O historiador que
escreveu a biografia não autorizada do Rei lança uma obra com os bastidores do
processo que proibiu sua venda
Camila Guimarães
Aos 15 anos, o baiano Paulo Cesar de Araújo deixou sua
cidade natal, Vitória da Consquista. Decidira tentar a vida em São Paulo, com
um irmão e sua mãe, Alzenira. De origem simples, dona Alzenira queria que seus
filhos fossem algo mais do que ela. Desejava dar aos filhos melhores
oportunidades de estudo e a chance de entrar numa boa faculdade. Era 23 de
fevereiro de 1978, e o jovem Araújo carregava na bagagem discos, recortes de
jornais e revistas com notícias sobre Roberto Carlos, seu ídolo desde criança.
Ele ainda não sabia que naquela mala estava o embrião do
livro que escreveria quase 30 anos mais tarde, a biografia não autorizada Roberto Carlos em detalhes, lançada em
2006 pela editora Planeta. Muito menos
que seria processado por seu ídolo, que o acusou de má-fé e conseguiu que a
Justiça, em 2007, banisse o livro das prateleiras. Alegou invasão de
privacidade. Uma atitude medieval que flertou perigosamente com a censura e
colocou em risco a liberdade de expressão garantida pela Constituição
brasileira.
O equívoco de Roberto Carlos criou uma outra boa história
para Araújo nos contar. Em O réu e o Rei
– Minha história com Roberto Carlos em detalhes (Companhia das Letras),
Araújo – formado em história e jornalismo – conta, em 520 páginas, a primeira
vez que ouviu uma música do rei; como ela esteve presente, de forma marcante,
em sua infância e sua juventude; e como, mais tarde, norteou seu trabalho de
pesquisador da MPB. A narrativa mostra de que forma o mito Roberto Carlos foi
criado e sustentado por milhões de fãs Brasil afora, como Araújo, de origem
simples, até culminar no momento em que o grande ídolo se voltou contra o fã.
“Quando Roberto proibiu o livro, ele me deu um tema que não existia. Eu
precisava contar essa história”, afirma Araújo.
O destaque da obra é o capítulo em que Araújo descreve a
audiência em que esteve cara a cara com o Rei, em São Paulo, em abril de 2007.
Ali, Roberto Carlos afirmou: “Minha história é patrimônio meu”; “Livro é um
documento, é algo que fica para sempre”; e “Ninguém pode escrever minha
biografia sem minha orientação, porque ninguém melhor do que eu para contar a
minha própria história”.
Ao final, depois que os advogados da Planeta aceitaram o
acordo que proibia a venda do livro sem consultar Araújo, o juiz Térsio Pires
tirou de uma bolsa um CD de sua autoria e o entregou a Roberto Carlos. Disse:
“Também sou cantor e compositor, com o nome artístico de Thé Lopes. Gostaria
muito que você ouvisse esse disco e desse sua opinião sincera.” Horas antes,
durante a audiência, o juiz ameaçara fechar a editora Planeta.
Naquela mesma noite, dentro do ônibus de volta a Niterói,
onde vive, Araújo passou por suas piores horas. “Só conseguia pensar que 15
anos de pesquisa, as mais de 250 entrevistas, meu livro, tudo tinha acabado. Me
senti muito sozinho.”
Não poderia estar mais enganado. Logo outros escritores,
como Paulo Coelho, e artistas, como Lobão, Ney Matogrosso e Rita Lee, deram
opiniões públicas a favor da circulação da obra. Outros tantos defenderam
Roberto, e a proibição do livro tornou-se o exemplo mais radical da discussão
sobre a publicação de biografias não autorizadas no Brasil.
Os advogados de Roberto Carlos usaram como base os Artigos
20 e 21 do Código Civil. Eles exigem autorização prévia do biografado para a
publicação de obras com fins comerciais a seu respeito e consideram a vida
privada “inviolável”. Mas a Constituição Federal afirma: “A expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação é livre e
independe de censura ou licença”.
Para fazer valer a Constituição, a Associação Nacional dos
Editores de Livros (Anel) move uma ação direta no Supremo Tribunal Federal para
anular os Artigos 20 e 21. O Procure Saber, movimento cuja lista de fundadores
inclui o próprio Roberto Carlos (que depois abandonou o grupo), Caetano Veloso,
Chico Buarque e Gilberto Gil, quer que os artistas e seus herdeiros permaneçam
com o direito de impedir a publicação de biografias. Lutam ainda para que
biografados ou suas famílias recebam parte do lucro obtido com a venda das
obras.
A previsão é que o STF julgue a matéria ainda neste
semestre. Em outro campo de batalha, a Câmara dos Deputados, um projeto de lei
que libera a venda de biografias não autorizadas foi recentemente aprovado. O
texto precisa agora passar pelo Senado e, em seguida, receber a sanção da
Presidência da República.
Araújo diz não ter ressentimentos de seu ídolo. “Herdei isso
da minha mãe. Não guardo rancor. Sei das limitações do Roberto, que não tem
familiaridade com os livros. Tudo o que posso fazer é lamentar.” E escrever
mais. O réu e o Rei, diz ele, “é um ato de resistência”.
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