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segunda-feira, fevereiro 08, 2010

O cipó da alma amazônica


Mestre Irineu, fundador da religião ayhuasqueira denominda Santo Daime

Moisés Diniz (*)

No final de janeiro, o governo brasileiro oficializou as regras para o uso religioso do ayahuasca, chá também conhecido como santo-daime, entre outras denominações, e utilizado principalmente em cerimônias religiosas no Norte do País.

A resolução, publicada no Diário Oficial da União, veta o comércio e propagandas do composto, que só poderá ser cultivado e transportado para fins religiosos e não lucrativos.

Além disso, a norma coíbe o uso do chá com outras drogas e em eventos turísticos. Também oficializa um cadastramento facultativo das entidades que o utilizam.

O texto recomenda ainda que as entidades façam uma entrevista com aqueles que forem ingerir o chá pela primeira vez e evitem seu uso por pessoas com transtornos mentais e por usuários de outras drogas.

O texto referenda as conclusões de um grupo de trabalho multidisciplinar instituído em 2004 pelo governo para estudar o uso religioso do chá.

Não havia impedimento para a aplicação do composto em cerimônias religiosas, mas faltavam orientações para evitar o uso indevido, o que o grupo publicou em 2006.

Em 1985, a bebida chegou a ser proibida no País, mas foi liberada dois anos depois, quando estudos demonstraram a importância de seu uso religioso.

No início dos anos 90 houve nova tentativa de proibir o chá, também refutada.

Em 2002, mais uma vez houve denúncias de mau uso do chá, o que gerou os estudos mais recentes.

Ayahuasca é um termo de origem quéchua, que significa “vinho das almas” ou “cipó dos mortos”, e designa o chá feito pelo cozimento de duas plantas originárias da floresta amazônica: o cipó jagube ou mariri (Banisteriopsis Caapi) e as folhas da rainha ou chacrona (Psychotria Viridis).



A decocção do cipó mariri e das folhas da chacrona produzem a ayhuasca

A bebida serviu como base para o estabelecimento de diferentes tradições espirituais por comunidades indígenas nos países amazônicos desde tempos imemoriais.

Os povos indígenas utilizaram a ayahuasca como um elo imaterial com o divino que estava entre as árvores, os lagos silenciosos, os igarapés. É que, para eles, a natureza possuía alma e vontade própria.

Povos indígenas do Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia e Equador, há quatro mil anos, utilizam a ayahuasca em seus rituais sagrados, como o padre usa o vinho sacramental na Eucaristia e os indígenas norte-americanos bebem o peyote nas cerimônias sincréticas da Igreja Nativa Americana.


O uso ritualístico da ayahuasca é bem mais antigo que o consumo do saquê ou Ki, bebida sagrada do Xintoísmo, usada a partir de 300 a.C, feito do arroz e fermentado pela saliva feminina, sendo cuspida pelas jovens virgens em tachos.

A mesma prática é realizada pelas índias da Amazônia, quando produzem a caiçuma da mandioca, bebida ritualística indígena fundamental na dança do mariri e no “contato” com os deuses da floresta assombrosa.

As origens do uso da ayahuasca nos países amazônicos remontam à Pré-história. Há evidências arqueológicas através de potes e desenhos que nos levam a afirmar que o uso da ayahuasca ocorra desde 2.000a.C.

Somente os “intelectuais de água salgada”, que lêem um tomo filosófico à tarde, bebem whisky à noite e pegam sol pela manhã, para levantar argumentações contra o uso espiritual da ayahuasca. Não conhecem a força e a beleza da espiritualidade amazônica e indígena.



A utilização da ayahuasca pelo homem branco é uma acolhida da espiritualidade das florestas tropicais, um banho de rio milenar e sentimental do tempo em que os povos amazônicos viviam em fraternidade econômica e religiosa.

Os ataques ao uso ritualístico- religioso da ayahuasca, como bebida sacramental, nos autoriza a afirmar que podem estar nascendo interesses menos inocentes e mais poderosos do que uma simples preocupação acadêmica com a utilização de substâncias psicoativas.

Nunca é bom esquecer que a ayahuasca é uma substância natural exclusiva das florestas tropicais dos países amazônicos e pode alimentar interesses econômicos relacionados a patentes e elevar a cobiça sobre a nossa inestimável biodiversidade.


A ayahuasca é uma combinação química simples e ao mesmo tempo complexa, que envolve um cipó e um arbusto endêmicos do imenso continente amazônico.

Simples porque a sua primitiva química material da floresta é realizada por homens comuns, do pajé ao ayahuasqueiro dos templos amazônicos.

Complexa porque envolve a elevação de indicadores psico-sociais de qualidade de vida e ajuda a atingir estados ampliados de consciência dos usuários.

Isso por si só já alça a ayahuasca a um patamar superior no plano do controle científico dessas duas ervas milenares.

Assim, a ayahuasca ganha contornos políticos por envolver recursos florísticos de inestimável valor psico-social e espiritual. Os seus usuários consideram o “vinho das almas” como um instrumento físico-espiritual que favorece a limpeza interior, a introspecção, o autoconhecimento e a meditação.

Utilizar ayahuasca aqui na Amazônia é beber do próprio poço de nossa ancestralidade e da magia que representa a nossa milenar resistência.

Aqui na floresta, protegidos pelos entes fortes de nossa religião animista e natural, nossos ancestrais não precisaram “miscigenar” sua fé.

Não foi necessário fazer como os negros escravos que deram nomes de santos católicos aos seus deuses africanos.

Nossos ancestrais indígenas não precisaram batizar Iemanjá de Nossa Senhora ou Oxossi de São Sebastião para se protegerem da fé unilateral do dono da terra.

É que entre nós a terra era de todos e o único dono era o senhor da chuva, do orvalho e do sol. A beleza coletiva dos recursos naturais era compartilhada por toda a aldeia, do curumim ao sábio ancião.

A ayahuasca era a essência espiritual dessa convivência material fraterna e universal entre as árvores carinhosas, os riachos irmãos, os pássaros cantores, os peixes, as larvas, os insetos, as flores.

A ayahuasca ancestral era o elo entre a terra e o espírito. Se não fosse uma erva espiritual e mágica, trazida pelas mãos milenares dos povos indígenas amazônicos, ela não teria resistido ao tempo.

Por isso é natural que a ayahuasca atraia cada vez mais o homem branco, esmagado pelo destrutivo modo de vida urbano, elitista, ocidental, capitalista.

A ayahuasca não é um chá que se consome como se bebe um líquido ácido qualquer. O seu uso é espiritual e envolve aqueles que o utilizam na mais límpida tradição de amar o próximo e reencontrar os valores que perdemos na caminhada do planeta que se dividiu em castas, cores, fronteiras e etnias.


Não entrarei no debate acadêmico sobre o uso de substâncias psicoativas por parte das religiões milenares, das eras pré-colombianas aos templos dos tempos atuais.

Não tenho competência para debater os pontos de vista da medicina, da psicologia ou da etnofarmacologia. Ficarei apenas com os resultados do uso milenar da ayahuasca pelos povos indígenas.

A milenar história amazônica não registra casos de morte ou de seqüelas à saúde dos povos indígena por terem utilizado a ayahuasca. Nenhum índio deu entrada no hospital dos brancos ou foi curado pelos pajés.

Aliás, as mulheres indígenas, “apesar” de beberem a ayahuasca, não registram nenhum caso de câncer de mama.

A ayahuasca não é “taliban”, seus usuários não se constituem em nenhuma seita, eles não são fanáticos, não há um único caso de morte ou de castigo físico que tenha sido resultado do seu consumo ritualístico.

O uso ritualístico da ayahuasca não provoca transes místicos ou de possessão. Ela não age no organismo como a antiga bebida hindu, denominada soma, que se divinizou por afastar o sofrimento, embriagando e elevando as forças vitais.

Depois de 4.000 anos de uso sagrado e ritualístico da ayahuasca os estudiosos da civilização ocidental erguem argumentos anêmicos e endêmicos de uma sociedade que tem medo do contato aberto do homem com a natureza.

É que eles têm medo da relação amorosa entre o indivíduo e a natureza com os seus elementos poderosos e coletivos.

Os sábios e avançados incas utilizaram a ayahuasca para consolidar-se como povo, como nação e para ajudar no florescimento da cultura, da matemática, da agricultura e da astronomia.

Não é qualquer planta ou cipó que faz um povo, uma história milenar, uma religião.

Só não puderam utilizar a sagrada ayahuasca para produzir metálicos fuzis, pois se assim fosse, não teriam sido dizimados pelos invasores espanhóis. Pizarro não consumiu o “cipó dos mortos”, por isso dizimou tantos guerreiros, mulheres índias, donzelas, pajés, curumins.


A ayahuasca resistiu, venceu os invasores e as suas crenças unilaterais, atravessou os séculos, os milênios, unificou as milenares gerações indígenas e suavizou a dor “civilizatória” das eras pós-colombianas.

Quando o Acre, sob a iniciativa da deputada Perpétua Almeida, propôs que o uso ritualístico da ayahuasca fosse considerado patrimônio cultural imaterial é porque ninguém mata uma alma, ninguém prende um sentimento, ninguém aniquila uma vontade, ninguém encarcera uma opinião, ninguém enclausura uma fé.

A ayahuasca é diferente de outras religiões, que nascem de visões, contatos divinos, que têm origem na cosmologia do céu para a terra.

A ayahuasca é a religião da terra para o céu, da matéria eterna e natural para o infinito do sonho humano, a religião natural.

Uma verdadeira e única religião do Brasil, aliás, uma colossal e genuína religião amazônica!

Combatê-la é fazer parte da bizarra síndrome de colonizador!

(*) Moisés Diniz é deputado estadual (PCdoB-AC)

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