Crítico
norte-americano é arquétipo a ser perseguido pelo jornalismo cultural — há
tempos relegado aos rodapés dos periódicos e pálido em suas econômicas
observações
Leandro Reis
Bangs. O sonoro quinteto heterogêneo, na língua inglesa,
sugere uma série de acepções. Em substantivo, pouco diz: franja de cabelo —
exceto se impelíssemos ao sentido a pecha de visual rock. Não é preciso. Quando
verbo (ou quando aspira a sê-lo), o termo vai longe, sem barras forçadas ou
caminhos nebulosos.
Foder, a princípio, é um dos significados mais notórios.
Basta árida navegada pela web, balizada em dialetos de inclinações sexuais, que
a palavra aparece harmonizada a corpos nus — ou em vias de —, devidamente
curvados em parábolas sintomáticas, em comitivas ou não. Geralmente, “bangs”
escora-se em “violar”, ou algo semelhante — é certo, em suma, dizer que não
estamos falando de romantismo.
Bang! Eis outro caminho: o disparo de arma de fogo, comum
como onomatopéia de conversas ou recurso narrativo em histórias em quadrinhos,
filmes, livros. Seus irmãos, todos calcados no ímpeto, na violência, no
aqui-agora, são o estrondo, a pancada, o pontapé. Há outros, mas estaríamos
afogados na redundância se continuássemos a elencar sentidos.
Bangs. A palavra de origem inglesa guarda mais ramificações
que um idioma pode aguentar sem soar arbitrário — na verdade, qual linguagem
não é, em seu âmago, despótica? Roland Barthes, na “Aula” (Cultrix, 2013),
disse que “esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda
classificação é opressiva”. Então é necessário que um nome, égide do indivíduo,
carregue-a: Lester.
Lester Bangs, santo beatnik. Morreu em 1982, aos 33, idade
de Cristo. Não foi crucificado, mas certamente alçado à cruz do jornalismo, no
subgênero gonzo, de qualidade extremamente contestada, ainda que tenha saído do
ventre do new journalism (Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote). A exemplo de
Hunter S. Thompson, escreveu motivado por substâncias psicotrópicas, em fluxo
vertiginoso, e pôs-se, muitas vezes, à frente do próprio objeto do texto — e
quem não está, prisioneiro de sua própria subjetividade, em posição soberana ao
alvo da análise?
Palavra não é propriedade privada, embora herdada, a
filigranas, pelas bocas da posteridade. Bangs comungou da hóstia libertária
norte-americana. Seu ethos discursivo — e por que não comportamental,
espiritual — nasceu do choque juvenil contra a ordem vigente: a contracultura,
construída de modo explosivo nos Estados Unidos sessentista. Antes ainda:
Lester é fruto de Kerouac, Burroughs, Ginsberg, estes sim genitores do que
viria a ser o movimento hippie, a constestação diante do injustificável Vietnã
e demais necessidades de ruptura.
Saiu da geração beat, ainda na década de 1950, o apego pelas
experiências, o desbunde psicotrópico, a sonoridade da língua em prosa, o
antiformalismo, enfim: tudo o que foi datilografado pelo crítico
norte-americano no seio da contracultura, na sujeira do rock’n’roll. Estão, em
seus textos, a sonoridade proposital do vernáculo, o encadeamento rítmico, o
olhar humano acerca do marginal. Linguagem perfeita é linguagem morta, disse
Carriere. Lester Bangs foi feito dos excessos: bruxuleava no parapeito
escorregadio do jornalismo musical, bailando sua pena suja diante dos
dinossauros do show business e do mundo estático das letras.
O humanista do vinil
Cabe breve histórico. O crítico chegou ao público pouco
depois de completar duas décadas de errática existência. Em 1969, publicou seu
primeiro artigo pela “Rolling Stone”, no qual já se via o espírito afeito à
doutrina, ao convencimento das retinas que o leem, particularidade que, segundo
o próprio autor, vinha de sua incursão juvenil obrigatória pelo âmago das
Testemunhas de Jeová — a vocação de “querer que as pessoas gostem da mesma
coisa que eu”.
Demitido da revista por cultivar rusgas com músicos, vai
para “Creem”, publicação mais anárquica e disponível para seus textos
transgressores. Ali, emprega, pela primeira vez, os termos “punk” e “heavy
metal”. Expõe, de maneira tórrida e textualmente espetacular, sua relação dúbia
com Lou Reed, pilar do ideal roqueiro construído com a ajuda de Bangs e sua
máquina de esculpir ídolos. Ainda publicaria, vez ou outra, na “NME” e no
underground “Village Voice”, antes de sucumbir a uma overdose de medicamentos,
já desgostoso com os rumos do rock’n’roll.
Escreveu sobre discos, e só. Mas ali havia muito mais do que
música. Ele escreveu rock, “que não é simplesmente o escrever sobre rock”, como
lembrou Wu Ming. Dedos frenéticos na máquina de escrever, ele militou pela
honestidade da música e perpetrou, entre as engrenagens das máquinas do
estúdio, o elemento humano que ali necessitava sobreviver. Certa feita,
costurou os tecidos de “Astral Weeks”, de Van Morrison, com observações de
humanidade extrema (se é que isso existe): “Oras, só estando afundado nas
perversões mais tépidas um ser humano poderia amar um outro por qualquer coisa
que não a sua humanidade: amá-lo por suas fraquezas, seus defeitos, e, por fim,
talvez, sua deteriorização.” Não é dispensável lembrar de Deleuze, quando diz
que “se não captar a pequena marca de loucura de alguém, não pode gostar deste
alguém”.
Lester Bangs era crítico — na acepção comum dada ao termo —
quando via algo fora do lugar. Aí, talvez, de seu deboche sofisticado, esteja a
fonte maior do prazer de seu texto, da “fruição”, como quis Barthes. Desse lado
impetuoso padeceram um sem-número de músicos em atividade entre o final dos
anos 1960 e começo dos anos 1980, época de sua produção. O Jethro Tull, ou o
que sobrou dele, ainda gira na própria órbita, carente de corrimão que ampare o
golpe desferido pela pena veloz de Lester Bangs. Seu problema era, de maneira
recorrente, lidar com o ascetismo do puro entretenimento. A banda de Ian
Anderson, a bordo do sucesso progressivo e megalomaníaco “Aqualung”,
representava a parte falha do rock: a automação, os penduricalhos como fins em
si mesmos. No texto sobre o show do Jethro, houve quem escutasse o direto na
ponta do queixo de Anderson: “Tudo o que importa é dar às pessoas um pouco de
cor e de movimento para assistir de modo que eles não fiquem irrequietos enquanto
escutam a música”. Bang!
Paralelo seguro e recente da pureza que Bangs pretende
elevar no rock é o grunge, derivado de uma espécie de reação à cafonice
oitentista de Bon Jovi, Motley Crue e demais cabelos cuidadosamente espichados,
prontos a entregar um ensaiado espetáculo de entretenimento, baseado em adornos
de figurino e recursos de palco — tudo em favor das imagens, das câmeras, do
sorriso voluptoso da garota afogada nos hormônios. Bandas sujas de Seattle
(Melvins, Soundgarden), por sua vez, chafurdavam na lama sonora, jogavam-se sem
armaduras na plateia, produziam catarse no altar do rock. Lester Bangs
aprovaria, certamente a bebericar líquido imoral.
Jornalismo que “frui”
(culpe Barthes)
A escritura de Lester Bangs deixa espaços, é um núcleo de
correspondências entre leitor e autor, ainda que a relação seja desigual —
ainda bem, visto que nossos olhos carecem da acuidade das mãos do roqueiro das
linhas. Com o tempero agressivo e a alma de franco atirador, ele devolveu ao
jornalismo os alicerces da crítica musical combativa, fundamental para músicos
e fãs até há pouco tempo. Impressa na superlativa frase de Greil Marcus,
escrita para introduzir uma coletânea de Bangs: “Talvez o que este livro exija
do leitor seja a disposição em aceitar que o maior escritor norte-americano
tenha escrito apenas análises de discos”.
Não se trata disso tudo, é claro. Faulkner, Hemingway,
Burroughs (desse Bangs é orgulhoso inquilino) e tantos outros guardam o Olimpo
da literatura norte-americana. Mas Lester Bangs é importante porque transformou
jornalismo em literatura e crítica musical em antropologia errante. Sua figura
ficou cravada no imaginário popular através da face do seminal Philip Seymour
Hoffman, ator-pele do crítico em “Quase Famosos”, de Cameron Crowe, jornalista
musical influenciado, a exemplo de Nick Tosches e Greil Marcus, pelo estilo de
Lester Bangs. Mais: Ramones e
R.E.M. o lembraram em canções — respectivamente “It’s Not My Place” e “It’s The
End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)”.
Na língua inglesa, Bangs tem uma biografia escrita por Jim
DeRogatis (“Let It Blurt”, 2000) e algumas coletâneas de artigos, publicadas
após sua morte. No Brasil, há apenas “Reações Psicóticas” (Conrad, 2005), com
alguns textos extraídos da edição norte-americana, que tem mais que o dobro de
páginas. O volume em português é praticamente um panfleto, embora especialmente
precioso, visto que a tradução não suprime o sabor da estética, das gírias, dos
termos quase fora de lugar. A edição está esgotada, entretanto.
É preciso voltar a Lester Bangs. Embora suas páginas em
língua portuguesa estejam no cemitério, é possível espelhar no beatnik da
música o arquétipo libertário da crítica a ser perseguido. A presença árida da
crítica cultural nos veículos de comunicação é desesperadora, uma vez que, face
à enorme oferta de produtos culturais — muitos deles gratuitos, à deriva na
internet —, a mediação empreendida pelo crítico torna-se de assaz importância.
Relegada a espaços ínfimos ou à condição de “resenha”, a crítica perdeu, em
grande parte, seu conteúdo reflexivo e contestador. Basta lembrar que, em 2013,
o jornalismo brasileiro renunciou a duas publicações especializadas em crítica
cultural, a saber: o suplemento “Sabático”, publicado no jornal “O Estado de S.
Paulo”, e a revista “Bravo!”.
A solidão de sites de cultura pop que fazem, de fato, uma
crítica cultural reflexiva é aviltante. Hoje, escrever no sentido de expandir a
apreensão estética, discutir questões humanas por meio da música, enterrar quem
merece os sete palmos é tortuoso — não cabe nos escaninhos das editorias. As
resenhas de hoje não arrastam o leitor para um alhures funcional ou
substancial, ao contrário, fixam-se, de certa maneira, no instantâneo do
lançamento, quando não calham de pender para a agenda cultural; não mostram o
seu discurso, a nós só é possível fotografar o dorso das ideias que a
produziram, como se a ideologia só fosse possível disfarçada, entranhada como
contrabando nas bagagens dos resenhistas.
Criticar, mais do que nunca, é sinônimo de resistência.
Tótem dessa postura é Lester Bangs, alguém que tinha os culhões para verter
ideologias na máquina de escrever. De modo que é fundamental voltar a seus
textos, não só no sentido de analisar a constituição de seu discurso, mas
também de relembrar as possibilidades de uma crítica musical importante, sem as
amarras do mercado da empresa jornalística. Trinta e dois anos após sua morte,
a contribuição de Bangs para o jornalismo — e por que não para a literatura —
ainda está situada aquém de seu lugar de direito.
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