Pesquisar este blog

domingo, fevereiro 21, 2010

Em busca dessa tal felicidade!


Dona Celeste e seo Simão, onde tudo começou

Meu brother, o Marvelous Simas, telefona e avisa: estou passando aí na tua casa pra te pegar e a gente ir almoçar lá no papai.

Com a firma trincada, me limito a ganir: me traz uma carteira de Charm, que não fumo desde ontem. Ele me traz duas. Deve ser pra isso que servem os caçulas.

O velho, aos 86 anos, ainda consegue fazer uma festa quando nos vê.

A atual esposa dele, a Dulce, não deixa seu doce nome em vão: nos obriga a comer pratarraz de camarões à baiana, guisado de paca, porco do mato à moda tropical e uns empadões de nhambu que me tiraram do sério.

Com uma escopeta de cano serrado, a Dulce nos obriga a levar uma dezena de laranjas, melancias, tangerinas, espigas de milho, frangos de corte, ovos caipiras, feijão de corda, tomates, pimentões, gerimuns cabocos e quiabos de meio metro, que eu sequer supunha que existissem.

A gente sai de lá e vai pro Bar do Ferrinho, lá no campo do Penãrol, que frequento há pelo menos trinta anos, pensando em como se desfazer daquela carga agro-pastoril.

Vamos começar a nos embriagar. Ligo pro meu primo Gigio e pro velho craque do Peladão, o Aureo Petita.

Sim, vamos começar a procurar essa tal de felicidade.

E tudo isso por conta do Simas.

A grande furada de você ter um irmão caçula é que, na pior das hipóteses, ele vai te superar. Sempre.

Lembro como se fosse hoje. Minha mãe estava com um barrigão de duas toneladas quando, de repente, ela se virou para o papai, que estava sentado na mesa comigo, esperando pelo almoço, e detonou:

- Simão, me acode que acho que vou ter um troço....

Papai amparou a mamãe, já quase desmaiando, e saiu alucinado de casa com ela nos braços. Uma seis horas depois, os dois estavam de volta pra casa. O “troço” se chamava Simas e era um alemãozinho de respeito.


Todo mundo que entrava em casa pra ver o alemão tinha um prazer quase maligno em me humilhar:

– Êi, Simaozinho, você ficou no canto...

Com cinco anos de idade, eu não tinha noção do que era ficar no “canto”.

Mas intuía secretamente que era alguma coisa semelhante a ficar no canto da parede da sala de aula, ajoelhado sobre grãos de milho e com um chapéu em forma de cone onde se destacava a palavra “burro”.

Eu já presenciara alguns colegas das turmas mais avançadas sendo humilhados daquele jeito e havia ficado assustado.

De repente, eu estava na mesma situação.


O culpado pelo meu mundo ter virado de ponta-cabeça era aquele alemãozinho de merda.

Fiquei com ódio dele. Pra tentar matá-lo ainda no berço, seria conta de multiplicar.

Minhas quatro irmãs assumiram a tarefa de protegê-lo, o que não chega a ser original. Eram as lobas de Roma contra o cafajeste Enéas, último varão de Tróia.

A guerra silenciosa rolou até o dia em que a gente se mudou para uma nova casa na Cachoeirinha, em 1966, e a mamãe cantou as regras do jogo:

– Vocês dois vão dormir juntos nesse quarto. Se eu pelo menos imaginar que você faz malinação com o seu irmão mais novo, eu vou te matar pessoalmente...

E a dona Celeste desferiu aquelas palavras cabalísticas me fitando nos olhos.

O Simas tinha cinco anos, eu tinha dez. Melhor esperar pra ver o que ia acontecer.

O safado me conquistou porque era doce feito bastão de alfenim.

Eu era louco para ter um brinquedo chamado “Forte Apache”. Como não podia ter, comprava as peças avulsas na Lobrás e, com elas, contava histórias fantásticas pro Simas.

Por exemplo, comprei o cabo Rusty e o cão Rin-tin-tin. Explicava pra ele:

– Você, pra mim, é o cabo Rusty. Eu sou o general Custer. O cabo Rusty tem uma corneta. Toda vez que ele estiver em perigo, basta tocar a corneta. Ou vem o cão ou vem eu te salvar. O importante é tocar a corneta!

– Mas eu não sei tocar corneta! – explicava ele, ingenuamente.

– Porra, bicho, faz um assobio em código de forma que só eu e o Rin-tin-tin escute. Qualquer assobio. Não pode ser muito alto, senão os Sioux escutam e vai ser uma merda! Eles vão nos massacrar...

Ele treinava seus trinados pra só o general Custer ouvir. Eu aprovava e a gente ia levando.

Aí eu comprava um novo “boneco”, o índio Nuvem Ligeira ou o cacique Touro Sentado, e colocava juntos com os outros dois.

O Simas ficava assustado.

– Não esquenta não, bicho, que ele agora é um índio renegado! – eu explicava. “Ninguém mais quer ele na tribo e ele também não quer fazer parte do time dos brancos. Ele vai estar aqui pro que der e vier! Vamos detonar os inimigos! É o general Custer que está na parada!”

Aí, ele ria, com seu riso alvar de um matador em potencial.

Com uns dois anos, a gente já tinha tantos índios, soldados e cowboys que daria para fazer uma centena de guerras particulares com enredos diferentes. A gente só não tinha a porra do “Forte Apache”. Aquilo era uma infâmia.

Com o primeiro salário que ganhei na Sharp, eu comprei o “Forte Apache”, a cidade chamada “Virginia City” (incluindo o Jesse James saindo do banco com um saco de grana na mão e uma pistola na outra) e a “Fazenda Bonanza”, mas a gente já estava muito velho pra curtir aquelas porras.

Uma pena. Acho que o Simas jogou aquilo tudo no lixo. Ou deu pra alguém mais necessitado (ele sempre foi meio messiânico, gostava de operar milagres).


Quando o Simas completou dez anos, comecei a ensiná-lo a jogar celotex. Dois anos depois, o sacana já conseguia me derrotar. Um ano depois, estava praticamente imbatível. Era uma merda eu perder diariamente pra ele, mas, tudo bem.

Tentei ensiná-lo a fazer times de caroço de tucumã pra me enfrentar. Ele nunca gostou da idéia.

Também com dez anos, eu o ensinei a andar de bicicleta sem precisar colocar as mãos no guidão – as pernas pressionando a roda dianteira faziam a presepada.

Dois anos depois, o filho da puta já estava pilotando motocicletas sessentinha, coisa que eu só havia começado a fazer uns dois meses antes. Quem aquele alemão pensava que era?...

Com quinze anos, eu o ensinei a jogar xadrez. Um ano depois, o sacana já me humilhava com suas saídas esdrúxulas (peão na segunda casa da torre) e seus gambitos indefensáveis – porque ele estudava xadrez e eu, não.

Resolvi desafiá-lo no único campo em que eu ainda tinha controle absoluto: na caçada de lebres.

Em junho de 1982, telefonei pra ele. A gente ia fazer uma festa na nossa nova casa (minha, do Engels e do Jaques), localizada no conjunto Dom Pedro II, no sábado, e se ele quisesse participar seria bem-vindo. A festa ia começar às 21h e não tinha hora pra terminar. Ele podia trazer quantos amigos (e amigas) quisesse.

Por volta das 4h da tarde de sábado, ele apareceu no pardieiro. Eu e Julinho ainda estávamos fazendo as caipirinhas (uns quarenta litros) e as batidas de abacaxi (outros quarenta litros).

O Simas resolveu participar da presepada no quesito “provador” oficial. Ele pegava um pequeno cálice, enfiava no panelão, bebia e avisava:

– Falta um pouco mais de açúcar, caralho!

No décimo-quinto cálice, ele já resolveu meter a mão no abacaxi, nos limões, na cachaça e nos dar uma aula sobre fabricação de batida. O Julinho começou a ficar puto.

Retirei o Simas de lá e perguntei como ele havia chegado até o pardieiro. Ele me deu uma “gravata” e me levou até lá fora.

Estacionado diante da casa estava um Corcel II novinho em folha, negro como as asas da graúna. Acho que era o primeiro carro daquela cor que havia chegado em Manaus. O papai tinha arrematado aquela obra prima em um consórcio nacional na semana anterior.

O Simas estava com 21 anos, mas não tinha carteira de motorista – apesar de dirigir motocicletas e veículos desde os 14 anos. E estava totalmente louco de tanto provar caipirinhas e batidas de abacaxi.

Depois de muita conversa, convenci o sacana a ficar dormindo no meu quarto até a festa começar. Liguei o ar condicionado, encostei a porta, desliguei a luz e ele ficou jiboiando. Fui ajudar o Julinho a envasar as bebidas e colocar na geladeira.

Por volta das 20h, as meninas começaram a chegar ao pardieiro. Uma das primeiras que chegou foi a belíssima Margareth Batista (aka “Meg Fechou”), esposa do Guilherme, que era meu funcionário na Philco, no segundo turno, e top DJ da rádio Tropical.

Guilherme ia chegar depois das 10h da noite, mas havia mandado os melhores discos pela Meg Fechou, que tinha esse apelido porque era de fechar o trânsito.

Coloquei no toca-discos o primeiro LP dos 30 que ela me entregou. Era a música “Frustration”, do Soft Cell. Na seqüência viria “Tainted Love”, “Seedy Films”, “Sex Duwarf”, essas coisas. O melhor do new wave daquela época.

A doce Meg começou a dançar sozinha no meio da sala com aquele bailado cheio de braços do Ian Curtis, do Joy Division, que depois foi emulado pelo Renato Russo.

O Simas acordou, saiu do quarto e viu aquela fêmea dançando sozinha na sala, balançando aqueles braços como se estivesse imitando uma deusa indiana dançando hula hula. Achou que era para ele. Já chegou segurando ela pelos braços e a trazendo pra cima dele.

Desencanada, a Meg nem ligou. Sem parar de mexer os braços, ela rebolava na frente dele, aí se virava de repente, se afastava, voltava, rodava na frente dele, encostava a cabeça no queixo dele, se afastava, balançava de costas pra ele, fugia de novo e voltava. Aquela coisa da new wave, em que a dança era quase um surto de epilepsia.

O Simas começou a achar que estava diante do maior fodão da vida dele.

Na terceira música, a Meg deixou o sacana plantado no salão e veio me avisar:

– O teu irmão já está passando dos limites. Ele tentou me beijar duas vezes na boca... Pô, o cara não sabe que eu sou casada e que só estou dançando com ele pra deixá-lo animado?... Tem tantas meninas bonitas aqui... Vá se foder...

Coloquei um David Bowie básico (“Stay”), segurei o vigário delicadamente pelo braço e o levei até o corredor. Eu estava ali, tentando convencê-lo a dormir mais um pouco, quando chegou o Alfredo Bigode, que também trabalhava comigo na Philco:

– Êi, Simas, fica frio que eu estou indo buscar três gatinhas na Cachoeirinha e tem uma delas que é louca por ti...

O Alfredo falou aquilo, pegou seu carro e se mandou.

Na porta do quarto, o Simas começou a discutir comigo. O papo era surrealista:

– Por que qui tu tá querendo que eu durma, caralho? Eu já dormi...

– Porque descansar de novo vai ser melhor pra você. Você dorme mais um pouco, numa boa, e daqui a uma hora eu te acordo...

– Eu já sei. Tu come a mulher do Guilherme e eu estou embaçando a tua parada, né não?...

– Claro que não, porra! Eu conheci a Meg hoje. Mas deixa a Meg pra lá. Vai vir muito mais gente bonita hoje. Fica frio. Só faz descansar um pouco...

– Vai te fuder, porra! Tu come ela, que eu sei! Cadê o corno do marido dela pra eu sacanear...

– Não como ela, caralho! Nunca comi! Ela é mulher de um dos meus melhores amigos! Eu não posso é deixar você sacanear com ela!

Ele me olhou com seus olhos vitrificados de ódio e detonou:

– Bicho, é o seguinte: tu pega essa tua puta, esses viados, essa tua festa de merda e mete tudo no cu! Eu estou indo embora!

Ele falou aquilo e atravessou o salão xingando todo mundo. Sai atrás, tentando segurar ele, mas o sacana estava impossível.

Ele entrou no carro, meteu a chave na ignição e começou a manobrar o carro.

Foi quando eu, com os colhões na garganta, joguei a praga:

– É isso que tu tá querendo fazer, bicho, estragar a nossa festa?! Faz melhor, porra! Tu sai daqui, bate a merda desse carro e coloca a culpa em mim... É isso que tu tá querendo? Então, caralho, faz o serviço completo!...

Ele saiu cantando pneus.

Uma hora depois, a festa já pegando fogo, entra o Alfredo Bigode, me arrasta pro canto e canta a pedra:

– Teu irmão acabou com o carro do teu pai! Tá uma merda geral lá na Djalma Batista! Eu falei pro teu pai que vinha aqui te avisar...

Devia ser 10h da noite. Alfredo estava trazendo as meninas da Cachoeirinha pela Djalma Batista, quando viu um Corcel II preto entrar estupidamente na traseira de uma kombi na entrada do Conjunto Eldorado.

Como ele só conhecia um único veículo com aquelas características, resolveu voltar pra saber que merda era aquela. Os seis caras da kombi haviam descido pra encher o Simas de porrada.

Com um trinta-e-oito na mão, Alfredo fez os caras desistirem da idéia. Aí, pegou o Simas, que supostamente estava desmaiado no painel do Corcel, colocou no seu carro e levou pra casa do velho, lá na Cachoeirinha. Minhas duas irmãs (Silane e Selane) levaram o Simas para um hospital.

Alfredo Bigode e meu pai voltaram pra cena do crime pra ver o estrago. O papai estava me esperando no meio da confusão.


Eu interrompi a festa, expliquei rapidamente o que havia acontecido, expulsei todo mundo de casa, desliguei as luzes externas, peguei meu pequeno bugre e me mandei pra lá.

Continuaram na casa somente Jaques Castro e Julinho com suas respectivas namoradas trancados nos respectivos quartos.

Falei com os agitadísimos caras da kombi que pagaria os prejuízos, liguei pro Dico Paiva vir guinchar o carro do velho, resolvemos a parada material. Mas e o Simas?

Minhas duas irmãs queriam me linchar. Eu tinha embriagado o cara daquele jeito e tinha deixado o sacana fazer aquela merda toda. Eu era um filho da puta. Assumir o prejuízo, era o mínimo. Mas, e daí? O Simas quase tinha morrido. Eu era um filho da puta!

Depois de muita conversa, papai foi embora, com minhas duas irmãs rogando pragas pra mim. Eu voltei pra casa me sentindo o maior filho da puta do mundo. Em termos de caçada de lebres, aquele miserável do Simas era um tremendo amador.

Naquela rua em frente ao Cecom, eu vejo a Wanda caminhando e se desviando das poças de lama com uma elegância de manequim desfilando no Fashion Week.

A Wanda tinha sido estagiária no serviço social da Philco e tinha, na época, a maior padaria da empresa. Eu era louco pra experimentar um pão quentinho daquela fornalha, mas ela sempre me tirava de letra na maior classe.

Eu a tinha convidado pra festa – ela morava com a namorada do Jaques Castro –, por uma questão de civilidade. Nunca imaginei que ela iria para aquela pândega.

Mas, de repente, lá estava ela, do outro lado da rua, andando apressadamente e com um balanço de menina linda a caminho do mar. Parei o bugre e questionei:

– Ainda que mal lhe pergunte, minha princesa, você está indo pra onde?...

Ela me reconheceu e abriu aquele seu sorriso de 1.500 peças de marfim:

– Ué, pra tua festa. Já acabou?...

– Entra aí, porra, que deu a maior merda...

A Wanda entrou no carro. Fui explicando pra ela o que havia acontecido.

Quando dobro à direita, no rumo de casa, uma das rodas traseiras gigantescas do bugre cai num buraco gigantesco da rua e o carro fica preso.

Ré, primeira, reduzida, nada funciona. O bugre só patina, o motor só falta fundir. Era tudo que faltava pra ser uma noite inesquecível. O culhão não vai pra garganta porque eu já havia comido ele com farinha antes. Apelei:

– Wanda, minha princesa, vai lá em casa e chama o Jaques ou o Julinho pra vir aqui me ajudar, que eu já pedi o penico...

A Wanda desceu do carro e saiu andando em direção à nossa casa, a uns 50 metros dali. Eu olhando aquele seu doce balanço ao rumo do mar e ficando cada vez mais desesperado.

Puto da vida, eu desci do bugre e fiquei olhando praquela presepada.

De repente, me deu um ódio tão grande de tudo aquilo que havia acontecido naquela noite, que me aproximei do bugre, meti a mão na traseira dele, levantei no ar e coloquei a roda traseira fora do buraco (desconfio que Ogum me ajudou, já que nunca fui nenhum Super-homem).

Liguei o carro e fui embora. A Wanda ainda estava batendo na porta de casa, mas ninguém atendia.

Abri a porta da garagem e estacionei o bugre.

Aí, abri o portão principal e entrei com a Wanda. Ela estava assustada. Falei pra ela:

– Nós vamos nos embriagar, escutar boas músicas, dançar face-to-face e seja o que Deus quiser!

Devia ser meia-noite. Jaques e Julinho já deviam estar dormindo.

Por volta das 2h, a gente resolveu parar de dançar e ir dormir. Foi uma dormida selvagem. Ogum e Iansã querendo consertar o mundo. Não recomendo a ninguém.

Eu acordei por volta das 10h da manhã, com a Wanda já se vestindo. Ainda ajudei no ajuste do feixe èclair do vestido.

Ela me deu um bitoco, pediu pra eu lhe telefonar na segunda-feira (coisa que não fiz), e, de repente, alguns meses depois, ela resolveu se casar com um americano e foi morar em Miami, onde está feliz até hoje.


O Simas não vale nada!

Mas é o único brother que tenho. Na real.

Apesar de ele não entender porra nenhuma de caçada de lebres, ainda mato e morro pelo sacana!

Quem sabe se com o tempo ele pega a prática?...

Nenhum comentário: