Leonardo Froés (*)
Quanto maior a pompa, maior será o vazio, ou a imunda fealdade, que a pompa tenta encobrir. No desempenho pessoal, a voz do povo o percebeu de há muito, quando cunhou esta saborosa expressão hoje em desuso: "Por fora bela viola, por dentro pão bolorento". Mas é na esfera do poder que o conflito, decorrente da ausência de harmonia entre a parte de dentro e a casca, se torna mais escandaloso e nocivo, porque os brilhos ostentosos de que o poder se reveste têm uma função programada: distrair para iludir ou, o que é ainda mais criminoso, impor mentiras, perversidades, meias-tintas — fazer passar a falta de sentido, sob uma aparência de luxo, por uma isca prazenteira para o sono das massas.
Ivan Junqueira, num de seus mais fortes poemas, incluído no livro A sagração dos ossos e intitulado justamente "O poder", fez uma radiografia completa desse monstro tentacular e soberbo, que assim começa:
Eis o poder: seus palácios
hospedam reis e vassalos,
messalinas, pajens glabros,
eunucos, aias, lacaios,
e até artistas e ratos.
Uma só migalha basta
à sordícia que se alastra,
e pronto surge uma talha
onde o cenário é lavado
para o próximo espetáculo.
O poder é assim: devasta,
corrompe, avilta, enxovalha,
do reles pároco ao papa,
e não há um só que escape
ao seu melífluo contágio.
Em Poesília (Brasília: LGE Editora, 2005), livro no qual reúne todos os seus poemas motivados pela capital federal, e escritos, como que numa só pregação, entre 1977 e 2001, Nicolas Behr recorre ao puro sarcasmo, ou à avacalhação pura e simples, para desmascarar o poder entronizado na corte, expondo com concisão, eficiência e coragem, o ridículo atroz que o acompanha por hipertrofia das pompas. Radicado em Brasília desde 1974, quando ainda criança, o poeta nascido em Cuiabá, em 1958, tem vivido numa singular intimidade com a geometria das superquadras e eixos, e é essa vivência tão antiga e sentida que o autoriza a zombar das operetas grotescas que a burocracia oficial monta e remonta sem trégua, como se nada de importante estivesse acontecendo no mundo:
o ministro
e seus
baba-ovos
apreciam a
paisagem
poderosa
que macula
o horizonte
"Eu engoli Brasília", diz Nicolas, cujos poemas vêm sempre impressos em tipos de corpo avantajado. Assim, é como se, com poucas letras, com uma rapidez gestual no que enunciam, esses poemas assumissem uma entonação de cartazes, para surpreender o olhar desprevenido, ou fossem tão contundentes quanto uma pichação feita às pressas para escapar da polícia. É sempre breve e necessário, o que as inscrições em corpo grande proclamam, quando afirmam, por exemplo, que
os três
poderes
são
um só:
o deles
Engolida Brasília, a cidade cujo "símbolo é um carimbo", ou melhor, "um rato segurando um carimbo", o poeta é capaz de descobrir poesia por baixo dos cenários de vacuidade da corte — uma poesia que "se esconde na entrecasca" — para então nos comunicar com alegria e indisfarçada malícia:
em paz com a cidade,
meu fusca vai
por esses eixos,
balões e quadras,
burocraticamente
carimbando o asfalto
e enviando ofícios de
estima e consideração
ao sr. diretor.
Os pequenos prazeres das pessoas normais — como "comer pastel na rodoviária" ou "catar gabirobas perto da catedral" — são cultivados como uma espécie de vacina para imunizar o poeta contra a doença do poder que ao seu redor contagia. Cansado de tanta embromação, da Brasília que "é uma aula de geometria" e dele já teve "o pedaço que queria", Nicolas Behr "planta bananeiras na praça do buriti" e acaba por inventar outra cidade que "foi construída com a língua",
2.354 línguas
polindo
as escadarias
do palácio
Essa é a cidade do sonho, na qual sua voz se refugia, minoritária, e que amorosamente ele chama de Braxília. Aqui não há monumentos, não há palácios nem cascatas, não há subserviências safadas nem interesses escusos. Há a poesia que vagueia nos olhos dos guardadores de carros e meninos de rua, como em qualquer lugar do mundo, e há as árvores tortas do cerrado, tão incertas e tortas como a vida, que são beleza e marca registrada dessa "não-capital" do "não-poder".
Inevitavelmente se chega a uma conclusão muito simples, diante da poesia grafitada desse autor que antes de tudo é um demolidor de bobagens. Quase nada se resolve trocando a guarda ou as forças que se revezam no mando, se a estrutura do poder anacrônico continuar sendo a mesma. Por outro lado, percebe-se que o verdadeiro poder, se é que isso também se chama assim, é o exercido para dentro, onde nenhuma mentira prevalece, e não para fora, onde a platéia freqüentemente se engana.
(*) Leonardo Fróes, poeta conhecido por suas atividades na imprensa e como ensaísta e tradutor dos mais respeitados, já transpôs, para o português, livros de William Faulkner, George Eliot, Malcolm Lowry e Lawrence Ferlinghetti, entre outros. Montanhista e naturalista amador, traduziu também livros de especialistas em ciências da natureza, como o ornitólogo Helmut Sick e o mirmecólogo Edward O. Wilson. Algumas Publicações: 1) Poesia: Chinês com Sono e Clones do Inglês (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2005); Vertigens (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998) e Argumentos invisíveis (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1995) — este, ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia, em 1996. 2) Tradução: Contos Completos, de Virginia Woolf (São Paulo, Editora Cosac Naify, 2005); Esquetes de Nova Orleans, de William Faulkner (Rio de Janeiro: José Olympio, 2002); O triunfo da vida, de Shelley (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001) — tradução e ensaio; Trilogia da paixão, de Goethe (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999) — tradução e ensaio; Panfletos Satíricos, de Jonathan Swift (Editora Topbooks 1999); Middlemarch, de George Eliot (Rio de Janeiro: Editora Record, 1998) — trabalho que lhe rendeu o Prêmio Paulo Rónai de Tradução, em 1998. Também é dele a compilação de histórias e lendas advindas da tradição oral do Oriente, Contos orientais (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003) e a biografia do poeta Luiz Nicol Fagundes Varella, Um outro. Varella (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1990).
(Fonte: www.germinaliteratura.com.br, março de 2006)
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