Franklin Alves
Na vida cultural contemporânea, dominada pela comunicação visual, o olhar virou comércio. Informações superficiais que não aprofundam os processos cognitivos, imagens pré-fabricadas que não admitem lembranças nem atitudes de contemplação são os fundamentos da comunicação midiática – comunicação que atribui mais valor ao quantitativo do que ao qualitativo. Assim, o olhar que nela é dominante acaba transformando o homem num ser sem memória e sem imaginação.
No entanto, é somente a partir da relação entre a experiência do passado e a experiência do porvir que o homem se torna um indivíduo ativo e crítico. Por isso, é interessante observar como o olhar encenado na poesia hoje, por ser distinto do olhar imediatista, constitui um lugar de resistência.
Nesta cultura, temos a visão como o sentido que goza de privilégios e, simultaneamente, como alvo principal do apelo consumista. É o excesso de imagens, num sentido de registro próprio da identificação especular e não num sentido da imaginação, um dos fatores para que o homem contemporâneo seja desmemoriado.
Essas imagens e informações em excesso saturam a “fome de conhecer, incham sem nutrir, pois não há [uma] lenta mastigação e assimilação”, não há tempo para o trabalho de seleção e interpretação do que mais significa, do que seria memorável (Bosi, 1983, 45). Assim, a memória, e, sobretudo, o tempo para a mesma, são considerados categorias desnecessárias e desviantes.
Entretanto, não devemos pensar somente na dicotomia ter ou não memória, mas também no modo como esta foi absorvida pela lógica da atualidade. Há, hoje, uma entronização da memória enquanto produto, por exemplo, nos antiquários, na moda, na obsessiva tentativa de domesticar o passado através do vídeo, nos banco de dados eletrônicos dos computadores (com hard-disks cada vez mais acessíveis) e, principalmente, com os museus – contraponto da obsolescência na sociedade de consumo.
Estes sofreram visíveis mudanças e, de lugar conservador elitista, passaram também a lugar da cultura de massa, lugar de uma mise-en-scène espetacular, revelando a intimidade entre o olhar, a memória e o capital.
Visitar um museu não é mais se apropriar meticulosamente do conhecimento cultural, e sim participar de um espetáculo de grande sucesso, consumir. Os objetos expostos, devido à rapidez dos espectadores que visitam o museu, tornam-se invisíveis e a recordação daquilo que se foi ver é, agora, souvenir: camisetas, posters, reproduções, catálogos, enfim produtos (Huyssen, 1997, 222-55).
Pensar na poesia como lugar de resistência é pensar num modo de olhar distinto desse olhar imediatista da contemporaneidade. O olhar encenado, repensado e reformulado poeticamente é o olhar contemplativo, imaginativo, que exige esforço, tempo, e ainda, possui uma amplitude de vibrações que a informação e a imagem pré-fabricada não encerram.
Portanto, pensar a poesia como lugar de resistência é pensá-la como anacrônica: algo que estaria fora de harmonia com o tempo acelerado de hoje, que não estimula a leitura ruminante e solitária exigida pela poesia. Uma experiência out of joint: um tanto deslocada, mas que também incomoda, se lembrarmos do sentido coloquial desta expressão inglesa.
Desde a adolescência, o poeta paulista Glauco Mattoso, bloqueado pela visão deficiente, em decorrência do glaucoma, não pôde exercer atividades que exigiam maior desenvoltura física e acabou refugiando-se na leitura. A partir do seu primeiro livro, o Jornal Dobrabil, ele utiliza o pseudônimo Glauco Mattoso: glaucomatoso é o nome dado ao portador de glaucoma, doença que o levou à cegueira completa em 1995.
Em 1997, foi convidado pelo crítico Jorge Schwartz para integrar o corpo de tradutores da obra completa de Jorge Luis Borges, também cego na meia idade. Em parceria com Schwartz, traduz o livro de estréia do escritor argentino, Fervor de Buenos Aires. A publicação valeu aos tradutores o prêmio Jabuti de 1999 e, com o dinheiro da premiação, Mattoso compra um computador adaptado para cegos.
É através deste que ele readquire o hábito de escrever, rompendo nesta mesma data um silêncio poético de quase dez anos, já que seu último livro, Limeiriques e outros debiques glauquianos, datava de 1989. Num espaço de oito meses, daquele mesmo ano, ele lançou três livros com mais de trezentos sonetos, contrariando o esquema de edição de poesia no Brasil e as predições sobre a incompatibilidade entre poesia e sociedade midiática.
A cegueira poderia, por um lado, ser percebida como um fator que levaria ao abandono da escrita e do fazer poético. O próprio Mattoso admite no expressivo soneto Paradoxal, de 1999, que: “Ser cego e sonetar contrários são, / pois a poesia é oráculo e profeta; / cegueira, por seu turno, é maldição” (Mattoso, 1999, 117).
No entanto, se às vezes a cegueira é tida como prisão, como incompatível ao sonetar, é através dela que este fazer se realiza: aqui a cegueira é força basilar para entender toda sua produção poética. Seja na adolescência, com a visão deficiente orientando-o para a leitura, seja na escolha do pseudônimo, brincando com a doença que mais tarde o cegaria, e na tradução do também cego Borges, reorientando-o para a literatura, percebemos sua importância.
Sem enxergar, Mattoso se volta para a memória e para os processos imaginativos. O olhar, metaforicamente um novo olhar desvinculado da visão, vai do agora em direção ao passado, transformando experiências vividas quando enxergava em sonetos – experiências quase sempre configuradas pela leitura.
Sem enxergar, já que a “cegueira é como a cela / perpétua, sem janela, vídeo ou vela, / sem luz no fim do túnel, pena extrema” (Mattoso, 1999, 122) não há para o poeta outra opção, além de contar com o repertório memorizado.
Não sendo possível mais ver o texto escrito e revisá-lo, atitude fundamental para quem escreve, Mattoso guarda as palavras e versos na memória e trabalha-os como “rascunhos mentais e orais”, processo mnemônico emprestado dos métodos borgianos e ainda, aproveita-se dos esquemas fixos de métrica e rima do soneto.
Assim a memória possibilitará ao poeta dialogar com a tradição, contemplar o passado e “sonetar no escuro”. A palavra contemplar além de significar “fixar o olhar em (alguém, algo ou si mesmo), com encantamento, com admiração” e “observar atentamente; analisar” significa também “fazer suposições sobre; imaginar”. Seria desta maneira que um possível antagonismo entre o olhar poético e a cegueira é desfeito, e o poeta pode “ser cego e versejar no escuro”.
Pensar na memória como força criadora, memória-trabalho nas palavras de Ecléa Bosi (Bosi, 1983), é relatizivar dois aspectos que, para o senso-comum, são sinônimos desta função: a memória como hábito e a conservação total do passado, aspectos esses relacionados, respectivamente, com os atos de repetição e acumulação.
O primeiro aspecto é o da conservação total do passado, onde a acumulação é a regra, essa transforma a memória de maneira negativa e não-dialética, num conjunto volumoso de coisas, onde o mais importante é não deixar que nada se perca. Entretanto, tal configuração da memória “só seria possível no caso (afinal, impossível) em que” alguém pudesse manter intacto o sistema de representações do seu passado (Bosi, 1983, 17).
Aquele que possuísse e conseguisse isso, não seria capaz de pensar, de contemplar, pois se ocuparia, de maneira extraordinária, em recordar tudo o que ocorreu. Como no conto, de Jorge Luis Borges, Funes, o memorioso, onde o personagem consegue reconstituir na totalidade o que fez no dia, item por item, em descrições minuciosas e precisas (Borges, 2001, 539, v. I).
A memória como hábito, outro aspecto que deveria ser relativizado, é aquela na qual “o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas”. Esta seria “um exercício que, retomado até a fixação, transforma-se em um hábito, em um serviço para a vida cotidiana”, deixando assim pouco espaço para a criação (Bosi, 1983, 11), nos fechando o acesso à evocação, inibindo as imagens de outro tempo e, assim, nos privando do ato de contemplar.
É a partir desta perspectiva que podemos entender a oposição entre vida ativa e vida contemplativa e das relações do presente com o tempo gasto, ou não, para recordar. Assim, é possível contrapor a memória dos que têm fortes vínculos com a vida ativa à dos que estão afastados dela.
Absorvidos pelos trabalhos do presente, não nos preocupamos com o decorrido. Quando recordamos, o passado aparece como sonho, lugar isolado do atual. Nesse caso “vida prática é vida prática, e memória é fuga, arte lazer”. Já ao nos afastarmos, de maneira crítica, da vida ativa, quando recordamos nos ocupamos “consciente e atentamente do próprio passado”.
A atenção e a consciência dispensadas são trabalho de refazer e não evasão, sonho (Bosi, 1983, 23). É pela relação de oposição entre vida ativa e memória, que podemos entender esta como um fenômeno criador.
O trabalho criativo com a memória pode ser compreendido também através da imagem do torso criada por Walter Benjamin. Ele acredita que aquilo que alguém viveu é, no melhor dos casos, comparável à bela figura à qual, em transportes, foram quebrados todos os membros, e que agora nada mais oferece a não ser o bloco precioso a partir do qual ele tem de esculpir a imagem de seu futuro (Benjamin, 1987, 41-2).
O que ficou, o memorável, é ensejo do trabalho de (re)construção. Quebrados foram todos os membros na viagem do tempo, pois a memória é “um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (Bosi, 1983, 3). O que ficou é o bloco precioso que servirá de sustentáculo para o artesão esculpir, contemplar.
Trabalho que, mesmo repetido à exaustão, nunca é igual, mas a cada dia distinto, pois a reiteração, neste caso, leva à experiência, ao apuro do desempenho. Diferente da repetição do trabalhador de uma fábrica, que levado à exaustão pelo mecanicismo dos seus atos, não guarda experiências e não pensa sobre elas.
Pensando nas metáforas do artesão e do torso é que podemos tentar compreender como a memória manifesta-se como trabalho criativo de repetição na poesia mattosiana. Estar cego, ou preso, numa de suas metáforas mais usadas no que concerne à cegueira, é, paradoxalmente, a condição de sua liberdade: cabe ao poeta passar em revista tudo o que viu, leu e viveu quando ainda tinha o sentido da visão, aventurar-se em (re)construir contemplativamente seu passado. Mattoso lembra porque a situação atual – afastado da vida ativa por ser cego – o faz lembrar.
Tal afastamento e o tempo livre decorrente deste, aproximam seu trabalho ao do artesão, ao da memória criadora. Memória-trabalho que será visível, em seus sonetos, sob a forma de reiteração, momento de reconstrução de cenas, situações, leituras e ainda pela presença de verbos e signos que remetem a esforço, como no respectivo trecho do Latino, soneto do livro Centopéia, primeiro da trilogia : “Pes, pedis” é um vocábulo que gravo / na pedra da memória, pra ser lido, / relido, repetido até lambido” (Mattoso, 1999, 40).
Neste soneto, podemos perceber a relação de Mattoso com a tradição compreendida “enquanto memória e leitura, tradução e transformação” (Miranda, 1997, 22), relação que confirma a importância da cegueira como força condutora à leitura e à literatura. O que foi lido, sua memória intertextual, conjunto de causas e motivos, possibilitou-lhe entrar em contato com um grande elenco de obras que puderam ser reescritas, traduzidas e transformadas em suas.
A leitura do vocábulo latino pes/pedis pode ser interpretada, neste soneto, como exemplo do processo da memória-trabalho e de sua repetição criativa: “lembrar não é reviver, mas refazer, repensar” (Bosi, 1983, 17). O que é lido numa primeira vez, relido, repetido, depois de algum tempo, pode até ser lambido, ou seja, ainda tem, após as várias leituras, gosto. Esse gosto pode ser comparado à releitura que se faz hoje de um certo livro já lido na remota juventude.
Maurice Halbwachs toma esta metáfora da releitura como exemplo da reconstrução do passado e da impossibilidade da ressurreição total do mesmo. O que lembra, antes de abrir tal livro, seria capaz de recordar poucas coisas: o tema, os personagens principais, alguma figura estampada, etc. Ao encetar a (re)leitura, esperamos que a memória nos permita reviver experiências passadas, que voltem com o mesmo vigor de outrora.
Porém, agora, acontece que vemos sob um novo ângulo as coisas (tanto personagens, paisagens, idéias e valores) anteriormente vistas, iluminados de maneira distinta da primeira vez que lemos: “a distribuição nova das sombras e da luz muda a tal ponto os valores das partes que, embora reconhecendo-as, não podemos dizer que elas tenham permanecido o que eram antes” (Halbwachs apud Bosi, 1983, 20). Sob tais aspectos, a experiência da segunda leitura é alterada criticamente, e tem, agora, um outro gosto. A releitura do livro é agora outra, pois somos também outro.
A consciência da mudança, no trabalho de repetição criativa, pode ser observada no soneto Ao fim e ao cabo, que encerra o segundo livro da trilogia, Paulisséia Ilhada – livro que já pelo título, confirma a sensação de isolamento provocada pela cegueira em contraste ao desvario da paulicéia de Mário de Andrade. Aí, Mattoso faz uma analogia da forma do soneto à forma do quarteirão:
Ao cabo de alguns anos bengalando
decoro cada pedra do caminho,
o ponto onde alguns galhos com espinho
esbarram-me na cara quando ando.
Ao cabo de alguns meses sonetando,
compor passa a processo comezinho,
tal como encher o copo com mais vinho
sabendo, em plenas trevas, quanto e quando.
[...]
Sendo o sonetar um processo comum, usual, devido aos seus quatorze versos e esquemas fixos de métrica e rima, que se repete, comezinho no adjetivo usado, contudo não é nunca igual. Podemos aqui lembrar dos mais de trezentos sonetos, escritos de maneira quase serial, que formaram a sua trilogia. A mudança, o processo criativo, é explicito no último terceto deste: “Caminhos nunca mudam para mim. / Só muda a caminhada, como vão / mudando meus sonetos. Chego ao fim” (Mattoso, 1999, 222).
Ainda que percorra o mesmo caminho, a caminhada (o que ele percebe, pensa, sente) é distinta, pois da mesma maneira que a releitura de um livro é sempre diferente, não se percorre duas vezes e, de maneira idêntica, o mesmo caminho.
Ao poeta-artesão, retornando à metáfora benjaminiana, a memória servirá como liga para a reconstrução (esculpir a imagem do futuro) dos cacos do passado; para demonstrar-se e sentir-se vivo; ou, para criar a natureza humana, por um processo permanente de reavivamento e rejuvenescimento (Bosi, 1983, 32). Concentrar o passado no presente é conhecer a mudança, a razão do agora; é possível, ainda, inventar-se, descobrir-se (em latim inventar, inventio, - onis, equivale a descobrir).
O paradigma da visão na filosofia ocidental está intrinsecamente ligado ao conhecimento, à verdade, à iluminação. Inúmeras são as atribuições do ver como sinônimo de conhecimento e da verdade na tradição judaico-cristã e na história da filosofia (Chauí, 1991, 31-63). Esta, desde Aristóteles, confere à visão um lugar privilegiado no saber: ela é “de todos nossos sentidos” aquela “que nos faz adquirir mais conhecimento” e a que “nos faz descobrir mais diferenças”, escreveu o autor de Metafísica.
Também consciente da importância da visão, Santo Agostinho condenará tal sentido nas suas Confissões: “Resisto às seduções dos olhos para que os pés, com que começo a andar no vosso caminho, não me fiquem presos” (Agostinho, 1999, 295). Condenação que, por vias inversas, entronizará a visão. Os olhos, neste santo, devem ser domesticados, sem curiosidade alguma, para que o caminho até Deus seja feito sem desvios de percurso, sem a percepção do pecado.
Poderíamos perguntar por que há uma entronização do olhar e de suas relações com o conhecer? Por que nossa convicção seria obtida vantajosamente pelo ver? Por que nossa exagerada fé perceptiva? Marilena Chauí, no artigo Janelas da alma, espelho do mundo, acredita que se “o olhar usurpa os demais sentidos fazendo-se cânone de todas as percepções é porque, como escreveu Merleau-Pounty, ver é ter à distância”, é ultrapassar a finitude do corpo sem a necessidade de mediadores, é ter sem se sujar.
Através da memória, a imaginação toma posse das coisas sem o olhar. Para imaginar não é necessário, no caso mattosiano, a mediação da visão. A reminiscência sugerida pela memória é transformada em trabalho poético, este demanda esforço e, por conseguinte tempo: a cegueira, senso-comum da perda, orientou-o para ganhar. Ganhar: entrar na posse (de algo) por oferecimento de outrem.
Borges, no ensaio A cegueira, nos lembra que “(...) quando algo termina, devemos pensar que algo começa”. Porém o próprio escritor sabe de sua difícil realização, pois “sabemos o que perdemos, não o que ganhamos. Temos uma imagem muito precisa (...) daquilo que perdemos, uma imagem às vezes dilacerante (...), mas ignoramos o que pode substituí-lo, ou sucedê-lo” (Borges, 2001, 315, v. III).
Perdendo o visível, Glauco Mattoso cria/ganha, com ajuda da memória e da imaginação, o que vai suceder o mundo das aparências: a poesia, e nos ensina que existem outros modos de ver. Fez-se o elogio.
(Fonte: revista Zunai, 2002)
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