Augusto Nunes
Em 1° de outubro de 2012, o escritor João Ubaldo Ribeiro
publicou no jornal O Globo uma crônica que retratou com perturbadora nitidez o
desprezo de Lula por códigos éticos e a decomposição moral do PT.
Pena que o grande romancista não tenha vivido para ver o
desmoronamento do Império da Safadeza, anunciado pelas rachaduras no trono
ainda ocupado por Dilma Rousseff.
Com dois anos de atraso, as pesquisas eleitorais vão
desenhando o desfecho previsto no texto abaixo reproduzido. Confira.
A HORA DA SAIDEIRA
João Ubaldo Ribeiro
Na semana passada, li um artigo do professor Marco Antonio
Villa, que não conheço pessoalmente, mostrando, em última análise, como a era
Lula está passando, ou até já passou quase inteiramente, o que talvez venha a
ser sublinhado pelos resultados das eleições.
Achei-o muito oportuno e necessário, porque mostra algo que
muita gente, inclusive os políticos não comprometidos diretamente com o
ex-presidente, já está observando há algum tempo, mas ainda não juntou todos os
indícios, nem traçou o panorama completo.
O PT que nós conhecíamos, de princípios bem definidos e
inabaláveis e de uma postura ética quase santimonial, constituindo uma
identidade clara, acabou de desaparecer depois da primeira posse do
ex-presidente.
Hoje sua identidade é a mesma de qualquer dos outros
partidos brasileiros, todos peças da mesma máquina pervertida, sem perfil
ideológico ou programático, declamando objetivos vagos e fáceis, tais como
“vamos cuidar da população carente”, “investiremos em saneamento básico e
saúde”, “levaremos educação a todos os brasileiros” e outras banalidades
genéricas, com as quais todo mundo concorda sem nem pensar.
No terreno prático, a luta não é pelo bem público, nem para
efetivamente mudar coisa alguma, mas para chegar ao poder pelo poder, não
importando se com isso se incorre em traição a ideais antes apregoados com
fervor e se celebram acordos interesseiros e indecentes.
A famosa governabilidade levou o PT, capitaneado por seu
líder, a alianças, acordos e práticas veementemente condenadas e denunciadas por
ele, antes de chegar ao poder. O “todo mundo faz” passou a ser explicação e
justificativa para atos ilegítimos, ilegais ou indecorosos.
O presidente, à testa de uma votação consagradora, não
trouxe consigo a vontade de verdadeiramente realizar as reformas de que todos
sabemos que o Brasil precisa — e o PT ostentava saber mais do que ninguém.
No entanto, cadê reforma tributária, reforma política,
reforma administrativa, cadê as antigas reformas de base, enfim?
O ex-presidente não foi levado ao poder por uma revolução,
mas num contexto democrático e teria de vencer sérios obstáculos para a
consecução dessas reformas.
Mas tais obstáculos sempre existem para quem pretende
mudanças e, afinal, foi para isso que muitos de seus eleitores votaram nele.
O resultado logo se fez ver. Extinguiu-se a chama inovadora
do PT, sobrou o lulismo.
Mas que é o lulismo? A que corpo de ideias aderem aqueles
que abraçam o lulismo? Que valores prezam, que pretendem para o país, que
programa ou filosofia de governo abraçam, que bandeiras desfraldam além do
Bolsa Família (de cujo crescimento em número de beneficiados os governantes
petistas se gabam, quando o lógico seria que se envergonhassem, pois esse
número devia diminuir e não aumentar, se bolsa família realmente resolvesse
alguma coisa) e de outras ações pontuais e quase de improviso?
É forçoso concluir que o lulismo não tem conteúdo, não é
nada além do permanente empenho em manter o ex-presidente numa posição de poder
e influência. O lulismo é Lula, o que ele fizer, o que quiser, o que preferir.
Isso não se sustenta, a não ser num regime totalitário ou de
culto à personalidade semirreligioso. No momento em que o ex-presidente não for
mais percebido como detentor de uma boa chave para posições de prestígio, seu
abandono será crescente, pois nem mesmo implica renegar princípios ou ideais.
Ele agora é político de um partido como qualquer outro e, se
deixou alguma marca na vida política brasileira, esta terá sido,
essencialmente, a tal “visão pragmática”, que na verdade consiste em fazer
praticamente qualquer negócio para se sustentar no poder e que ele levou a
extremos, principalmente considerando as longínquas raízes éticas do PT.
Para não falar nas consequências do mensalão, cujo
desenrolar ainda pode revelar muitas surpresas.
O lulismo, não o hoje desfigurado petismo, tem reagido, é
natural. Os muitos que ainda se beneficiam dele obviamente não querem abdicar
do que conquistaram. Mas encontram dificuldades em admitir que sua motivação é
essa, fica meio chato.
E não vêm obtendo muito êxito em seus esforços, porque
apoiar o lulismo significa não apoiar nada, a não ser o próprio Lula e seu
projeto pessoal de continuar mandando e, juntamente com seu círculo de
acólitos, fazendo o que estiver de acordo com esse projeto.
Chegam mesmo à esquisita alegação de que há um golpe em
andamento, como se alguém estivesse sugerindo a deposição da presidente Dilma.
Que golpe? Um processo legítimo, conduzido dentro dos limites institucionais?
Então foi golpe o impeachment de Collor e haverá golpe
sempre que um governante for legitimamente cassado? Os alarmes de golpe,
parecendo tirados de um jornal de trinta ou quarenta anos atrás, são um
pseudoargumento patético e até suspeito, mesmo porque o ex-presidente não está
ocupando nenhum cargo público.
É triste sair do poder, como se infere da resistência
renhida, obstinada e muitas vezes melancólica que seus ocupantes opõem a deixar
de exercê-lo. O poder político não é conferido por resultados de pesquisas de
popularidade; deve-se, em nosso caso presente, aos resultados de eleições.
O lulismo talvez acredite possuir alguma substância, mas os
acontecimentos terminarão por evidenciar o oposto dessa presunção voluntarista.
Trata-se apenas de um homem — e de um homem cujas prioridades parecem
encerrar-se nele mesmo.
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