Por Eduardo Graeff
Se você quer saber mais do que o trivial sobre Jânio Quadros
(1917-1992) sem ter que mergulhar em análises acadêmicas e depoimentos maçudos,
uma razão para escolher este livro de Ricardo Arnt é que ele é muito bem
escrito. São 128 páginas de prosa leve, agradável, misturando nas doses certas
narrativa histórica e o inevitável anedotário. Junte a isso a pesquisa
cuidadosa e um senso de perspectiva histórica incomum, tratando-se de um
personagem tão controvertido, e o resultado é uma leitura interessante mesmo para
quem se considera razoavelmente informado sobre Jânio e o período que ele
protagonizou na política brasileira.
Se o estilo faz o homem, Jânio, para muitos críticos, foi
puro estilo, pura forma sem conteúdo autêntico algum por baixo. Arnt introduz
seu biografado com cinco fragmentos de discurso escolhidos para remeter
diretamente ao enigma do janismo como fenômeno de comunicação de massa: a
linguagem rebuscada, cheia de mesóclises e palavras difíceis, que fascinava até
e principalmente quem não a entendia direito.
Daí evoca a dicção professoral, os gestos e esgares de
possuído, o rosto magro emoldurado pela cabeleira desgrenhada, os óculos, o
colarinho e a gravata sempre desalinhados, o terno amarrotado sobre o corpo
franzino. Boa parte da sabedoria convencional sobre Jânio gira em torno dessa
imagem e de como ela impulsionou a ascensão meteórica do vereador em 1947 a
presidente da República em 1961, com 44 anos de idade, desconcertando as elites
e atropelando partidos e lideranças políticas tradicionais.
Caso extremo de mistificação das massas por um demagogo
travestido de “homem providencial”? Não exatamente. “Jânio foi um
prestidigitador, mas não uma fraude. Só uma crítica ressentida pode atribuir
sua complexa popularidade à manipulação demagógica ou à vitória da forma sobre
o conteúdo”, diz Arnt. Tentando decifrar essa complexidade, ele mostra como as
idéias do personagem principal, as aspirações do eleitorado e as voltas do jogo
político-partidário se combinaram para definir e redefinir o significado político
do janismo a cada etapa de sua trajetória.
Constatação surpreendente para quem só o conheceu à luz do
estereótipo do ilusionista sem limites: Jânio teve, sim, um ideário político,
ambíguo, mas definido. E tentou levá-lo à prática! Professava uma crença
apaixonada no ideal democrático-liberal do primado da igualdade perante a lei.
Ao mesmo tempo, na contramão do liberalismo, apostava mais
no Estado do que no mercado como instrumento do bem comum. Pensava que um
Estado submetido ao rigor impessoal da lei, liberto de toda influência
particularista, bastaria para alavancar o progresso e promover o que hoje
chamamos de “inclusão” das maiorias destituídas. O ícone moralista da vassoura
brandida contra a “bandalheira” dos políticos tradicionais, da burocracia, dos
tubarões, exprimia essa crença.
Com essas idéias, os dotes de comunicador e a imensa
ambição, Jânio mudou a cara política de São Paulo na década de 1950.
Como vereador e depois prefeito da capital, abriu as portas
para a massa de migrantes recém-chegados em busca de emprego, lugar na malha
urbana em expansão e acesso aos serviços públicos deficitários. Tinha, além de
tudo, uma capacidade de trabalho impressionante. Despachava das 6h30 às 20h,
aguilhoando a burocracia com os famosos bilhetinhos e visitas-surpresa.
Foi, a seu modo, um modernizador da administração pública. E
um precursor da responsabilidade fiscal, respaldando o “professor” Carvalho
Pinto no árduo trabalho de saneamento das contas do município e depois do
Estado. Também teve seu lado desenvolvimentista: como governador, fez
investimentos em infraestrutura fundamentais para que São Paulo mantivesse a
dianteira da industrialização nos anos JK.
Sua chegada à Presidência foi o ápice de uma “revolução pelo
voto” que marca a estréia das massas populares urbanas como presença
determinante na cena da incipiente democracia brasileira. O grande enigma é
como a onda de participação e modernização estagnou e refluiu nos meros sete
meses entre a posse e a renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1961.
Olhando mais o contexto geral do que os detalhes da trama
política, três explicações sobressaem. Primeiro, o personalismo extremado da
liderança de Jânio, junção do temperamento autoritário com uma concepção
plebiscitária de democracia, avessa ao jogo de concessões e cooptações com o
Congresso que viria a ser reconhecido, mas só bem mais tarde, como lei de ferro
do “presidencialismo de coalizão” brasileiro.
Segundo, a dificuldade de lidar com a escala de complexidade
da máquina federal e dos problemas do país usando o mesmo hipercentralismo que
compusera a mística de competência do janismo na esfera municipal e funcionara
precariamente, mas em todo caso funcionara, no governo do Estado. Terceiro, o
contágio do ambiente político doméstico pela polarização ideológica da Guerra
Fria, pouco propícia a um reformismo moderado como o que Jânio ensaiara em São
Paulo, admirava nos não-alinhados Nasser, Nehru e Tito e se propunha a pôr em
prática no Brasil.
Impossível resumir em poucas linhas o cipoal de equívocos
que leva desse contexto problemático ao desfecho da renúncia, de todo modo
inesperado. Nesse ponto a narrativa de Arnt ganha vibração de um bom thriller
político.
Seguem-se anos de ostracismo, prolongados pela ditadura
militar, para a qual ele próprio abriu caminho com a crise da renúncia. A
reentrada decepcionante como prefeito de São Paulo, em 1985, traz o Jânio
Quadros que eu conheci diretamente. Uma caricatura de si mesmo, desfigurado,
trêmulo, os reflexos autoritários abafando qualquer eco distante do passado
transformador. Ainda assim capaz de empolgar a Vila Maria e ganhar a eleição,
não por maioria absoluta, é verdade, mas graças à divisão do voto reformista
entre Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy.
Ao resgatar o perfil do estadista que ele poderia ter sido,
Arnt não redime Jânio do vexame de haver deixado escapar a oportunidade
histórica que representou. Mas cumpre a promessa de fazer justiça à
complexidade do janismo como momento da constituição de uma democracia de
massas no Brasil. E ajuda a entender com mais profundidade e humildade o
desafio que as reformas com democracia continuam a representar para o país.
Eduardo Graeff é
sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da
República no governo Fernando Henrique Cardoso
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