Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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terça-feira, setembro 15, 2009
O jogo das contas de vidro
Comecei a me interessar pelo jogo de bolinhas no final dos anos 60, quando ainda estudava no curso ginasial. No início da Rua Parintins, quase no canto com a Carvalho Leal, havia uma oficina de estofamento de carros, pertencente à família do Baiano, cujo imenso quintal espetacularmente plano, de barro batido coberto por uma fina camada de areia e arborizado por dezenas de árvores frutíferas (mangueiras, jaqueiras, jambeiros, abacateiros, pitombeiras), era um convite irrecusável para a prática da brincadeira.
Todo santo dia, das 8 da manhã às 6h da tarde, pelo menos uns trinta moleques se reuniam no local para “apostar” suas petecas, o que transformava o aprazível quintal da pacata oficina em um ruidoso cassino de Las Vegas, com dezenas de partidas transcorrendo simultaneamente e os palavrões mais cabeludos acompanhando as jogadas mal sucedidas.
Havia cinco tipos de bolinhas, por ordem crescente de importância e valor de troca:
1) As comuns, de vidro fosco, nas cores branca, azul, vermelha, preta, amarela e verde, em diferentes matizes e recombinações. As estilhaçadas pelo uso se chamavam “caraquentas”.
2) Os “ovinhos”, minúsculas bolinhas de um vidro transparente, semelhante às usadas no dosador das garrafas de Johnnie Walker.
3) As “carambolas”, que como o próprio nome diz traziam em seu interior uma autêntica carambola.
4) Os “petecões”, de tamanhos duas ou três vezes maiores que as bolinhas comuns.
5) E as indescritíveis “colombianas”, petecas coloridas artesanalmente à mão, em cores quentes, que lembravam muito um cubo mágico. Raras e belas.
Se fosse redondo, seria uma autêntica bolinha colombiana
As modalidades de jogo eram apenas três e, provavelmente, foram introduzidas na cidade por crianças inglesas no início do século 20, quando Manaus estava em pleno “boom” das folias do látex.
O jogo mais praticado era o “turite” (corruptela do termo “two hits”, “duas batidas”), seguido pelo ronda mate (corruptela do termo “round match”, “partida redonda”) e pelo ronda dedo, desenvolvido pelos próprios manauaras, já que não há notícia de que esse tipo específico de jogo seja praticado em outro lugar do país.
No turite, riscavam-se duas linhas paralelas distantes dois metros entre si. Na primeira linha, casavam-se as bolinhas que seriam apostadas (no mínimo uma por jogador) e tirava-se o ponto a partir da segunda linha. Não havia limites de jogadores. Cada um jogava uma vez, movimentando sua ponteira com o dedo (normalmente o indicador vergado sob o polegar funcionava como a alavanca de impulso da peteca), com a mão obrigatoriamente encostada no chão.
A ponteira do jogador que mais se aproximasse da linha de bolinhas casadas começava o jogo do local onde havia parado. As demais ponteiras eram jogadas na seqüência, de acordo com o grau de aproximação de cada uma delas à linha de “casadas”. Ganhava o jogo quem conseguisse acertar a ponteira em duas bolinhas simultaneamente com uma única jogada. Valia, inclusive, tentar o turite na hora de tirar o ponto.
Durante o desenrolar do jogo, havia ainda o expediente da “lavoura”: se com a sua ponteira você conseguisse jogar a ponteira de um adversário para depois da linha de ponto, ele lhe pagava uma bolinha. Se “estrelasse”, isto é, sua ponteira acertasse a ponteira do adversário, mas fosse a sua (e não a dele) a ultrapassar a linha de ponto, você pagava uma bolinha.
Para aplicar a lavoura, você podia tanto limpar o local onde estava a ponteira adversária, como colocá-la num “castelo” (montinho de areia, mais tarde substituído pela tampa plástica de pasta de dentes). Se a lavoura fosse bem sucedida, você teria direito a uma nova jogada. Se errasse ou estrelasse, não.
No ronda dedo, era feito um círculo de um palmo de diâmetro e riscado um “T” no seu interior. Nas pontas opostas da linha menor do “T” ficavam as ponteiras dos jogadores, nas pontas opostas da linha maior, as bolinhas casadas, de forma que a primeira bolinha ficasse entre as duas ponteiras. Eram apenas dois jogadores. Cada um jogava uma vez, também movimentando sua ponteira com o dedo e a mão sobre o chão.
O ronda dedo deve ter se originado do triângulo, muito praticado no resto do país
O jogo consistia em tirar as duas bolinhas de dentro do círculo, mas como havia alternância de jogadas, ganhava quem tirasse a última bolinha. Era um jogo de estratégia, já que qualquer vacilo era fatal. O ideal era afastar a ponteira do adversário para locais cada vez mais distantes, enquanto aproximava as duas bolinhas dentro do círculo, para então retirá-las com uma única jogada.
No ronda mate, era feito um círculo de três palmos de diâmetro, onde se casavam as bolinhas (no mínimo cinco por jogador) e era feito uma linha horizontal a quatro metros de distância do círculo. O ponto era tirado do círculo para a linha, jogando a ponteira com a mão (na maioria das vezes “petecões” ou esferas de aço, retiradas de rolamentos de carros) em direção à linha.
Começava o jogo – dessa vez da linha pro círculo – aquele cuja ponteira mais se aproximasse da linha. O jogo consistia em jogar a ponteira com força em direção às bolinhas casadas no círculo. Toda bolinha que a sua ponteira retirasse do círculo era sua. Se errasse (deixasse de retirar pelo menos uma bolinha) ou sua ponteira ficasse presa dentro do círculo (na “forca”), você cedia a vez pra outro jogador e a partida recomeçava até não ficar nenhuma bolinha dentro do círculo.
Se errasse, você recomeçava a jogar, na sua vez, a partir da parte do terreno onde parara a sua ponteira – daí a necessidade de saber bem dosar a força para não ficar muito afastado do círculo. No caso de sua ponteira ficar presa no círculo, você pagava uma bolinha pro adversário que a retirasse da forca e recomeçava a jogar da linha de ponto. Enquanto sua ponteira estivesse na forca, você não jogava. Pra quem jogava tendo como ponteira uma esfera de aço, esse era o maior risco.
Os petecões eram usados como ponteiras nos jogos de ronda mate
Se as regras eram claras e obedecidas pelos jogadores até com certo “fairplay”, na hora do Ângelus, às 6 horas da tarde, todo santo dia, era a vez de o cu da cotia assobiar. Bastava alguém gritar “abafa” e todo mundo se lançava em cima das bolinhas para agarrar o máximo de petecas que pudesse, fosse de quem fosse.
Às vezes, um jogador inexperiente se lançava naquela faina com uma das mãos cheias de bolinhas, aí bastava alguém esbarrar “sem querer” na sua mão e uma nova leva de bolinhas estavam disponibilizadas para o “abafa”. Nunca ter saído uma única porrada por conta daquela presepada me dá a certeza de que sempre fomos politicamente incorretos mas nem tanto.
No começo, eu apenas observava a estratégia dos melhores jogadores do pedaço – Baiano, Zé Quara, Armandinho, Rudiney, Fuinha, Branco, Sergio Velhote, Favela, Luiz Lobão, Chico Porrada, Heraldo Cacau – para tentar aprender suas técnicas.
Eles jogavam com o polegar pressionando levemente o dedo indicador (nas tiradas de ponto, aproximações táticas – chamadas de “abicorar” – e turites), mas usavam o dedo maior de todos nas lavouras. Os outros três dedos permaneciam fechados em direção à mão.
Nunca consegui imitá-los: eu jogava com o indicador preso atrás do polegar e os três dedos abertos, como se estivesse pedindo o lorto de alguém, o que era motivo de gozações inenarráveis.
Com o tempo, treinando força e direção no quintal de casa, desenvolvi uma técnica quase perfeita. Mesmo jogando daquele jeito pornográfico, eu era capaz de acertar com violência em qualquer bolinha a dois metros de distância.
Depois, comecei a jogar com os mais fracos – Clóvis, Zé Carlos, Sansão, Áureo, Arlindo, Sici, Dó, Julio, Didão, Zé Alfredo, Simas, Xereta, Bordado, Humbertinho, Breta, Pepéu, Louro – somente para testar minhas novas estratégias.
Alguns meses depois, resolvi encarar os chamados “pedra noventa”. Não dei vexame. Perdia dez bolinhas num dia, ganhava dez no dia seguinte, e ia levando.
Mas, em menos de um ano, assim que peguei a manha dos aclives e declives quase imperceptíveis do terreno, comecei a minha fase de “Átila, o huno”: por onde eu passava, não restavam mais bolinhas nos bolsos de ninguém.
As pessoas que freqüentavam a oficina se reuniam em torno dos locais onde eu jogava somente pra me ver desmoralizar os adversários, fosse no turite (casando dez bolinhas de cada vez), fosse no ronda dedo (apostando dez bolinhas por fora) ou no ronda mate (casando até 20 bolinhas de cada vez).
Minha pontaria era fuderosa – dava lavoura com até três metros de distância! Minha sorte (ou talento, quem sabe?) para fazer turites inesperados, acertando em duas bolinhas separadas meio metro entre si, por exemplo, era declamada em prosa e verso!
Ganhei tantas bolinhas, que passei a revender pela metade do preço para o taberneiro “seo” Luís, ali na Rua Borba, que as revendia para a molecada da rua a preço de mercado, só para ter o prazer de ganhá-las de volta no dia seguinte.
Basta dizer que na hora do “abafa” eu simplesmente guardava a minha ponteira no bolso e ia embora, não dando a mínima para quantas bolinhas minhas estivessem no jogo e os perebentos pudessem “abafar”.
Quando a paixão pelo esporte estava arrefecendo, cheguei a contabilizar em casa mais de 4 mil petecas de todos os tipos (menos as “caraquentas”, que eu quebrava a marteladas), incluindo umas duzentas “colombianas”.
Depois, me desinteressei pelo assunto e as bolinhas serviram de munição para o Simas caçar passarinhos nos quintais da redondeza durante vários anos.
Por meio dos poucos amigos privilegiados que costumavam passar as férias no Rio de Janeiro, como Sergio e Arlindo Mubarack, soube que na Cidade Maravilhosa o jogo de bolinha mais popular se chamava búlica.
Pelo que ainda me lembro, posto que nunca joguei aquela infâmia, consistia de três buracos eqüidistantes em linha reta, no chão de terra, onde começa quem lança sua bola mais perto do terceiro buraco, tanto faz se é daqui para lá ou de lá para cá que começa a disputa.
Se por acaso no início do jogo um dos participantes consegue fazer de cara uma búlica, ou seja, lançar a bolinha direta no terceiro buraco, já está com a chance de começar a “matar” as bolas dos outros adversários cujas bolinhas estejam por perto da búlica que ele acertou. Mas se acontecer de algum outro competidor também acertar nesta mesma búlica na primeira jogada, aí a partida estará cancelada e se começará uma outra.
Diferente daqui da taba, onde a mão, durante o arremesso das bolinhas, tinha que permanecer obrigatoriamente encostada na terra (a exceção era o ronda mate), na búlica as bolinhas eram arremessadas com a mão afastada do chão e a bolinha presa entre a unha do polegar e o dedo indicador, o que nos parecia coisa de viado, razão pelo qual o jogo nunca obteve a nossa simpatia.
As regras também eram meio confusas – ou os irmãos Mubarack nunca souberam explicar direito. Por exemplo, pro sujeito não perder a vez quando desconfiava que poderia errar uma bola perto da búlica, ele era obrigado a gritar: “Ou bola ou búlica!”.
Quando o jogador tinha que acertar na bola de um adversário, mas acertava também na de um outro jogador, dizia-se que ele “carambolou” e a partida era encerrada sem vencedores. A melhor estratégia do jogo era ficar por último no início da partida, e para isso, tão logo era anunciado o jogo, o jogador gritava a palavra: “Marráio!”
Quando muitas bolas ficavam juntas, um jogador, querendo se aproveitar do erro do adversário da vez, aumentava a pressão psicológica dizendo: “Ferido, sou rei!”. Ocorre que “ferido” tinha uma pronúncia especial, típica de malandro carioca, então o dito ficava assim: “Feridô, sou rei!”.
Sinceramente, era ou não era coisa de viado?...
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2 comentários:
Seus amigos cariocas fizeram uma confusão danada. No Rio se jogava o bola ou bulica, mas o mais jogado era o triangulo, onde os jogadores colocavam as sua apostas. As expressões marraio e feridor sou rei, eram dessa modalidade, qdo se fazia a classificação do jogador a iniciar a partida. Essa classificação era feita pela jogada da bola de gude até uma linha riscada na terra. Quem ficasse mais perto da linha seria o primeiro ( ou o ultimo, não me lembro bem) a jogar. O marraio era o ultimo a lançar a sua bola de gude na classificação. O objetivo era retirar as bolinhas apostadas do triangulo. Caso sua bolinha de jogo parasse dentro do triangulo, vc perdia todas as suas bolas, ou caso vc fosse tecado por outro jogador....
simples ne???? rs
Aqui em São Luís conheci, nos anos 80, os seguintes jogos: turites, triângulo, borroca e galinha gorda. A bolinha era chamada de peteca ou caroço, a grande peteca era chamada de cocão e as muito danificadas eram chamadas de pau de mucaca ou mucaréu. Estou colocando no passado, mas a verdade é que esses jogos existem até hoje. Claunísio, São Luís.
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