Pesquisar este blog

quinta-feira, setembro 27, 2018

Ricardo Arnt analisa a complexidade e o anedotário de Jânio Quadros



Por Eduardo Graeff

Se você quer saber mais do que o trivial sobre Jânio Quadros (1917-1992) sem ter que mergulhar em análises acadêmicas e depoimentos maçudos, uma razão para escolher este livro de Ricardo Arnt é que ele é muito bem escrito. São 128 páginas de prosa leve, agradável, misturando nas doses certas narrativa histórica e o inevitável anedotário. Junte a isso a pesquisa cuidadosa e um senso de perspectiva histórica incomum, tratando-se de um personagem tão controvertido, e o resultado é uma leitura interessante mesmo para quem se considera razoavelmente informado sobre Jânio e o período que ele protagonizou na política brasileira.

Se o estilo faz o homem, Jânio, para muitos críticos, foi puro estilo, pura forma sem conteúdo autêntico algum por baixo. Arnt introduz seu biografado com cinco fragmentos de discurso escolhidos para remeter diretamente ao enigma do janismo como fenômeno de comunicação de massa: a linguagem rebuscada, cheia de mesóclises e palavras difíceis, que fascinava até e principalmente quem não a entendia direito.

Daí evoca a dicção professoral, os gestos e esgares de possuído, o rosto magro emoldurado pela cabeleira desgrenhada, os óculos, o colarinho e a gravata sempre desalinhados, o terno amarrotado sobre o corpo franzino. Boa parte da sabedoria convencional sobre Jânio gira em torno dessa imagem e de como ela impulsionou a ascensão meteórica do vereador em 1947 a presidente da República em 1961, com 44 anos de idade, desconcertando as elites e atropelando partidos e lideranças políticas tradicionais.

Caso extremo de mistificação das massas por um demagogo travestido de “homem providencial”? Não exatamente. “Jânio foi um prestidigitador, mas não uma fraude. Só uma crítica ressentida pode atribuir sua complexa popularidade à manipulação demagógica ou à vitória da forma sobre o conteúdo”, diz Arnt. Tentando decifrar essa complexidade, ele mostra como as idéias do personagem principal, as aspirações do eleitorado e as voltas do jogo político-partidário se combinaram para definir e redefinir o significado político do janismo a cada etapa de sua trajetória.

Constatação surpreendente para quem só o conheceu à luz do estereótipo do ilusionista sem limites: Jânio teve, sim, um ideário político, ambíguo, mas definido. E tentou levá-lo à prática! Professava uma crença apaixonada no ideal democrático-liberal do primado da igualdade perante a lei.

Ao mesmo tempo, na contramão do liberalismo, apostava mais no Estado do que no mercado como instrumento do bem comum. Pensava que um Estado submetido ao rigor impessoal da lei, liberto de toda influência particularista, bastaria para alavancar o progresso e promover o que hoje chamamos de “inclusão” das maiorias destituídas. O ícone moralista da vassoura brandida contra a “bandalheira” dos políticos tradicionais, da burocracia, dos tubarões, exprimia essa crença.

Com essas idéias, os dotes de comunicador e a imensa ambição, Jânio mudou a cara política de São Paulo na década de 1950.


Como vereador e depois prefeito da capital, abriu as portas para a massa de migrantes recém-chegados em busca de emprego, lugar na malha urbana em expansão e acesso aos serviços públicos deficitários. Tinha, além de tudo, uma capacidade de trabalho impressionante. Despachava das 6h30 às 20h, aguilhoando a burocracia com os famosos bilhetinhos e visitas-surpresa.

Foi, a seu modo, um modernizador da administração pública. E um precursor da responsabilidade fiscal, respaldando o “professor” Carvalho Pinto no árduo trabalho de saneamento das contas do município e depois do Estado. Também teve seu lado desenvolvimentista: como governador, fez investimentos em infraestrutura fundamentais para que São Paulo mantivesse a dianteira da industrialização nos anos JK.

Sua chegada à Presidência foi o ápice de uma “revolução pelo voto” que marca a estréia das massas populares urbanas como presença determinante na cena da incipiente democracia brasileira. O grande enigma é como a onda de participação e modernização estagnou e refluiu nos meros sete meses entre a posse e a renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1961.

Olhando mais o contexto geral do que os detalhes da trama política, três explicações sobressaem. Primeiro, o personalismo extremado da liderança de Jânio, junção do temperamento autoritário com uma concepção plebiscitária de democracia, avessa ao jogo de concessões e cooptações com o Congresso que viria a ser reconhecido, mas só bem mais tarde, como lei de ferro do “presidencialismo de coalizão” brasileiro.

Segundo, a dificuldade de lidar com a escala de complexidade da máquina federal e dos problemas do país usando o mesmo hipercentralismo que compusera a mística de competência do janismo na esfera municipal e funcionara precariamente, mas em todo caso funcionara, no governo do Estado. Terceiro, o contágio do ambiente político doméstico pela polarização ideológica da Guerra Fria, pouco propícia a um reformismo moderado como o que Jânio ensaiara em São Paulo, admirava nos não-alinhados Nasser, Nehru e Tito e se propunha a pôr em prática no Brasil.

Impossível resumir em poucas linhas o cipoal de equívocos que leva desse contexto problemático ao desfecho da renúncia, de todo modo inesperado. Nesse ponto a narrativa de Arnt ganha vibração de um bom thriller político.

Seguem-se anos de ostracismo, prolongados pela ditadura militar, para a qual ele próprio abriu caminho com a crise da renúncia. A reentrada decepcionante como prefeito de São Paulo, em 1985, traz o Jânio Quadros que eu conheci diretamente. Uma caricatura de si mesmo, desfigurado, trêmulo, os reflexos autoritários abafando qualquer eco distante do passado transformador. Ainda assim capaz de empolgar a Vila Maria e ganhar a eleição, não por maioria absoluta, é verdade, mas graças à divisão do voto reformista entre Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy.

Ao resgatar o perfil do estadista que ele poderia ter sido, Arnt não redime Jânio do vexame de haver deixado escapar a oportunidade histórica que representou. Mas cumpre a promessa de fazer justiça à complexidade do janismo como momento da constituição de uma democracia de massas no Brasil. E ajuda a entender com mais profundidade e humildade o desafio que as reformas com democracia continuam a representar para o país.

Eduardo Graeff é sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso

Nenhum comentário: