Desde que comprei nas bancas o primeiro jornal Versus, em
meados dos anos 70, me tornei fã confesso do jornalista Marcos Faerman. Seu
texto límpido e cristalino era a prova dos nove de que jornalismo e literatura
podiam andar de mãos dadas sem assustar os leitores. Se um dia me tornasse
jornalista, queria escrever igual a ele. Não consegui, é verdade, mas vou
morrer tentando.
O jornal Versus foi amor à primeira vista. Na época, eu
comprava apenas o Pasquim e, esporadicamente, os jornais Opinião e Movimento.
Foi por meio do Versus que travei contato com vários jornais alternativos
(Ovelha Negra, De Fato, Boca do Inferno, O Saco, Raposa, Pacu Tatu cotia Não,
Varadouro, etc), dos quais logo me tornei assinante.
Um dos editores do Versus era o escritor Mouzar Benedito,
que só conheci pessoalmente há oito anos, mas com quem troco figurinhas até
hoje. Tão talentoso quanto Faerman, Mouzar mantém um blog interessantíssimo no
site da Editora Boitempo, que visito sempre que posso, e que recomendo
vivamente a quem gosta de boa literatura.
Também adquiri os dois volumes de jornais encadernados (do
nº 03 ao 10 e do nº 11 ao 17), dos quais sobrou apenas o primeiro volume, que
guardo como um troféu de guerra. O segundo foi inadvertidamente jogado no lixo
por uma de minhas ex-mulheres.
Há alguns anos, recebi de um amigo a cópia de um texto
intitulado “Marcos Faerman, um humanista radical”, da jornalista Isabel Vieira,
que transcrevo em seguida como forma de homenagear a memória daquele que, ainda
hoje, considero o melhor jornalista brasileiro de todos os tempos. Lendo o
texto, muitos leitores me darão razão. Curtam:
Um ataque cardíaco fulminante levou Marcos Faerman na
contramão de uma sexta-feira, 12 de fevereiro de 1999, véspera de Carnaval. Em
5 de abril teria completado 56 anos (nasceu em 1943). Estava acima do peso,
fragilizado, envelhecido, cego de um olho, abalado pela morte recente da mãe e
da irmã, ambas de câncer de mama, mas trabalhando em vários projetos ao mesmo
tempo, como de hábito, com o entusiasmo dos 20 anos. E aproveitando uma fase
excepcionalmente tranquila na sua conturbada vida pessoal. Dias antes de
morrer, havia trazido para a esposa Nina alguns vasinhos de xaxim, uma caixinha
de música que tocava “Love Story” e um
pano de prato estampado com a frase “Aqui mora a felicidade”. Esse quarto
casamento, no final de 1997, com a historiadora Maria Aparecida (Nina)
Lomônaco, tinha lhe proporcionado algo que há muito não possuía: uma vida
familiar.
Tudo indicava que as turbulências do vendaval Marcão haviam
sossegado. Assistia ao seriado de televisão “Chiquinha Gonzaga” com a esposa,
na cama, ou lia para ela trechos de Rimbaud ou Nietzche antes de dormir. Gostava de tomar chá com a sogra, de 90 anos,
que vivia no mesmo prédio, na região da Paulista, em São Paulo. E havia
recuperado algo precioso: o convívio com os filhos Laura (do primeiro
casamento, com Marilza, nascida em 1975) e Julio (nascido em 1980, da segunda
mulher, Maria Inês). “Venham jantar em casa”, convidava. “Encontrei uma mulher
que faz o bife da minha mãe.”
“O cheiro do bife da mãe me acompanha pela Eternidade...”,
Marcão havia escrito num texto que Nina acharia depois em gavetas, com o título
de “Nunca mais”, grito lancinante pela seqüência brutal de perdas na família. O
primeiro a ir embora foi o pai, em 1988. Depois o irmão caçula, Marcel, em
1994. Dos quatro filhos de Henrique e Helena Faerman, só ele, Marcos, o mais
velho, e o segundo, Mauro, psiquiatra em Porto Alegre, continuavam vivos.
“Cuidei dele como de um bebê”, diz Nina. Ela, paulista da gema, trabalhava no
bairro judeu do Bom Retiro. Estava sempre em busca de receitas de pratos de que
ele sentia falta, como os vareniques, pasteizinhos de batata que a mãe e a avó
faziam. Estabilidade e carinho amenizaram-lhe as dores. Ao cunhado e amigo
Vitor Vieira, viúvo da irmã Marilena, por quem nutria uma irmandade de
espírito, Marcão confessou que há muito tempo não se sentia tão bem. Até o
final manteve o hábito de ligar várias vezes por dia a Vitor, jornalista em
Porto Alegre, para falar do Grêmio ou de qualquer outro assunto, importante ou
banal.
O último Natal foi festejado à maneira cristã – “um sonho
dele”, segundo a esposa – na casa de Luciana, filha de Nina, na pequena cidade
onde ela vive, Santa Isabel do Ivaí, no Paraná. Marcos e Nina tinham passado o
final de 1998 lá e pretendiam voltar no carnaval. Na última hora desistiram da
viagem, pois Marcão, como sempre, estava atolado de compromissos. Editava com
especial desvelo a revista “A Hebraica”, para o público judeu de São Paulo,
fazia matérias como repórter especial para as revistas “Educação” e “Ensino
Superior”, da Editora Segmento, do amigo Edmilson Cardial, e era responsável
pelo jornal-laboratório “Esquinas de SP”, da Faculdade de Comunicação Cásper
Líbero, onde lecionava.
Na sexta-feira, 12 de fevereiro, Marcão saiu ao meio-dia
para fazer sua última entrevista, com Adriano Diogo, vereador petista. Ao
terminar, ligou para a mulher avisando que ia fazer algumas compras. À noite,
Laura viria jantar. Quando Nina chegou do trabalho, soube pelo porteiro que o
marido havia voltado às quatro da tarde e subido com a chave que ficava na
portaria. Estranhou o silêncio no apartamento. Bateu, tocou a campainha, e
nada. O telefone tocava e ninguém atendia. Nina foi buscar um chaveiro do
bairro para abrir a fechadura. Só conseguiu entrar em casa depois de quarenta
minutos de angústia. Encontrou na geladeira tudo que Laura mais gostava de
comer e beber. Sobre a mesa da cozinha, um pacote aberto de suco de pêssego Del
Valle, que o marido adorava. Marcão jazia sem vida no espaço entre a cama e a
janela do quarto. “Não sei qual o efeito
da paixão no coração, se dilata ou sobrecarrega as coronárias”, diria depois
Luis Fernando Veríssimo em sua coluna no Estadão.
Em 1966, então colegas no jornal gaúcho Zero Hora, eles
planejaram um caderno de cultura em condições precárias, na garagem da casa de
Veríssimo em Porto Alegre. “Nunca conheci ninguém apaixonado pelo jornalismo
como o Marcão. Lembrei dele em nossa garagem, há 30 anos, emocionado com a
descoberta de um texto bem paginado. Emocionado com nada mais extraordinário
que um texto bem paginado numa revista poeirenta.”
“Morreu de tanto viver”, resume a última companheira,
Nina.
Conheci Marcão em setembro de 1977, na velha casa da rua
Capote Valente, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde funcionava a redação
do Versus. Naqueles tempos em que a imprensa estava sob censura e as publicações
alternativas falavam por nós, a estudante do terceiro ano de jornalismo
sentiu-se honrada por ser recebida pelo editor do tablóide que era o meu
preferido na faculdade. Versus, “um jornal de aventuras, idéias, reportagens e
cultura”, como dizia o slogan, propunha a cultura como forma de ação política e
tratava índios, negros e trabalhadores como os reais protagonistas da história
latino-americana. Possuía colaboradores
de peso, como o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, autor de “As veias
abertas da América Latina”, o escritor argentino Julio Cortazar, o mexicano
Carlos Fuentes, o poeta cubano Ernesto Cardenal, os brasileiros Érico e Luis
Fernando Veríssimo, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Rodolfo Konder,
Cláudio Willer e outros.
Habituado a trabalhar com profissionais desse quilate,
Marcão tinha ao mesmo tempo a rara delicadeza de tratar focas com respeito e
entusiasmo. Ficava empolgado com textos bem escritos. Acolhia e arrumava
emprego para quem precisasse. Fazia o jovem jornalista se sentir capaz. “Foi
padrinho e tutor de uma geração que se formou em torno do seu inesquecível
tablóide dos anos de imprensa nanica, o Versus”, diz Alfredo Sirkis numa bela
matéria no Observatório da Imprensa. Muitos desses afilhados fariam sólidas
carreiras na imprensa. Um deles é Caco Barcellos, conterrâneo do Rio Grande do
Sul.
Tive a sorte de chegar na hora certa. Marcão me recebeu em
1977 como se já fosse profissional. Elogiou a matéria que eu trazia (sobre uma
comunidade isolada de caiçaras no litoral norte de São Paulo) e a publicou. Em
seguida, me incumbiu de uma pauta ambiciosa: a vida dos mineiros numa mina de
carvão. Mas não qualquer mina. Queria uma mina em que a extração fosse feita
por meio de métodos primitivos, “como no Germinal, de Émile Zola”, disse, me
emprestando o romance que eu não conhecia. Mandou que lesse também um estudo
sobre mineiros na Bolívia, “He agotado mi vida en la mina: una historia de
vida”, de Juan Rojas e June Nash, numa
edição argentina. Deixei a redação com os volumes debaixo do braço e sem
coragem de confessar que eu não tinha a menor idéia de onde havia minas de
carvão no Brasil. Envergonhada, fui consultar enciclopédias e mapas. Assim
encontrei a Mina do Leão, em Butiá (RS), a 100 quilômetros de Porto Alegre,
tema da primeira de inúmeras matérias que eu faria sob orientação do Marcão.
E não só no Versus. Porque pelas mãos dele cheguei à revista
Quatro Rodas, meu primeiro emprego como repórter. Fomos amigos próximos durante
quinze anos, até o início de 1993. Convivemos no Jornal da Tarde e em revistas
que ele criou e/ou editou, como “Singular & Plural” (1978-79) e “Ícaro
Ponte Aérea” (1984-85), nas quais eu colaborava. E em “lições práticas” de
reportagem. Apesar dos frilas brilhantes que costumava fazer para Quatro Rodas,
Marcão nunca soube dirigir um automóvel. Sempre que podia, eu lhe dava carona e
o acompanhava na apuração de suas matérias. Com ele aprendi mais sobre
jornalismo e literatura do que em qualquer livro ou faculdade.
“Sou repórter, judeu, gaúcho, gremista e marxista.” Assim
Marcão costumava definir-se – em geral nesta ordem. Via-se como um ser de
múltiplas facetas, com identidades fortemente coletivas, e viveu cada uma com
paixão. Todas as cinco identidades tiveram origem na pequena Rio Pardo, no interior
do Rio Grande do Sul, onde ele veio ao mundo em 5 de abril de 1943. Os pais,
Henrique e Helena Faerman, judeus de origem russa, eram comerciantes que
tiravam o sustento da família de uma lojinha de aviamentos em cima da qual
viviam com os quatro filhos. O incêndio que destruiu a loja e a casa é uma
recordação marcante da infância de Marcos, um guri de cabelos encaracolados e
olhos azuis, que gostava de ler gibis e tinha medo do escuro. À noite,
escondido de todos, rezava pedindo perdão a Deus por ser judeu.
Em outro texto inédito encontrado por Nina, “Eu menino”, ele
relembra comentários dos garotos católicos da escola e diz: “E aí aprendi que
era judeu, que matei Cristo Nosso Senhor, filho de Deus. Eu, um menino judeu em
Rio Pardo. E fui correndo para casa, chorei como depois correria de novo,
chorando na calçada da rua João Pessoa, vendo nossa casa, a loja de meu pai
queimar. Meu pai sentado na frente da nossa casa, tudo queimando, e as pessoas
vendo o judeu chorar, o judeu que bem podia ter posto fogo na loja só para
ganhar o seguro – estes estrangeiros são capazes de tudo, não é?”.
A Rio Pardo que emerge das lembranças de Marcão é uma cidade
triste, com ruas de pedras, casas com porões, porões habitados por ratos, um
rio de águas escuras, as ruínas do Forte Jesus-Maria-José, ecos de antigas
bravuras e batalhas. Ele na matinê de domingo, “arrumadinho pela mãe na
primeira fila do cinema”, e figuras queridas como seu Biaggio, o bibliotecário
do museu, e a cozinheira Odósia, “que contava histórias de fantasma e talvez
seja a principal cúmplice da minha paixão por Allan Poe”. “Onde nasce o
fascínio pela leitura?”, pergunta-se. “Posso pensar, por exemplo, na paixão de
meu pai pelos livros. Na biblioteca de meu pai, em Rio Pardo, os livros eram
misteriosos. Quando ele me dizia: menino, a capa de uma aventura de Tarzan!...”
Seu Henrique Faerman gostava de ler histórias em voz alta
para os filhos, à luz inspiradora e fantasmagórica do lampião, e de levar
Marcos e Mauro para comprar maçãs argentinas nos trens que passavam pela
estação a caminho da cidade gaúcha de Santa Maria. “Maçãs vermelhas e redondas,
como só eram assim as maçãs dos reis, mas nós não parávamos de chorar, o irmão
e eu, até o pai voltar. Morríamos de medo do trem ir embora com o pai, para
sempre.” Em casa, ouviam a Rádio Belgrano de Buenos Aires e torciam pelo
Grêmio, o time de futebol do coração do pai. Nunca esqueceriam a primeira vez
em que o acompanharam ao estádio em Porto Alegre para assistir a um jogo do
tricolor gaúcho na arquibancada. O guri Marcos amava jogar bola, ler revista,
ver filme de pirata, caçar gafanhoto e imitar Nelson Gonçalves. Queria ser
cantor e até cantou na rádio local.
No final dos anos 1950, Rio Pardo tornou-se pequena para
ele. Mudou para Porto Alegre e mergulhou na efervescência da política
estudantil. Logo seria líder do grêmio do Colégio Júlio de Castilhos, o
“Julinho”, tradicional escola pública da cidade. Amigos dessa época, como João
Batista Marçal e Júlio Mariani, recordam o adolescente Marcos como um agitador inflamado,
vestido com um capote cinza, enfrentando direitistas em congressos estudantis.
“Um guri explodindo em rebeldias, que se joga de cabeça em todas as lutas de
seu tempo.” Foi assim que conseguiu o primeiro emprego.
Numa tarde de 1960, Marcão foi entregar um manifesto do
grêmio ao jornal Última Hora (que depois se transformaria em Zero Hora). O
chefe de reportagem, Flávio Tavares, achou o texto bom demais para ser ter sido
escrito por estudantes e perguntou quem era o autor. Ao saber que estava diante
dele, não perdeu tempo: “Quer trabalhar como repórter da geral?”, convidou.
“Pode ocupar aquela máquina de escrever lá no fundo e começar agora mesmo.” Aos
17 anos, sem cédula de identidade nem carteira profissional, Marcão teve de
apresentar uma autorização do pai para ser contratado.
Os anos pré-1964 eram de esperanças e utopias. O jovem
repórter e sua turma são seduzidos pelos ideais do PCB (Partido Comunista
Brasileiro), o Partidão, e vivem o sonho revolucionário comunista. No Julinho e
na Faculdade de Direito da UFRGS, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
que ele deixaria sem concluir, Marcão ganha fama de contestador, participante
ativo das aulas de filosofia e história e uma pedra no caminho de professores
burocratas. Os meninos comunistas sonham em ter armas para fazer a revolução.
“A arma do Marcão era a palavra, que jorrava aos borbotões, nas esquinas, nos
colégios, nas assembléias, nos bondes. Sempre com os jornais sob o sovaco,
repetia a frase da Passionária: ‘Não passarão’”, lembra Luiz Pilla Vares.
Com um curto intervalo em 1963, em que tenta ganhar dinheiro
rápido vendendo enciclopédias – foi dissuadido pelo futuro editor de O Pasquim,
Tarso de Castro –, Marcão sabe que o jornalismo é para ele o meio mais
eficiente de subverter a ordem. E volta para Zero Hora, famosa escola de
jornalistas na época. Júlio Mariani o recorda como “um vendaval permanente a
atravessar a redação em todos os sentidos e direções, usina de idéias a
expelir, sem cessar, novas propostas de trabalho, reportagens sensacionais que
precisavam ser feitas com urgência, esquemas gráficos revolucionários, que
botavam tontos os diagramadores, editores e até o dono do jornal”.
Depois do golpe de 1964, muitos militantes do PCB rompem com
o partido e agrupam-se em diferentes tendências de esquerda. Marcão e seus
amigos vão para o POC, Partido Operário Comunista, de orientação leninista,
responsável pela vinda dele para São Paulo em 1968. O partido necessitava de um
quadro gaúcho na executiva nacional. Marcão é destacado para a tarefa. Além
disso, acenam-lhe com a possibilidade de integrar a equipe do Jornal da Tarde,
onde companheiros do POC tinham trânsito. O vespertino do Estadão era o jornal
mais inovador do país, um cobiçado campo de atuação para repórteres criativos e
ousados. Marcão aceita a proposta. A namorada, Marilza Taffarel, estudante de
Medicina em Porto Alegre e também militante do POC, decide interromper o
segundo ano da faculdade para acompanhá-lo na viagem. Tinham-se conhecido em
reuniões políticas em 1967 e se apaixonado. Em São Paulo, casariam e nasceria a
filha do casal, Laura.
A mudança para a capital paulista marca uma nova etapa na
vida de Marcos Faerman. É o início de sua trajetória iluminada no Jornal da
Tarde, onde desenvolveria um estilo único, recriando a grande reportagem em
textos nos quais combinava técnicas literárias e humanização de personagens, e
da edição de publicações de vanguarda que fariam história no jornalismo brasileiro,
como EX-, Bondinho e Versus. “Sem saber, começávamos a perder um militante, mas
o jornalismo ganhava um de seus melhores repórteres”, diz Luiz Pilla Vares.
Luis Fernando Veríssimo tem outra versão para a saída do
colega de Porto Alegre. Segundo conta, Marcão foi posto em ostracismo no Zero
Hora e acabou responsável pela página feminina patrocinada pela Margarina
Primor. Uma de suas obrigações era editar receitas de cozinha, trocando
“manteiga” por “margarina” sempre que a palavra aparecesse. Veríssimo acredita
que Marcão forçou sua própria demissão, deixando de fazer a troca e provocando
queixas sucessivas do patrocinador ao departamento comercial do jornal.
Conclusão de Veríssimo: “A Margarina Primor foi responsável pela ida do Marcão
para São Paulo. O jornalismo brasileiro deve muito à Margarina Primor”.
Nos 24 anos em que foi repórter especial do Jornal da Tarde,
de abril de 1968 a setembro de 1992, Marcão assinou 806 matérias, boa parte no
Caderno de Leituras publicado aos sábados, com textos de fôlego elaborados a
partir de pesquisas apuradas. Fez reportagens especiais e do cotidiano de todo
tipo e em todas as áreas, de polícia a política, de saúde a educação, de
cultura a futebol. Viajou pelo Brasil e países vizinhos da América do Sul como
enviado especial, escreveu matérias longas e curtas, cobriu assuntos relevantes
e banais. Viveu no JT o epicentro do new journalism no Brasil. Criado em 1966,
no mesmo ano da revista Realidade, esse jornal praticava a cultura do bom texto
e assimilava as inovações do jornalismo literário: o jeito de fazer perfis de
Gay Talese, a literatura da realidade de Truman Capote, as coberturas
humanizadas de John Reed, o texto enxuto de Hemingway. Revolucionário também no
visual, o JT tinha uma paginação ousada, com fotos estouradas nas páginas,
soluções gráficas inusitadas, casamento entre ilustrações e textos. A equipe
era jovem e talentosa, formada por nomes como Valdir Sanches, Fernando
Portella, Percival de Souza, Moisés Rabinovich, Fernando Mitre, Elói Gertel
etc.
Marcão mergulhou de cabeça na proposta. Fez matérias
extraordinárias, como “O caso Bensadon”, em que investigou o desaparecimento de
uma modesta mãe de família de Itaquera e descobriu que tinha sido assassinada
por vizinhos ligados às forças de segurança da ditadura militar. Motivo: briga
entre os filhos por um carrinho de rolimã. A matéria resultou na prisão dos
culpados. O trabalho no JT deu a Marcão o Prêmio Unicef, em 1986, por uma série
sobre delinqüência juvenil, e dois
prêmios Esso: um em 1974, por “Nasceu o primeiro brasileiro pelo método
Leboyer” (categoria informação científica), e outro em 1975, por “Os habitantes
da arquibancada” (menção honrosa na categoria informação esportiva), enfocando
torcedores nos estádios de futebol.
Sobre Leboyer, o médico francês que, nos anos 1970, pregou a idéia de
“nascer sorrindo” – o parto humanizado, com procedimentos como música e luz
suaves, entre outros, para receber o bebê sem pressa nem tapas nas costas –,
Marcão declarou na época: “Gosto de escrever histórias a respeito de homens
como Leboyer, que acreditam que o mundo pode ser melhor do que é”. Mas o JT era
apenas um “emprego básico”. Paralelamente, sua carreira contabiliza a
participação e/ou a criação de inúmeros projetos de vanguarda.
Recém-chegado a São Paulo, alinhou-se com a patota de O
Pasquim (Tarso de Castro, Jaguar, Paulo Francis, Millôr, Ziraldo) e trabalhou
na sucursal paulista do irreverente jornal carioca. Em 1972, fez parte da
equipe da revista Bondinho, com jornalistas vindos da Realidade, como Sérgio de
Souza, Narciso Kalili, Woile Guimarães e Hamiltinho de Almeida Filho. Segundo
Marcão, Bondinho era “uma revista viajante, psicodélica, o equivalente na
imprensa ao tropicalismo, ao underground, ao teatro do Zé Celso Martinez. De
apreensão em apreensão, morreu em poucas edições”. O nanico seguinte foi EX-,
em 1973, que Marcão dirigiu por um período. Combinava a loucura tropicalista de
Bondinho com provocação política. A edição de estréia trazia na capa uma
foto-montagem de Hitler tomando sol como um nudista. O número 3 mostrava o
presidente americano Richard Nixon, envolvido no escândalo Watergate, com
roupas de presidiário. EX- foi fechado ao publicar um dossiê sobre o
assassinato do jornalista Wladimir Herzog nos porões da Oban, a Operação
Bandeirantes, em São Paulo. A edição de 50 mil exemplares esgotou e foram
rodados mais 30 mil, que acabaram apreendidos.
Marcão deixou o EX- para fazer Versus. O primeiro número
saiu em novembro de 1975. No início vendido de mão em mão, chegou a ter
distribuição nacional e tiragens de 35 mil exemplares. Era bimestral, passou a
mensal e voltou a ser bimestral. Circulou sob a direção de Marcão até o número
24, em setembro de 1978. Após sua saída, sairia até o número 34, em outubro de
1979. Para o jornalista Luís Carlos Eblak de Araújo, Versus fez basicamente
dois tipos de ruptura: a primeira, com o estilo de texto curto e objetivo da
grande imprensa, que começava a se consolidar e se intensificaria nas redações
na década de 1980. A outra ruptura foi temática. “Seu fio condutor, que
predomina da capa à última página, é a América Latina, tema pouco tratado pela
imprensa na época. O que vai amarrar a estrutura do jornal com suas reportagens
será um fato comum no continente: vários países da América Latina – Chile,
Paraguai, Uruguai e, em 1976, também a Argentina –, vivem regimes militares.”
Eblak de Araújo lembra ainda que Versus se propunha dar à
cultura um status que ela não possuía na imprensa brasileira. “Faerman não
aceitava que o jornal fosse caracterizado de ‘cultural’ ou ‘literário’. Para
ele, esses termos eram pejorativos. Segundo dizia, Versus tinha simplesmente de
expor a cultura de uma região geográfica (América Latina), a cultura dos
artistas, dos escritores e dos intelectuais latino-americanos.” Num editorial
de aniversário de Versus, edição 6, outubro-novembro de 1976, Marcão o define
como “um jornal sem vergonha de assumir a reflexão e a cultura, num momento em
que na grande imprensa, letras, artes e pensamento são relegados à condição de
‘variedades’”. No número 12, Versus acrescenta o selo “Afro-Latino-América”.
Nas edições seguintes, temas da política brasileira começam
a ocupar o primeiro plano e o jornal vai perdendo sua identidade original. Na
redação, militantes da Convergência Socialista – corrente de esquerda que se
consolidou em 1978 – defendem uma adesão clara a essa tendência, que acabaria
tomando conta de Versus. O número 24
publica a carta de despedida do editor Marcos Faerman (assinada também por
alguns colaboradores, entre eles a que aqui escreve). O tablóide viverá por
mais um ano, descaracterizado, dirigido por Jorge Pinheiro. “Marcão perdeu
Versus para a Convergência, o que marcou o começo do fim de sua militância”,
escreve Luiz Pilla Vares. “Versus foi o canto do cisne do Marcão político”, crê
o amigo, com uma certeza: “Marcão não era um político, movia-se mal nos
aparelhos, só se sentia plenamente à vontade diante de uma máquina de escrever
ou de seus livros e revistas invariavelmente amassados e sujos. Fim da
política, mas não de seu radicalismo, que sobreviveu sempre na ousadia de seus
textos subversivos”.
Lembro de uma manhã, nesses dias, em que fomos à sua casa, o
editor Hélio Goldenstein e eu, para dar-lhe um abraço solidário. Separado de
Marilza, Marcão havia mudado para um apartamento na rua Oscar Freire, em
Pinheiros, a poucas quadras da redação do Versus, onde a pequena Laura, uma
fadinha loira, com os cabelos longos e cacheados, costumava muitas vezes
visitar o pai. Esperávamos encontrar o guerreiro abatido com a derrota no Versus.
Marcão nos recebeu com olheiras, a barba por fazer, as roupas desleixadas, e
nos levou ao escritório num dos quartos. Na vitrola – sim, o tempo era esse –
estava tocando a mais recente composição de Caetano, “Sampa”. Mas os olhos
azuis do Marcão brilhavam. Não era tristeza. Empolgado, ele nos contou sobre
seu novo projeto, a revista Singular & Plural. Já tinha um local onde
instalar a futura redação e a garantia do patrocínio da editora Global durante
seis meses. Quem quisesse, que o acompanhasse. Ele ia começar tudo outra vez...
Em 16 de janeiro de 1980, no bar Persona, no bairro do
Bixiga, em São Paulo, os amigos foram cumprimentar Marcão pelo lançamento de
“Com as mãos sujas de sangue”, antologia das melhores reportagens publicadas no
JT e no Versus até aquela data. Marcão estava feliz com o nascimento do filho
Julio, de seu segundo casamento, com a mineira Maria Inês, e já havia
assimilado o fato de Singular & Plural ter durado apenas os seis números
garantidos pela Global. A revista, cuja primeira capa mostrava o renascimento
do teatro nos palcos brasileiros – fruto dos ventos que sopravam com a abertura
política –, não conseguiu anunciantes para ir adiante. A Editora Global também
editou o livro, o único que Marcão publicou em vida reunindo suas reportagens.
(Dois anos antes havia participado da coletânea “Violência e Repressão”, com os
colegas Fernando Portela e Percival de Souza). Foi esta amiga quem datilografou
em laudas de imprensa – sim, na máquina de escrever, era esse o tempo – as
matérias que ele escolheu como as mais significativas que havia feito. Muitas
vezes, nos anos seguintes, me ofereci para auxiliá-lo a organizar outros
volumes. Mas Marcão, de natureza dispersiva e agenda caótica, sempre adiava a
tarefa de selecionar as matérias.
Em entrevista ao JT de 16 de janeiro de 1980, ele fala sobre
sua obra: “Com as mãos sujas de sangue é um livro com 14 histórias brasileiras.
Eu poderia chamar estas reportagens de Os Miseráveis, se um certo Victor Hugo
não tivesse um livro com esse título... São histórias de um Brasil silencioso e
silenciado, que me fascina por sua pungente humanidade – e que há quase vinte
anos percorro como repórter. Percorro o Brasil urbano e o Brasil rural, esses
dois mundos, pelo Jornal da Tarde, onde tive um espaço aberto para escrever com
a razão e o coração. Descobri as ruas sórdidas de São Paulo, onde as
prostitutas se suicidam; percorri as delegacias; vi os corpos de bandidos e
policiais atirados na porta de bancos; estive com posseiros expulsos de suas
terras no litoral, em Trindade; vivi com os agoniados nordestinos, no sertão,
em plena seca; e vi como um homem pode vender a última coisa que tem, seja uma
bicicleta ou um disco de Agnaldo Timóteo; descobri que tribos de índios andam em busca da Terra sem Males e
que jamais a encontrarão. Por isso, de certa maneira, meu livro é uma proposta
de viagem por aqueles lugares que os turistas nunca visitam. Quem iria a
Alagados? Quem se interessa por aqueles homens que vivem em palafitas? O repórter
chega até eles – e descobre não só a miséria palpável, mas algo que se pode
chamar de a arte ou o milagre de sobreviver nas mais duras condições.
Sobre-viver. Viver apesar da vida. É isto que me comove nos ‘personagens’ do
meu livro.”
Depois houve outras revistas. Muitas. Shalom. Crisis (só um
número, em 1989). Uma revista para caminhoneiros cujo nome não recordo. Ícaro
Ponte Aérea, para ser lida nos aviões da Varig que voavam entre São Paulo e
Rio, e que nas mãos do Marcão se transformou numa publicação antenada e
original, como tudo que ele fazia. Antecipava tendências. Tinha idéias malucas
também. “Vamos colocar uma adolescente de 13 anos escrevendo sobre rebeldias
juvenis?” (Isso foi na Ícaro). O navegador Amyr Klink, na volta da primeira
travessia do Atlântico Sul num barco a remo, foi capa da Ícaro (Marcão achava-o
o máximo). Em outra capa, uma chamada sobre automedicação: “O país dos 130
milhões de médicos” (era a população do Brasil). Título em Singular &
Plural: “Cuidemos do corpo, que a alma está perdida”. Pautava matérias sobre
saúde preventiva e exercícios físicos quando ninguém ainda falava nisso; e
sobre terceira idade duas décadas antes de isto ser assunto na mídia.
Marcão não vivia só a política, estava ligado em tudo o que
acontecia no mundo. Era um editor cuidadoso, respeitador do texto alheio –
aquele com que todo repórter sonha para editar suas matérias. Podia sugerir
como melhorá-las, mas jamais o ouvi fazer uma crítica que não fosse
construtiva. Alfredo Sirkis diz que Marcão foi uma das figuras humanas mais
decentes e dignas que ele conheceu. Alguém generoso, “despojado do veneno da
inveja, que gostava de auxiliar nos projetos literários dos colegas. Sua maior
diferença com certa cultura de redação que se firmou ao longo dos anos era o
espírito de colaboração, o gosto pelo bom trabalho dos outros”, escreve o
jornalista.
Certa vez, eu conversava com um editor do JT sobre os novos
rumos que o jornalismo vinha tomando e ele lamentou que eu tivesse chegado
àquela redação “dez anos atrasada” (em 1982). Quando repeti para Marcão o que
ouvi, ele ficou indignado com o colega. “Não é coisa que se diga! Tu não vê o
quanto a frase é destrutiva, guria?”, explodiu, com o sotaque gaúcho que nunca
perdeu. Para ele, o jornalismo podia mudar o quanto fosse, mas sempre haveria
espaço para as gerações que estavam chegando. Em depoimento a alunos da
Universidade Santa Cecília (Unisanta), de Santos (SP), o jornalista Rivaldo
Chinem conta que, certa vez, Marcão lhe disse que fora elogiado “por um figurão,
não sei se Alberto Dines ou outro, como editor e não como repórter, o que para
ele era a glória, e isso pelo trabalho na Ícaro”.
Como repórter ou como editor, a carreira do Marcão foi
sempre norteada pelo que J. Luiz Marques chama de “uma reserva ética de
rebeldia” – na visão desse colega gaúcho, Marcos Faerman era “um rebelde
contra”, “militante do humanismo socialista”, que “honrava as melhores
tradições do jornalismo”. Mais adiante na entrevista ao JT, Marcão conclui a
apresentação do livro: “Meu coração se abre para os oprimidos. Meu livro é um
testemunho do Brasil dos nossos tempos e de todos os tempos. Acredito na
palavra e não posso ligar meu destino a nenhum sistema em que os homens e as
palavras sejam escravizados pelo ditador de plantão. (...) O jornalismo
humanista humaniza quem o escreve e quem o lê”.
Não era à toa que Marcão admirava Amyr Klink. O espírito de
aventura é, dizia ele, o alimento da alma do repórter. Quando falava “repórter”
referia-se ao que chamamos, seguramente, de jornalista-literário ou
jornalista-narrativo, mas que ele definia como “um ser em disponibilidade”,
aquele que sai em busca de histórias “do outro” e consegue colocar-se na pele
dele, ouvi-lo e emprestar-lhe sua própria voz. Aquele que “ouve com o coração”
e “conta a história que precisa ser contada”.
Marcão atribuía vocação documental e literária à reportagem.
Via-a como uma forma de conhecimento e um método de investigação da realidade.
“Um método que difere da historiografia, da sociologia e da antropologia, e tem
como centro a arte de investigar os fatos e saber descrevê-los. Isso se faz com
melhor ou pior qualidade, dependendo da formação cultural de quem escreve.”
Pregou incansavelmente a busca dessa qualidade. Repetia, invocando Roland
Barthes, que a reportagem deve operar com o fascínio que só é gerado pelo
“prazer do texto”. Leitor voraz, Marcão se considerava um “rato de sebos e
bibliotecas”.
Comprava livros e revistas em espanhol, francês, inglês e
italiano – idiomas que aprendeu lendo. Não admitia um jornalista que não
tivesse devorado uma lista básica de uns quarenta títulos, a começar dos
clássicos de literatura juvenil, passando por Dostoievski, Camus e John Reed,
até autores do new journalism, como Truman Capote, Tom Wolfe e Gay Talese. Era
fascinado por aventureiros de todas as épocas, tanto autores como personagens.
Amava Melville e a baleia Moby Dick. O garoto Jim Hawkins, de “A Ilha do
Tesouro”, de Stevenson, escondido num barril de maçãs no convés do navio
pirata. Daniel Defoe e o seu “Robinson Crusoé”. O jovem Jack London pendurado
num vagão de trem, correndo atrás de histórias. E Sherlock Holmes, Júlio Verne,
James Bond, Ernest Hemingway, correspondentes de guerra e...
E, séculos antes deles, Heródoto, que ele dizia ser o pai da
reportagem e não da História. Esse grego nascido em 484 a.C., que “se dedicou a
percorrer, sem preguiça ou tédio, os limites do mundo da época”, era para
Marcão o exemplo ideal do repórter. Viajando pela Babilônia, Assíria, Pérsia,
Egito, África, navegando pelo Mar Negro e pelo rio Nilo, Heródodo teria
explorado seu tempo, na interpretação dele, como o enviado especial de uma
publicação faz agora. Outro de seus ídolos era o jornalista francês Albert
Londres, que “tinha de seu apenas um quarto, uma filha chamada Florence e uma
mala sempre pronta para viajar”. Nos anos 1920, escrevia histórias reais em
série, como folhetins. “Dramas que traziam para as páginas dos jornais a vida
num presídio de Caiena, o tráfico de prostitutas de Marselha a Buenos Aires, as
proezas dos pescadores de pérola em Java ou a fuga de judeus da Europa para a
Palestina.” Londres morreu como viveu: o navio em que viajava para o Oriente,
na década de 1930, foi a pique após um incêndio a bordo. Marcão gostava de uma
passagem atribuída ao lendário repórter. Certa vez, ele teria ouvido do diretor
de um jornal no qual iria trabalhar: “A linha do nosso jornal é...”. Indignado,
recolheu o chapéu e a bengala e foi embora, dizendo: “Quem tem linha é trem”.
Marcão também detestava trilhos. Trabalhar numa reportagem
era um exercício de liberdade. Vivia cada matéria como uma viagem
extraordinária, uma aventura que começava com a pauta (várias ao mesmo tempo) e
era saboreada em cada etapa: leituras, muitas; entendimento do tema, busca de
personagens. Envolvia-se sinceramente com as histórias que ouvia e aprendia
sobre todos os assuntos nesse processo. Não sossegava enquanto não tivesse
clareza sobre o “abre” da matéria. Pensava em voz alta sobre o tema. Todo mundo
sabia no que estava trabalhando, pois falava no assunto sem parar, sempre
empolgado.
Nos bons tempos do JT, repórteres especiais podiam ficar
semanas com a mesma matéria, mas sua prática em campo era igual se tivesse de
entregar o texto no dia. Beatriz Marques Dias, foca no Estadão no final dos
anos 1980, foi certa vez cobrir um incêndio numa favela. Era costume que cada
jornal do Grupo Estado enviasse uma equipe própria. “Pelo Estadão éramos vários
repórteres, pelo JT só o Marcão”, conta Bia. “Sozinho, ele nos deu um banho.
Descobriu histórias incríveis. Não sei como nem onde. Eu estava lá e não vi o
que ele viu.”
Na hora de escrever, Marcão era rápido. Passava por uma
espécie de surto, muitas vezes de madrugada, pois sofria de insônia. “Ele tinha
um poder de concentração instantâneo: sentava a bunda na cadeira, atacava
furiosamente as teclas e só parava com o texto prontinho e, pasmem, sem
necessidade de muita mexida ou revisão. Esse virtuosismo noturno sempre encheu
de admiração escritores espasmódicos e matinais como eu”, lembra Sirkis. Mas às
vezes as idéias não fluíam. Marcão chegava da rua e ficava horas agoniado
diante da máquina de escrever. “Escrevia três ou quatro linhas, não gostava,
rasgava o papel e começava tudo de novo. Dava um tapa na cabeça e reclamava:
‘Estou bloqueado!’ O bloqueio poderia durar minutos, horas ou dias, mas, uma
vez superado, surgia a euforia do repórter, um crítico rigoroso de seu próprio
trabalho”, lembra o colega Luiz Carlos Ramos.
Uma das últimas matérias em que Marcão trabalhou foi sobre
“Água”, para a revista Educação. Juliana Monachesi, aluna da Faculdade Cásper
Líbero na época, relata que, dias antes do infarto que o matou, Marcão havia
ligado ao editor para dizer, eufórico: “Já tenho o lide! Vou descrever um
cenário futurista em que as pessoas se digladiam pelo produto mais valioso da
Terra: a água”. Entre os pertences que o jornalista João Marcos Rainho
recolheria mais tarde da cabeceira do amigo morto estavam uns óculos quebrados,
muitos papéis e uma quantidade de livros com anotações feitas a caneta, como
era hábito de Marcão. Entre eles, o volume “Morte social dos rios”, de Mauro
Leonel, recém-chegado pelo correio, certamente para auxiliar na matéria.
E Marcão tinha também, infelizmente, aquele lado escuro,
sombrio, que “acabou abreviando o tempo dele”, diz Vitor Vieira, numa tristeza
tão funda que, oito anos depois, ainda não pôde abrir os originais do livro
sobre skinheads em que Marcão vinha trabalhando e que o sobrinho Julio Faerman
lhe enviou. Quando, exatamente, começou? A família e os amigos são unânimes em
situar o envolvimento de Marcos com as drogas no contexto dos anos 1970, em que
substâncias alucinógenas significavam novas experiências, criação, loucura.
Muitas das melhores cabeças usavam drogas naqueles anos. Já nos tempos da
redação de O Pasquim, Marcão havia se irmanado a Hamiltinho de Almeida Filho,
que morreria em 1993, em decorrência do uso de seringas contaminadas. “Marcão
não se iniciou nas drogas por ingenuidade”, revela a psiquiatra Marilza
Taffarel, ex-mulher de Marcão, a alunos de jornalismo da Unisanta. “A busca
pela quebra do cotidiano fez parte do processo criativo da época. As figuras
ideais dele, como o escritor americano Ernest Hemingway, eram do tipo que, ao
se deparar com a angústia da criação, se autodestruíam. Mas drogas e álcool são
traiçoeiros, viciam. Ele foi se arriscar. E ele arriscava muito.”
Na época da separação tumultuada da segunda mulher, Maria
Inês, por volta de 1985, o cunhado Vitor Vieira era chamado frequentemente para
mediar conflitos entre o casal. Ele e Marilena ainda viviam em São Paulo, com
as filhas Lisa e Lívia. A casa onde Marcão morava com a família, no bairro do
Sumaré – e na qual permaneceria por muitos anos depois que Maria Inês e Julio
mudaram para Uberlândia (MG) – era cenário das loucuras mencionadas por Alfredo
Sirkis. “Eram tempos boêmios, de esbórnia. Marcão pegava pesado na busca
frenética de experiências, vivências, prazer e angústia. A casa do Sumaré
passou a ser minha guarida em Sampa City. Ali rolava de tudo.”
Vitor Vieira também acredita que “a descida do Marcão no
fosso das drogas foi sintomática e emblemática de uma época. Fazia parte da
concepção de vida dele. Achava-se forte, poderoso. Era de uma onipotência
fantástica. Não aceitava tratamento. Dizia que tinha controle sobre tudo”.
Ouvi isso muitas vezes do próprio Marcão: “Na hora em que eu
quiser, eu paro”. Embora eu só tivesse pinceladas dessa outra vida dele “fora”
do jornalismo. “Tu é meu lado saudável”, ele dizia. Mas, de vez em quando,
deixava escapar uma história sobre traficantes que o perseguiam ou ligava
deprimido, com ressaca da vida. Tinha depressões homéricas nos anos 80.
Alternava estados de euforia com prostração. Nesses momentos de baixa,
queixava-se de que seu trabalho não era reconhecido. “Por que a Editora Abril
não me convida para dirigir uma de suas revistas?”, lamentava-se. Achava-se
injustiçado. Sentia-se um marginal tanto no ambiente jornalístico como no meio
acadêmico. “Os outros jornalistas me vêem como intelectual, e os intelectuais
me vêem como jornalista”, dizia.
Acredito que a queda tenha acontecido aos poucos, degrau por
degrau. No final da década de 1980 e início da de 1990, sucederam-se
acontecimentos infaustos em sua vida. Numa manhã de 1988, seu Henrique Faerman
pegou o lotação para ir trabalhar em Porto Alegre, como de hábito, e foi
fulminado por um infarto na calçada do escritório. Poucos anos depois foi o
caçula Marcel, “que fazia poesias e jogava uma bola finíssima”, segundo Vitor,
e fora diagnosticado com esquizofrenia aos 16 anos. Numa véspera de Natal,
despencou do quinto andar do apartamento em frente ao Parque da Redenção, na
capital gaúcha, e se esborrachou numa marquise – não se soube se foi acidente
ou suicídio.
Álcool, maconha e cocaína arruinaram a saúde de Marcão. A
artrose e a psoríase nas mãos, doenças com que vinha convivendo há anos,
agravaram-se e dificultavam-lhe a escrita. Uma infecção no pós-operatório de
uma cirurgia de catarata resultou na perda total daquela vista. A visão do
outro olho também estava ruim, mas ele relutava em operar, com medo de repetir
o insucesso da primeira cirurgia. Para ler, precisava do auxílio de uma lupa. A
esses infortúnios veio se somar a demissão do Jornal da Tarde, no final de
1992. Segundo o escritor e professor Adelto Gonçalves, amigo de longa data,
Marcão havia ficado dispendioso para o JT. “Ele era de outra época, passava
dias atrás de uma matéria. Por questões econômicas e por causa de uma visão
imediatista, mesquinha, a grande reportagem morria nos jornais brasileiros.”
Outro amigo do peito, o ex-editor do Jornal da Tarde Moisés
Rabinovitch, que foi correspondente internacional no Oriente Médio e com quem
Marcão dividia as angústias pelas crises do povo judeu, aponta, além disso, as
drogas como vilãs da demissão. “Ele misturava álcool, picos na veia, maconha e
cocaína. Começou a perder os prazos de entrega das matérias e a ser visto como
um fardo na redação. A ligação do estar drogado com o estado criativo matou o
Marcão. Era um sujeito brilhante, não precisava disso”, lamenta Rabinovitch aos
alunos da Unisanta. “Eu tinha autoridade, ele me ouvia. Dei muitas broncas
nele, mas não tive poder suficiente para fazê-lo abandonar o vício.”
Rodolfo Konder, que ocupava o cargo de secretário municipal
de Cultura na ocasião, estendeu o braço ao amigo, levando-o para dirigir o
Departamento do Patrimônio Histórico, subordinado àquela secretaria da
Prefeitura de São Paulo. Marcão esteve à frente do departamento de 1993 a 1995.
Foi lá que encontrou Nina, funcionária da casa, iniciando com ela a relação
redentora que teve no final da vida. Tinha chegado ao fundo do poço com a
terceira mulher, uma certa Vânia, viciada em crack, que conheceu no submundo.
Os rompantes tenebrosos da moça afastaram a família e muitos amigos do seu
convívio. “Laura ficou um ano brigada com o pai”, conta Vitor. Marilza e a
filha tiveram de trocar várias vezes o número do telefone para não ser
incomodadas. O mesmo precisou fazer Nina, a quem Vânia intimidava com ameaças
tanto em casa como no trabalho. Inconformada com a separação de Marcão, Vânia
um dia deu um escândalo de tal proporção na frente do edifício público que
tiveram de interromper o expediente.
Adelto Gonçalves recorda que esteve com Marcão em 1997, na
redação da revista Educação, e ficou triste ao vê-lo “um pouco gordo, com
artrose e cego de um olho”. Deprimido, sofria com a morte da mãe e da irmã e
com as dívidas pendentes da casa do Sumaré. Vitor conta que Edmilson Cardial,
dono da Editora Segmento, foi quem quitou os débitos. “Edmilson era nosso
companheiro no Estadão e apoiou muito o Marcão naquela fase difícil”, confirma
Adelto. No encontro em 1997, Marcão mostrou-se arrasado com outra loucura de
Vânia. “Ela havia jogado água em seus livros”, conta Adelto. “A biblioteca era
o que ele mais queria. Portanto, aquilo havia sido uma ofensa muito grande, a
mulher havia atacado exatamente em seu ponto mais vulnerável.”
Eu não cheguei a ver Marcão nesse estado. Sabia dele pelos
amigos e sentia um grande desânimo. Não nos falávamos desde 1993, quando ele me
anunciou seu desejo de se atirar de uma ponte sobre a Avenida Sumaré e perdi a
paciência. Discutimos. Ele ficou furioso. Vi-o pela última vez um ano e meio
depois, na Bienal do Livro de 1994, no pavilhão no Parque do Ibirapuera onde
estava acontecendo a entrega do Prêmio Jabuti. Reconheci de longe sua figura
alta e desengonçada. Estava mais gordo, parecia cansado. Os cabelos tinham
ficado completamente brancos. Senti vontade de abraçá-lo. Saí do meu lugar e fui
abrindo caminho na multidão, mas havia gente demais e demorei um pouco. Quando
cheguei à frente do auditório, ele já tinha sumido no meio do povo.
Só depois da morte de Marcão pude saber que – ao menos
quanto ao desejo dele de ser respeitado na academia –, suas mágoas não
procediam. Em 1996, a paraibana Sandra Regina Moura defendeu dissertação de
mestrado no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas
da Universidade Federal da Bahia, UFBA, sobre a narrativa de Marcos Faerman,
abordando a relação entre jornalismo e literatura em duas grandes reportagens
publicadas no JT nos anos 1970: “O caso Bensadon” e “Ah, esse Rio de Janeiro
nos tempos de D. Pedro”.
“Entrevistei longamente o Faerman para o meu trabalho”,
conta Sandra. “Conversamos durante uma semana inteira, em São Paulo, no final
de 1994.” Os encontros foram no Departamento do Patrimônio Histórico. Sandra
recorda que Julio, o filho adolescente, estava presente e que Marcão usava uma
grande lupa para localizar textos nos dois volumes encadernados que trouxera de
casa, com cópias de suas reportagens preferidas no JT. “Foi ele quem sugeriu as
matérias para análise. Depois da defesa, mandei um exemplar da dissertação para
ele. Aí vieram os desencontros, ele saiu da direção do Patrimônio Histórico e
perdi o contato. Mas o Igor Fuser me disse que ele leu e gostou do trabalho.”
Mais tarde, em setembro de 2002, quem fez parte da banca de
doutorado de Sandra Regina Moura na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC), onde defendeu tese sobre o trabalho de Caco Barcellos, foi a
professora Terezinha Tagé, do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, ela também uma admiradora de Marcos
Faerman. Terezinha brinca que Marcão foi o real “orientador” dela no doutorado,
pois lhe forneceu um rico e farto material sobre seu objeto de estudo, a obra
jornalística do teatrólogo Jorge Andrade. “A prática de Marcos era fruto das leituras
que ele incorporou”, acredita Terezinha Tagé. “Antes do Novo Jornalismo, a
idéia corrente era a de que quem tivesse talento faria literatura, quem não
tivesse faria jornalismo.” Terezinha ressalta a importância da presença de
Marcão na banca que aprovou a tese de doutorado de seu colega Edvaldo Pereira
Lima, “Páginas Ampliadas: o livro- reportagem como extensão do jornalismo e da
literatura”, em 1990, na USP. “Marcos ficou feliz por Edvaldo ter trazido para
a universidade a História da Reportagem, algo que ele queria fazer”, ela conta.
O professor Edvaldo Pereira Lima explica que foi possível
indicar Marcão como examinador – um autodidata sem diploma universitário –
porque, quando se trata de doutorado, permite-se que um dos cinco membros da
banca seja pessoa de “notório saber”, desde que aprovada pelo orientador.
Edvaldo sabia que seu orientador, Francisco Gaudêncio Torquato do Rego, gostava
do trabalho de Marcos Faerman. Edvaldo também era velho admirador dos textos de
Marcão. Conheceu-o primeiro como leitor quando, em 1971, com 20 anos de idade,
fazia bicos no jornalismo para custear a faculdade de turismo. “Lia muito o
Jornal da Tarde, era meu favorito. E acompanhava também a produção da imprensa
nanica.”
Em 1976, na função de assessor de imprensa de uma
universidade, Edvaldo organizou o 1º. Campeonato de Pipa de São Paulo no
autódromo de Interlagos. E o JT destacou Marcão para fazer a matéria. Então
pôde observar, em campo, como o repórter trabalhava. “Marcos era um homem
grande. Eu o vi sentado no gramado, curvado, consolando com delicadeza uma
criança que chorava. O menino havia perdido a pipa por deslealdade de um
concorrente, que cortara seu barbante com cerol. Da conversa de Marcão com esse
garoto surgiu a matéria de capa do Jornal da Tarde no dia seguinte”, lembra.
Para Edvaldo, ter Marcos Faerman em sua banca de doutorado
foi uma forma de homenagear aqueles que mantiveram vivo o espírito do
Jornalismo Literário, na prática, dentro nas redações. “Uma homenagem da
academia não só a ele, mas a toda uma estirpe de grandes repórteres”, diz.
Também em 2002, o jornalista Luís Carlos Eblak de Araújo, que havia escolhido
Versus como objeto de pesquisa, defendeu a dissertação de mestrado em História
Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, sob orientação
da professora Maria Aparecida Aquino, com o título “O Versus e a imprensa
alternativa: em busca da identidade latino-americana (1975-1979)”.
O clima era de turbulência na Faculdade Cásper Líbero em
meados de 1996. Alunos sem aula há semanas discutiam nos corredores,
enfrentavam diretores no grito, faziam manifestações na Paulista. A turma
rebelde custou a reparar na figura exótica que esperava para iniciar a aula. O
novo professor era um velho de cabelos brancos e encaracolados, a barba por
fazer, óculos tortos, roupa desleixada, uma pilha de papéis na mão e uma bolsa
a tiracolo encardida e pesada, da qual – souberam depois – nunca se separava.
Estava cheia de livros. Ele a jogou na mesa e, do alto de seus 1,90 metros de
estatura, anunciou: “Com essa gritaria vocês pensam que vão fazer a revolução?
Eu sou a revolução!” E, diante do espanto da classe, completou: “Minha aula só
assiste quem quiser. Quem não estiver a fim, foda-se, pode sair que eu dou
presença e passo de ano. Aqui só ficam os futuros jornalistas!”.
Como outras histórias na vida do Marcão, é provável que sua
estréia como professor tenha outras versões – que, de tanto ser repetidas,
adquirem vida própria e status de definitivas. Como sua distração ontológica,
por exemplo (entortou os óculos de Rivaldo Chinem num abraço), ou o caso do
livro que teria devolvido ao dono com uma fatia de mortadela marcando as
páginas. (Alguns dizem que a vítima foi Rabinovitch e que o embutido não era
mortadela e sim salaminho. Já Veríssimo acha que Marco Aurélio Garcia, colega
de Zero Hora, é quem teria inventado a história, ao ver o Marcão atrapalhado
tendo de abrir uma porta e sem saber o que fazer com um livro e um sanduíche).
Mas neste caso posso jurar que nenhuma versão passa longe da
que é contada por alunos e professores da Cásper em artigos de jornais,
revistas, sites na internet e na comunidade criada por fãs do “Mestre Faerman”
no Orkut. Posso jurar porque esse é o Marcão que eu conheci. Posso reconhecê-lo
na reunião de pauta narrada por Juliana Monachesi Ribeiro, saltando de uma
idéia a outra com rapidez difícil de acompanhar, emendando o assunto ao de um
livro de Camus, um conto do Borges, uma matéria da Realidade, um evento da
história da Birmânia ou à Teoria do Caos. “Queria que seus repórteres
enxergassem mais longe e fossem mais ousados do que a faculdade e a vida
exigiam”, diz a aluna.
Ou no fechamento do
Esquinas de SP, jornal-laboratório que ele revolucionou, tanto
editorialmente, publicando poesias, quadrinhos e matérias apuradas em profundidade,
como ignorando prazos da gráfica até a edição atingir a perfeição buscada.
Gustavo Vieira fala da caótica redação chefiada pelo mestre. “Originais
manchados de gordura entre pizzas noturnas, fotos espalhadas pelas mesas das
salas de aula, momentos mágicos. Criação era sua disciplina como professor
voluntariamente indisciplinado. Paixão era seu saber, de que precisávamos para
fugir do trágico destino de assessorias de imprensa.” Juliana Monachesi traz de
volta uma noite em que editaram o Esquinas até tarde. “Já era madrugada e
queríamos terminar tudo. Pois, quase de manhã, o Faerman não resolveu deitar no
chão e dormir em vez de ir para casa? ‘Não vou abandonar minha equipe! Vou
fazer como certos repórteres de antigamente que dormiam na redação, sentindo o
trepidar das prensas’”, conta ela.
O Marcão atrapalhado, desligado, hiperativo. Comprando
pilhas de jornais e revistas. Ensinando Fabio Diaz Camarneiro (como, vinte anos
antes, havia ensinado a mim) a não usar gravador em entrevistas. “Escreva o que
a pessoa disser... Se precisar, peça para ela repetir certos trechos... Não
tenha vergonha de pedir para ela soletrar nomes ou títulos de obras...”
Sou capaz de vê-lo atravessar a Paulista entre os carros,
sacudindo os ombros: “Eles que parem!!!”. E escapando de ser atropelado por um
ônibus, não fosse o puxão com que o aluno João Cassino o reconduziu à calçada.
“O buzu passou arregaçando, e o Marcão disse: ‘O filho da puta não parou!’”. E
posso enxergá-lo nos corredores com seus passos pesados, “elegantes como os de
um guerreiro”, como diz o diretor de jornalismo da Cásper na época, Marco
Antonio Araújo, seguido pelos devotos, esparramando papeizinhos pelo chão. “A
voz forte tonitruava citações eruditas, lembranças incríveis, histórias
inventadas, projetos insanos, ternuras despejadas”, recorda ele. “Tinha
defeitos maravilhosos, como não preencher diários de classe, dar notas ou
organizar agendas. O cabelo despenteado, o sorriso e o abraço largos e
grandalhões. Ele dava beijos em ponta de faca. E murros em máquina de escrever.
Viveu como poucos suportariam – e morreu, o que parecia impossível.”
Às vezes ainda acho difícil conceber o mundo sem o Marcão.
Mas é reconfortante saber que, no fim da vida, ele renasceu das cinzas e
reencontrou seu brilho fazendo algo que tanto sabia: ensinar. “O contato com os
estudantes rejuvenesceu seus ideais de lutar por uma causa justa, de deixar sua
marca em uma nova geração, de editar um jornal-laboratório inovador. ‘Quero
fazer um puta jornal, essa garotada vai aprender como ser um repórter de
verdade!’ Tinha orgulho de enumerar uma dezena de alunos que já estavam
trabalhando na profissão”, lembra João Marcos Rainho.
Recuperou o senso de humor. Ao mencionar fatos de sua vida,
exagerava na dose e contribuía para perpetuar mitologias que alimentavam certo
folclore em torno dele. A operação de catarata mal-sucedida, que resultou na
perda de um olho, transformou-o no “bardo caolho”, que os alunos julgavam
vitimado pela tortura no regime militar. Também teriam sido atingidas “aquelas
mãos sofridas” de que fala Luciana Oncken, perguntando-se: “E as mãos
castigadas, calos em todos os dedos... Seriam de tanto bater a máquina? Seriam
marcas de tortura?”. Gustavo Vieira responde no Orkut: “Os dedos tortos traziam
sua história. ‘Este foi quebrado pelos militares, nos porões da tortura, quando
eu militava no POC – Partido Operário Comunista. POC era o som dos martelos dos
proletários nas fábricas’, contava entre gargalhadas”. Vitor Vieira garante
que, embora Marcão tenha sido detido durante dois meses, entre 1971-72, em
razão dos vínculos com o POC, não deixou a prisão com ferimentos nem sequelas.
Divertia-se com suas próprias histórias. Periodicamente,
conta Fabio Diaz Camarneiro, brindava os alunos com uma pergunta feita em tom
dionisíaco: “Alguém sabe o que é encher a cara de uísque e deitar nu no chão da
cozinha, lendo Ernest Hemingway?”. Segundo Fabio, o final comportava variações:
“lendo Jorge Mautner”, “lendo Rimbaud em voz alta” etc. Cobrava leitura dos
alunos. Ensinava-os a criticar a tendência das notas curtas, publicadas sob a
desculpa de que o leitor não tem tempo para ler. “O que o Faerman não atinava
era com a idéia de que alguém não tivesse tempo para ler. Para ele, era como
dizer que fulano não tem tempo para respirar, ou que outro não come há seis
meses porque não deu tempo”, diz Fabio Camarneiro.
E foram esses estudantes que formaram a maior parte do
cortejo que, na manhã de 13 de fevereiro de 1999, foi velar o Mestre Faerman na
sede do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Era carnaval, havia
muita gente viajando. O jornalista Audálio Dantas e o poeta Cláudio Willer
fizeram discursos emocionados. A certa altura, alguém lembrou de colocar sobre
o corpo uma camisa do Grêmio. Na noite anterior, a notícia havia atropelado
Vitor Vieira na chegada ao litoral gaúcho, com as filhas e a neta, onde iam
passar os feriados. Voltou a Porto Alegre para buscar Mauro – agora o único
irmão sobrevivente. Não havia mais vôos disponíveis. Os dois viajaram para São
Paulo de carro, na contramão do trânsito, durante 18 horas seguidas. Chegaram
quando o caixão já estava baixando no crematório de Vila Alpina, para dar-lhe o
último adeus.
Marcão havia pedido para ser cremado. Os judeus não enterram
mortos aos sábados nem permitem a cremação. Mas o amigo e rabino Henri Sobel
compareceu ao velório no Sindicato dos Jornalistas. “Estou aqui não porque
morreu um judeu, mas porque morreu um homem”, disse no discurso fúnebre. Também
conforme o desejo de Marcão, as cinzas foram divididas ao meio e jogadas nos
dois rios de sua vida: o Tietê, em São Paulo, e o Guaíba, em Porto Alegre.
“Enterrem meu coração na curva do rio”, ele costumava dizer, brincando. Nina se
emociona quando lembra a cena. “Eram as cinzas de um vulcão...”
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