Casa abandonada na Rua
Saldanha Marinho
Milton Hatoum
Há poucos dias visitei uma casa na rua Saldanha Marinho, no
centro de Manaus, que é também o centro da minha infância e, portanto, da minha
memória.
Vi a mesma biblioteca com livros brasileiros, portugueses e
franceses, a escrivaninha de cedro, os lustres antigos, os vitrais coloridos em
forma de ogiva. Atravessei o longo corredor lateral que dá acesso aos quartos e
à cozinha e termina num pátio cheio de vasos com avencas e tajás. No fim desse
corredor, sentada numa austríaca, vi dona Maria Luiza Freitas Pinto, a
professora que me alfabetizou.
Aos 97 anos, com uma lucidez invejável, ela relembrou cenas
de um passado remoto. Disse que eu sentava num banquinho feito por índios da
Colômbia e conversava com Anna Telles, mãe de dona Maria Luiza.
“Tu também gostavas de ver meu pai limpar discos com o rabo
de um macaco barrigudo.”
Olhou para mim, viajando no tempo, e prosseguiu, orgulhosa:
“O grupo escolar Barão do Rio Branco ainda está de pé”.
De fato, o edifício antigo resistiu à barbárie que usurpou a
memória urbana de Manaus. Comparado com a atual arquitetura da cidade, o estilo
neoclássico do grupo escolar esbanja refinamento. Parece que os arquitetos se
esqueceram do clima do equador. Mais fácil é projetar caixotes vedados, banindo
varandas e janelões.
Disse à professora que o jambeiro ainda sombreia o pátio do
grupo escolar, que, hoje, é uma escola estadual; nos meses de inverno, o chão
ficará coberto de flores vermelhas, os leões de pedra da entrada vão perder sua
cor de açafrão, os pilares serão manchados de limo.
“Naquela época”, ela disse, folheando o livro de crônicas
que lhe ofereci, “havia respeito mútuo… E uma boa biblioteca em cada escola”.
Ela mencionou o prestígio do corpo docente, os exercícios em
sala de aula – ditados, leituras, tabuadas e redações –, o mapa colorido do
Brasil, com seus Estados e capitais, que os alunos deviam nomear.
Mas ao lado desse mapa pendurado na parede, havia uma
palmatória, eu disse.
“Sim”, ela concordou. “Quando eu olhava para a palmatória,
os alunos mais endiabrados se acalmavam. E tu não eras um santo. Naquele tempo,
a disciplina… Mas havia educação doméstica, a disciplina começava em casa. Tudo
isso acabou. E já não há mais amor na aprendizagem.”
Recordei alguns amigos do Barão do Rio Branco: os mais
pobres moravam em palafitas na beira dos Igarapés de Manaus e dos Educandos;
arregalavam os olhos quando viam a merenda dos que moravam em terra firme:
banana frita, tapioquinha, queijo-coalho, suco de graviola, guaraná Tuchaua. Eu
invejava a caligrafia caprichosa de Paulo Tarso, e imaginava que ele tinha uma
maquininha na mão direita.
“A caligrafia era um exercício necessário”, disse a
professora. “Hoje em dia, poucos jovens usam um lápis ou uma caneta… O mais
importante é saber ler e escrever. Saber pensar…”
Foi uma visita breve: não queria interromper a sesta da
professora. Antes de sair da casa verde, prometi a dona Maria Luiza que
voltaria a Manaus sem muita demora.
“Guardaste a redação?”
Claro, eu disse.
A professora referia-se à primeira redação que escrevi no
Barão do Rio Branco. Ela me entregara a folha amarelada em 1989, quando lancei
em Manaus meu primeiro romance. O texto descreve uma viagem ao Careiro e é
ilustrado por um desenho de uma fazendola.
Numa viagem recente a uma comunidade rural do Amazonas,
visitei uma escola pública, cujo estado era lamentável. Parecia um chiqueiro.
Pensei nas crianças humildes dessas comunidades ribeirinhas,
crianças e jovens sem qualquer futuro, ou proibidas de sonhar com o futuro.
Mais de 10% da população do Amazonas é analfabeta.
Enquanto
me distanciava da casa da professora, pensava nas armadilhas do “progresso”,
nas contradições entre a economia dinâmica da zona franca de Manaus e as desastrosas
e ineficientes políticas públicas.
Pensava nesse impasse, andando na rua sem sombra, porque na
cidade equatorial, tão briosa de seu crescimento exuberante, não há calçadas
nem árvores.
Um comentário:
Bacana. Lí isso na veja.
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