valores se baseia
um ânimo excessivo e uma "euforia",
chamada de "otimismo", que irradia
tentáculos na mais global aldeia.


Mas quando alguém descobre que bambeia
o frágil castelão de nota fria,
o pânico se instala e, mal o dia
desponta, está vazia a que era cheia.


Fortunas se evaporam que nem fumo
e sólidas empresas pro buraco
lá vão, pra dar da crise só o resumo.


Foi ontem, mas parece ser tão fraco
na mente esse episódio, que eu espumo
de raiva, tanto o assunto me enche o saco!


MOTE MOMENTOSO

Quem mandou pisar na bosta?
Agora limpa a sujeira!


GLOSA

Quando alguém diz que não gosta
De política, mas vota
No ladrão, só borra a bota:
Quem mandou pisar na bosta?
Mal seu pé naquilo encosta,
Sente o que o governo cheira!
O eleitor erra a primeira,
Na segunda o voto nega:
Confiou na escolha cega,
Agora limpa a sujeira!



SONETO DOS PESOS E MEDIDAS

Disseram-me que, à tarde, na TV
exibem-se programas de mau gosto:
nojento rango o povo está disposto
a ver sendo comido por cachê.

Minhocas vivas? Lesmas? Qual o quê!
O nojo é mais embaixo: sobre o rosto
do bravo voluntário vê-se exposto
um vômito de carne "fesandê".

Só isso? Não! Num prato de espaguete
misturam vermes moles e moventes
e uns ovos de esturjão, pra que complete.

Baratas alguém trinca entre dois dentes
e chupa a "maionese"! E inda há quem vete
as taras por chulé como "doentes"!


SONETO DA VIGARICE

Remédios falsificam com farinha!
Dinheiro, em xerocópia! Tem pirata
no rádio e no CD, sem quem combata
a fraude no tamanho da sardinha!

Entope com hormônios a galinha
e os ovos lhe rotula quem a mata
de "light" e "dietéticos"! De errata
carecem os jornais em cada linha!

Expande o contrabando seu mercado,
e as urnas fajutadas no varejo
engrossam os partidos no atacado!

Nem tudo está perdido, alegre, vejo:
não há chulé sintético inventado
capaz de tornar frio o meu desejo!


SONETO REAL

As coisas, como são, ninguém aceita,
e todos tentam dar-lhes aparência
mais doce e palatável, providência
inócua, já que a sorte rola e deita.

Políticos transformam a desfeita
cruel dum desafeto em ocorrência
banal e superada, inda que pense-a
a sério quem a sofre e não confeita.

Num dia um trata ao outro de "ladrão",
"safado", "corno" e "bicha"; no seguinte
houve "mal-entendido" e "distorção".

O fato é que quem ouve é mau ouvinte:
se xingam-se é porque, na certa, são
piores, muito além do que se pinte!


SONETO DO DECORO PARLAMENTAR


– O ilustre senador é um sem-vergonha!
– O quê?! Vossa Excelência é que é safado!
E os dois parlamentares, no Senado,
disputam palavrão que descomponha.

Um grita que o colega usa maconha.
Responde este que aquele outro é viado.
Até que alguém aparte, em alto brado
anima-se a sessão que era enfadonha.

Inútil tentativa, a da bancada,
de a tempo separar o par briguento:
aos tapas, se engalfinham por um nada...

Imagem sem pudor do Parlamento,
são ambos mais sinceros que quem brada:
– Da pecha de larápio me inocento!




SONETO NÃO GOVERNAMENTAL


O que é, o que é? Responda antes que eu gongue!
Tem cara, ora de creche, ou de hospital,
às vezes até banco, e o capital
tem crédito que encurte, ora que alongue.


Nem clube de gamão, nem pingue-pongue,
nem mutirão, nem multinacional,
nem fundo de quintal, nem estatal!
Não adivinha? É simplesmente a ONG!


Mais extra-oficial é o combativo
estilo do Greenpeace ou dos anarcos,
que enfrentam as potências com motivo!


Meu caso é bem atípico: com parcos
recursos conto, e da visão me privo,
mas contra os baleeiros vão meus barcos!




SONETO BARRACO


Maldito! Fidaputa! Desgraçado!
Safado! Sem-vergonha! Salafrário!
Tratante! Sacripanta! Mercenário!
Xibungo! Bicha! Aidético! Viado!


Galinha! Vaca! Sífilis do gado!
Esposa de bundão! Filha de otário!
Sinônimo de "à toa" em dicionário!
Cadela! Égua! Vadia! Frango-assado!


Cadela é sua mãe! Bicha é você!
É a vó! Vá chupar pau! Vá dar xibiu!
Você que vá tomar! Você que dê!


Estou de saco cheio e cu vazio,
cagando em tudo! E sabem mais o quê?
Mandando tudo à puta que pariu!


SONETO COCHILADO (ou COXILADO)

Depois que fiquei cego, na lembrança
às vezes a grafia um branco dá:
não sei se escrevo "chícara de chá"
ou "xícara de xá" tem mais usança.

Um S ou C cedilha sempre dança
(ou "dansa"?)... É "farsa" ou "farça"? É "ca" ou "qua"
a sílaba em "catorze"? Não me vá
dizer que "transa" soa como "trança"!

Estou perdido! Sei que, por princípio,
cognatos são homógrafos, mas vejo
que "extenso" de "estender" é particípio!

Se X tem "extra", é justo que o traquejo
a "destra" como "dextra" estereotipe-o
e ao falo a "juxtaponha" por gracejo!


SONETO BATISMAL

No manual de estilo está disposto
que Pequim é "Beijim" e estouro é "boom".
Bandido é "cidadão", bunda é "bumbum".
Prostituta é "modelo", cara é "rosto".

Mas que mania estúpida! Que gosto
de achar que flatulência ou peido é "pum",
que "alcoólico" é o alcoólatra ou bebum,
como se trocar nome é trocar posto!

Pra mim, "beijim" é o beijo do mineiro,
"bumbum" é só bundinha de neném
e puta é puta mesmo, bem rasteiro!

A mídia quer ditar o que convém,
porém, no linguajar do brasileiro,
não vem com viadagem, que não tem!


SONETO TERMINAL

Se o velho e retardado agora for
"idoso" e "excepcional", é mais precisa
a forma que, hoje em dia, se eufemiza:
"terceira idade", "terceiro setor".

Se um cego é um "invidente", é de supor
que, já "deficiente", exige, à guisa
de adendo, um "visual", e que precisa
ainda do bordão de "portador".

De quê? "Necessidades", obviamente!
Não basta? Inda tem mais: "especiais"!
Que idéia esses babacas têm na mente?

Não é com eufemismos que se faz
justiça ao "aleijado"! O que ele sente
é a dor de ser da raça dos "mortais"!

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