Ariel Fagundes
Muito antes do jornalismo cultural asséptico e pasteurizado
produzido hoje em dia, as editorias de música já foram o lar de escritores
viscerais que refletiam em seus textos o resultado caótico da vida extrema que
levavam.
A imprensa alternativa que surgiu nos Estados Unidos a partir dos anos
1960, junto com o sucesso comercial do rock n’roll, esteva repleta desses
personagens, mas nenhum deles conseguiu alcançar a relevância e a notoriedade
de Lester Bangs.
Nascido em uma pequena cidade da Califórnia chamada
Escondido em 1948, Leslie Conway Bangs tinha boas razões para ser um típico
desajustado.
Filho de um pai alcoólatra ex-presidiário e uma mãe fanática
Testemunha de Jeová, aos 11 anos ele sofreu uma série de abusos sexuais de um
homem mais velho em sua cidade natal.
Ainda assim, quando lhe perguntavam sobre
seu passado, Bangs respondia com desdém: “Todo mundo vem de uma família
fodida”.
Sua paixão pela música começou na adolescência, quando
entrou em contato com a cultura do jazz a partir do mestre Miles Davis. Pilhas
de discos de jazz e livros da Geração Beat compuseram sua bagagem intelectual
que nem havia chegado perto do rock n’roll até então: “Mingus e Kerouac. Esses
eram os meus santos”, afirmava com orgulho.
Tudo mudou quando surgiram os Beatles e os Rolling Stones no
início dos anos 1960 – a transgressão que aquela música representava foi o
gatilho para uma jornada que não teria fim em sua vida.
Bangs mergulhou no
mundo das drogas, foi expulso da capela dos Testemunhas de Jeová de sua cidade,
e decidiu estudar jornalismo.
A carreira na área começaria quando resolveu
responder a um anúncio da recém-lançada revista Rolling Stone que procurava
escritores freelancers para escreverem resenhas dos álbuns que estavam sendo
lançados na época.
O ano era 1969 e muitos dos discos lançados nesse momento
acabariam se tornando clássicos absolutos da história da rock. A primeira
crítica de Bangs na revista foi sobre o aclamado disco de estreia do MC5, Kick Out
The Jams (1969).
A banda havia sido elogiada em edições anteriores do veículo,
mas na crítica publicada no dia 5 de abril de 1969, Lester não teve o menor de
pudor em dizer que “mal dá para distinguir a maioria das faixas umas das outras
com suas estruturas primitivas de dois acordes”.
Lester dando uma
chave-de-braço em Bruce Springsteen
A capacidade de expressar opiniões radicais com construções
textuais primorosas era a grande arma de que Bangs se valeu para tomar de
assalto o cenário da crítica musical de então.
Durante os quatro anos em que
escreveu regularmente para a Rolling Stone louvou literalmente bandas como o
Deep Purple e avacalhou outras como o The Doors.
Ainda que alguns textos
esparsos tenham sido publicados posteriormente no veículo, seu vínculo com a
Rolling Stone foi rompido após ele destruir um disco da banda Canned Heat com
uma crítica feroz.
A partir de 1971, Bangs se envolveu com a concorrente da
Rolling Stone, a revista Creem, de Detroit. Ele acabou se tornando o editor da
publicação e lá publicou textos onde, reza a lenda, a expressão “heavy metal”
foi usada pela primeira vez, termo inventado para descrever o rock distorcido
de bandas como Black Sabbath e Led Zeppelin.
Até 1977, ele viveu em Detroit, depois
disso largou a Creem, mudou-se para Manhattan e testemunhou a explosão do punk
rock. Nessa época, ele se mantinha escrevendo para diversos veículos como o The
Village Voice, Penthouse, Playboy e New Musical Express.
Mas apesar do reconhecimento conquistado, Bangs não estava
satisfeito. Dentro de si havia pretensões literárias com as quais ele nunca
lidou bem, como um sonho antigo de escrever um romance de sucesso, o que nunca
aconteceu.
O consolo era encontrado em seus amigos mais fieis: as drogas e a
música. Em 1980, conheceu uma banda punk no Texas e com ela gravou um álbum,
Jook Savages on the Brazos (1980), assinado por Lester Bangs and the
Delinquents.
Em 1981, se juntou com o Mickey Leight, irmão de Joey Ramone, e
formou uma banda chamada Birdland, que também gravou um único disco chamado
Birdland with Lester Bangs (1981).
E isso foi uma das últimas coisas que ele
fez na vida, pois no dia 30 de abril de 1982, Bangs teve uma overdose de
remédios (Darvon, Valium e NyQuil) que o matou de forma fulminante.
Philip Seymour Hoffman
como Lester em Quase Famosos (2000)
Bem ou mal, Lester Bangs morreu como viveu – ouvindo música
chapado. O último álbum que ele escutou foi Dare! (1981), do The Human League,
disco que ainda estava tocando quando seu corpo foi encontrado.
Mas, como de
costume, vai-se o homem e vem a lenda: Bangs tornou-se um ícone da imprensa de
rock que não será esquecido tão cedo.
Nos anos 1990, Kurt Cobain escreveu longamente em seu diário
pedindo conselhos musicais ao espírito de Lester.
Em 2000, o ator Philip
Seymour Hoffman interpretou o papel do jornalista no filme Quase Famosos, que
retrata com utópico romantismo aquele momento dos anos 1970.
E não deixa de ser
curioso o fato de que tanto Kurt quanto Hoffman tenham tido mortes tão súbitas
e trágicas quanto a de Lester Bangs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário