Mouzar Benedito (*)
A pergunta que faço aos militantes do movimento “Não vai ter
Copa”, e aos não militantes também, é essa: se esse movimento tiver sucesso e
não acontecer a Copa do Mundo no Brasil, o que acontecerá? Que resultados
teremos?
Compartilho com todo esse pessoal a indignação com o destino
de muitos bilhões de reais para um evento efêmero, indo boa parte dessa grana
parar nas contas bancárias de empreiteiras mutreteiras, políticos safados,
mercantilizadores do esporte e instituições imperiais corruptas e mandonas. E
acredito que idealizadores desse movimento sejam contra o capitalismo e odeiem
a Fifa e a CBF. Compartilho isso também.
Talvez eu precise tomar conhecimento do “e daí? O que
faremos em seguida?”, para poder embarcar nessa campanha também. Mas enquanto
não souber o conjunto todo da proposta, prefiro outras vias. Não sei se haverá
o que modernamente chamam de “empoderamento” do povo, se será criado um clima
para derrubada do capitalismo ou, pelo menos, se haverá uma mudança na política
brasileira que ponha fim a um Congresso vendilhão, que só funciona à base do
toma-lá-dá-cá.
COPAS PASSADAS NÃO
MOVEM MOINHOS?
Antes de voltar a discutir a Copa de 2014, gostaria de
lembrar de algumas outras copas que “presenciei” à distância.
Minha primeira Copa foi a de 1958. Tinha 11 anos de idade,
estudava na primeira série do curso ginasial e ganhava um dinheirinho vendendo
frutas e engraxando sapatos, morando numa cidade do Sul de Minas com cerca de
dois mil habitantes na área urbana.
Não tínhamos rádio, assim como a maioria da população. Numa
cidade em que o dinheiro circulava pouco, era difícil comprar qualquer coisa
industrializada que não fosse de primeira necessidade. Então, fomos todos para
a frente do cinema – isso mesmo, naquela época, uma cidade minúscula tinha
cinema! – ouvir a final Brasil X Suécia pelo alto-falante instalado ali. Uma
multidão vibrava na praça. E a conquista do campeonato foi como uma declaração
de poder, de tomada de uma autoestima inédita. Acabava-se o mito de que
brasileiro era perdedor por natureza.
Na Copa seguinte, de 1962, a conquista foi como uma
reafirmação dessa autoestima.
Em 1970, já morando em São Paulo e estudando na USP, com
ideias de esquerda – que preservo e até radicalizo –, no auge da ditadura,
havia também uma pedra no meio do caminho: se o Brasil vencesse, a ditadura ia
faturar em cima, ganhar mais popularidade. Por isso, corria a proposta de
torcer contra o Brasil. Mas durou pouco: assistimos e vibramos no pátio do
prédio de Geografia e História, todos os jogos do Brasil. E a ditadura
realmente faturou em cima. Enquanto se torturava e matava opositores do regime
nos porões da ditadura, ouvia-se direto a música “Pra frente, Brasil”. Mas até
os presos políticos, em boa parte, torceram pela seleção, que jogou bem e
bonito, mereceu vencer.
Em 1982, na Espanha, a seleção jogava bonito como nunca, mas
perdeu. Foi uma tristeza imensa, mas até hoje se reconhece o valor daquele time.
Acredito que pelo menos o pessoal um pouco mais velho se lembra dela com mais
saudade do que das seleções vencedoras de 1994 e 2002. E a perda serviu para os
burocratas do futebol se dedicarem a exigir um abandono do chamado
futebol-arte, imitando o futebol-força europeu. Uma pena. Quando o Barcelona se
tornou o time que vencia jogando bonito, o técnico disse que estava fazendo com
o time simplesmente o que aprendeu vendo o Brasil jogar “antigamente”.
VOLTANDO A 2014
Acredito que se, há seis ou sete anos, houvesse um
plebiscito para decidir se o Brasil disputaria o direito de sediar a Copa do
Mundo de 2014, o sim venceria fácil. Pouca gente era contra.
Mas se fôssemos informados de todas as condições que a Fifa
impôs e o governo brasileiro aceitou, de nos submetermos a essa instituição
imperialista como colonizados sem vontade própria, obedientes e subservientes,
aí sim, acredito que o “Não vai ter Copa” seria quase unânime.
O Brasil se submeteu. Numa linguagem vulgar, abriu
totalmente as pernas. A Fifa manda e desmanda. Para começar, houve a escolha
das cidades que sediariam os jogos. A Fifa impôs o que quis. Por que escolher,
por exemplo, Natal, que não tinha um estádio à altura, nem tanta torcida, além
de ser relativamente perto de duas sedes – Fortaleza e Recife – e deixar de
fora Belém, que já tinha um estádio pronto, “padrão Fifa”, na linguagem atual,
e além disso tem uma torcida enorme que freqüenta esse estádio para ver jogos
do Payssandu e do Remo?
Como torcedor do Internacional, que tem o Saci como mascote,
pergunto: por que deixar de lado um estádio pronto, também “padrão Fifa”,
recém-construído pelo Grêmio e ter que fazer um estádio novo, do Inter?
Como simpatizante do Corinthians, perguntou: por que deixar
de lado o estádio do Morumbi, que se fosse na Europa seria festejado pela Fifa,
e fazer um estádio do zero em Itaquera, com o custo de quase um bilhão de
reais, fora as obras do entorno?
E o caso do Maracanã? O estádio passou por uma grande
reforma para os Jogos Panamericanos, estava quase “zero quilômetro” e a Fifa
exigiu que fosse posto abaixo para ser refeito, a um custo de mais de um bilhão
e muitos problemas.
A grana tinha que rolar alto, não é? Quanto mais gastos,
mais lucros para a Fifa. E para empreiteiras também: é comum aqui ganhar uma
concorrência para fazer uma coisa por uma valor e a obra acabar custando muitas
vezes mais. Além disso, fazendo de propósito que a obra atrase, encosta-se o
poder público na parede: “Se não puser muito mais grana, não vai ficar pronto a
tempo”. Claro que os atuais assentados no poder não fizeram nada para mudar
isso. E claro também que a “culpa” tem muito a ver com o tão glorificado
empresariado, tratado como honesto e não sei que mais pela mídia e por uns babacas
que fingem acreditar que existem corruptos sem existirem corruptores.
E a questão “do” mascote (sei que mascote é palavra
feminina, mas ninguém fala “a” mascote)?
PERNETA, E DAÍ?
Mesmo sabendo que a Fifa (e a CBF também) encara o esporte como
um negócio, simplesmente, propusemos o Saci como mascote da Copa. Já expus
várias vezes o motivo. Em síntese, o Saci era um indiozinho guarani, foi
transformado em negro e ganhou o gorrinho mágico presente em mitos europeus,
então é uma síntese do brasileiro.
Nesses tempos em que se fala tanto em meio ambiente, o Saci
tem a vantagem de ser um protetor da floresta.
Nesses tempos em que se fala tanto em combate ao racismo, o
Saci tem a vantagem de ser negro. Aliás, maior parte dos jogadores brasileiros,
do Pelé aos pernas de pau, é negra.
Nesses tempos em que se fala tanto em aceitar as diferenças,
o Saci tem a vantagem de ser perneta. Mas apontam isso como um problema: como
chutar bola tendo uma perna só? Brinco: ele tem o apoio do redemoinho.
E mais: mesmo sendo pobre, negro (dois motivos para ser
estigmatizado nesta terra que muito teoricamente não tem preconceitos), o Saci
é brincalhão e alegre. Quer algo mais brasileiro do que isso?
Escolher o Saci como mascote da Copa seria um recado para o
brasileiro olhar para si mesmo, e com certeza não só ele, mas toda a mitologia
brasileira seria valorizada, estudada aqui e divulgada fora daqui.
Mas o Saci tem uma qualidade a mais, que para a Fifa e a CBF
é um defeito: ele é um personagem pronto. Não seria preciso pagar milhões para
uma agência de publicidade… mas também não seria possível cobrar royalties por
ele. Qualquer pessoa ou grupo criaria a sua imagem do Saci em camisetas, por
exemplo.
Milhares e milhares de pessoas mandaram mensagem para a CBF
propondo o Saci como mascote, mas os burocratas comerciantes do futebol não
deram nenhuma resposta. Chegamos a pedir que nos explicassem que critérios
usariam para escolher o mascote, mas nem deram bola. Nunca falaram sobre isso.
É próprio dela e da Fifa. São instituições que se julgam no direito de não
precisar dar respostas a ninguém.
Enfim, escolheram o que queriam, mas só depois de patentear
os possíveis nomes que o coitado do tatu-bola teria. Muitos bobalhões votaram
pela internet, como se estivessem decidindo alguma coisa, para ele ter o
fuleiro nome de Fuleco.
Se o Saci não podia ser escolhido por ter uma só perna, o
coitado do tatu-bola entra numa situação pior: bola é para ser chutada, não
para chutar. E tem esse nome infeliz. Fuleco!
O certo é que acredito que se o Saci fosse mascote, milhões
e milhões de brasileiros (além de estrangeiros também) estariam usando
camisetas com algum desenho dele com a bola no pé, na cabeça ou no redemoinho.
Alguém viu por aí uma camiseta com o Fuleco?
Ah, falam que a escolha do tatu-bola, um animal em extinção,
ajudaria as instituições que o pesquisam e tentam fazer que sobreviva,
receberiam muito apoio. Uma boa causa, enfim. Mas aconteceu? Vi recentemente
nos jornais que a instituição que propôs a escolha do tatu-bola não recebeu um
centavo.
SEM COPA?
Volto agora à possibilidade de não ter Copa.
Nem ponho em questão coisas do tipo “como ficará a imagem do
Brasil no exterior”. Será que o capital, as empreiteiras, a Fifa e os corruptos
em geral seriam atingidos de alguma forma? Será que alguém acredita que o
dinheiro gasto (desperdiçado, na maioria) voltará automaticamente e será usado
para construção de casas populares e melhoria dos sistemas de educação e de
saúde? Será que os corruptos e corruptores serão identificados e punidos? Será
que caminharemos para um sistema econômico mais democrático?
Acredito que o movimento “Não vai ter Copa”, seja mais para
“Vai ter Copa, mas com protestos”. Impedir totalmente a sua realização, agora
que já houve a gastança toda, me parece que significa perder mais ainda.
Então, pelo menos provisoriamente, minha ideia é que a Copa
não só aconteça como seja muito legal, e que a seleção brasileira jogue bem e
bonito, e ganhe sempre.
Isso não implica em apoio à Fifa, à CBF, aos que se locupletam
superfaturando obras, aos oportunistas nem nada. Que o movimento continue e
cobre tudo isso.
Se houver um movimento pós-Copa para que se realize o que
ele propõe hoje e vá até muito além, estou dentro, sem perdoar quem quer que
seja. Que o Brasil tenha e seja tudo o que querem os ativistas do “Não vai ter
Copa”.
Mas não contem comigo para “protestar” depredando pequenos
comércios, como bancas de jornais (isso é contra o capitalismo?) e provocações
inúteis. Vamos direto ao ponto, contra os que mantêm o sistema econômico e
político atual, as injustiças em geral. Contra eles, “tamos aí”.
E não contem comigo, também, para participar de movimentos
com nome em inglês. Black, red, seja que cor for, é coisa deles e imitar gringo
me parece que é voltar à estaca zero, ao tempo em que ser brasileiro era ser
sinônimo de perdedor por natureza. Não que os movimentos gringos sejam em
princípio ruins, mas são deles, e pronto. Nos tempos da ditadura e da Guerra
Fria, o então ministro Juracy Magalhães disse uma frase que ficou célebre como
postura submissa: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
Isso me causa ojeriza até hoje.
SONHANDO UM POUCO
O “Não vai ter Copa” poderia ir um pouco além e conquistar
algumas coisas relativas ao próprio esporte.
Um exemplo: é difícil torcer pelo Brasil sem termos
jogadores atuando aqui. Foi-se o tempo em que nos identificávamos com os
atletas do Santos (Pelé, hoje estaria nesse time?), do Corinthians (viva
Sócrates!), do Botafogo (nossa: nele jogaram ao mesmo tempo, Nilton Santos,
Garrincha e Didi, depois teve o Gerson), do Flamengo (com Zico e muitos
outros), do Cruzeiro (que timaço, com Tostão, Dirceu Lopes e Joãozinho!), do
Internacional (time de Falcão)… Agora, para gostar de um jogador é preciso assistir
a jogos do Barcelona, do Real Madrid, do Manchester, do Milan e até times da
Ucrânia. Não tem graça.
A mercantilização do esporte manda todos os que se destacam
para a Europa, então o futebol daqui fica cada vez mais pobre, embora também
mercantilizado. E isso não acontece só com o Brasil. Basta dar uma olhada nas
escalações de várias seleções para ver que poucos atuam em seus países. Não
seria o caso de chamar só jogadores que atuam dentro do país?
Certo, o jogador tem o direito de ir pra Europa ganhar
dinheiro, mas teria como opção ganhar aquela grana toda ou ter a possibilidade
de jogar na seleção. Podem dizer que nossa seleção ficaria muito mais fraca. E
daí? Perder por perder, melhor perder decentemente. Duvido que se na Copa da
África do Sul teríamos uma campanha pior do que a seleção do Dunga.
E tem essa coisa de ganhar uma grana exagerada. Fico
pensando: como pode um jogador de futebol ganhar num mês o que um trabalhador
comum às vezes não ganha na vida inteira? Em alguns casos, o cara ganha num
jogo mais do que um proleta em toda a vida. É justo? Poderão dizer: não, não é,
mas a coisa funciona assim. Ora, se queremos mudar tudo, com o povo
conquistando o poder e fazendo o que lhe é útil, essas coisas estariam na nossa
pauta também, não? Assim como apresentadores de televisão que ganham milhões
por mês. Vamos radicalizar: concessões de rádio e TV a grupos capitalistas e
políticos, privilégios em geral, reforma (preferiria dizer “revolução”)
política, lucros de empresas… Gostaria de ter Copa e mudar tudo isso. Inclusive
tomar da Fifa tudo o que ela está nos tirando e, se possível, acabar com ela.
(*) Mouzar Benedito,
jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de
um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em
Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na
USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros,
dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com
José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O
gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo
quinzenalmente, às terças.
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