Por Fernando Nogueira da Costa
Nas últimas décadas, surgiu novo campo de investigação
acadêmica que pesquisa o modo como as pessoas fazem julgamentos e tomam
decisões quando defrontadas com informações imperfeitas ou incompletas. Em
situações que envolvem o acaso, nossos processos cerebrais costumam ser
deficientes. É área que reúne muitas disciplinas, não só a matemática e as
ciências tradicionais, como também a psicologia cognitiva, a economia
comportamental e a neurociência moderna. Embora um de seus principais autores,
Daniel Kahneman, tenha ganhado Prêmio Nobel de Economia, em 2002, suas lições,
em grande parte, ainda não são conhecidos do grande público.
Este livro, O Andar do
Bêbado: como o acaso determina nossa vida (Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Educação., 2009, 249 páginas), está na lista dos mais vendidos de Não Ficção,
no Brasil. Ele é uma tentativa de popularizar a Teoria da Aleatoriedade. Trata
dos princípios que governam o acaso, do desenvolvimento dessas idéias e da
maneira pela qual elas atuam em política, negócios, medicina, economia,
esportes, lazer e outras áreas da atividade humana. Também trata do modo como
tomamos decisões e dos processos que nos levam a julgamentos equivocados e
decisões ruins quando confrontados com a aleatoriedade ou a incerteza.
Doutor em Física pela Universidade da Califórnia, Berkeley,
Leonard Mlodinow hoje ensina as Teorias da Aleatoriedade no Instituto de
Tecnologia da Califórnia. Por puro acaso, ele estava no World Trade Center na
hora dos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001, e, também por puro
acaso, sobreviveu. Antes, já tinha escrito livros de sucesso, inclusive com
Stephen Hawking, Uma Nova História do Tempo.
O título O Andar do Bêbado vem da analogia que descreve o
movimento aleatório e serve como metáfora para a nossa vida. Podemos empregar
as ferramentas usadas na compreensão do andar do bêbado para entendermos os
acontecimentos da vida diária.
Outro autor de prestígio em Finanças Comportamentais,
Richard Thaler, tinha dito o seguinte. “Um bêbado andando em um campo pode
criar um caminho aleatório, embora ninguém possa chamar sua escolha de direção
racional. Se os preços dos ativos dependem do trajeto que o bêbado adotou,
seria boa idéia estudar como bêbados se orientam”…
Essa afirmação, ironicamente, faz referência ao “caminho aleatório”
da Hipótese do Mercado Eficiente. Como os investidores não adivinham se o
conteúdo da nova notícia será positivo, isto é, favorável à alta, ou negativa,
levando à baixa das cotações, esse “caminho aleatório” recomenda que a melhor
atitude é acompanhar o mercado e não tentar superá-lo. Nenhum investidor
conseguiria isso de maneira sistemática, ao longo de vários anos. Esse “caminho
aleatório”, paradoxalmente, é seguido pelas Finanças Racionais…
O objetivo do livro de Mlodinow é ilustrar o papel do acaso
no mundo que nos cerca e mostrar de que modo podemos reconhecer sua atuação nas
questões humanas. Gostei mais do décimo e último capítulo, justamente, o
intitulado O Andar do Bêbado.
Nele, Mlodinow começa criticando a doutrina do determinismo:
a idéia de que o estado do mundo no momento presente determina precisamente a
maneira como o futuro se desenrolará. Na vida cotidiana, o determinismo
pressupõe que nossas qualidades pessoais e as propriedades de qualquer situação
ou ambiente levam direta e inequivocamente a consequências precisas. Nesse
suposto mundo ordenado, tudo pode ser antecipado, computado, previsto. Mlodinow
se pergunta, pelo contrário, sobre o quanto a aleatoriedade contribui para a
situação em que nos encontramos na vida, e com que precisão somos capazes de
prever para onde nos dirigimos.
Os cientistas, geralmente, pressupunham que se as condições
iniciais de algum sistema fossem ligeiramente alteradas, sua evolução também se
alteraria apenas ligeiramente. Lorenz descobriu que pequenas diferenças levavam
a alterações grandes no resultado. O fenômeno conhecido como “Efeito
Borboleta”, com base na idéia de que ínfimas alterações atmosféricas, como as
causadas pelo bater das asas de uma borboleta, poderiam ter grande efeito nos
subsequentes padrões atmosféricos globais.
Uma sequência cinematográfica fantástica para ilustrar como
eventos aleatórios, aparentemente inconsequentes, podem levar a grandes
mudanças pessoais está no filme “O Curioso Caso de Benjamin Button”. Envolve a
cena quando a personagem Daisy, a bailarina interpretada por Cate Blanchett, é
atropelada em Paris.
Na verdade, o determinismo se mostra incapaz de satisfazer
as condições de previsibilidade nas questões humanas às quais aludiu Laplace.
Além de ser imprevisível, o comportamento humano é, frequentemente, irracional,
agindo inclusive de modo contrário aos próprios interesses, como demonstrado
por Kahneman e Tversky.
Mesmo que conseguíssemos descobrir as leis dos assuntos
humanos, é impossível conhecermos ou controlarmos precisamente as
circunstâncias de nossas vidas. As questões humanas são tão complexas que,
mesmo que compreendêssemos as leis e possuíssemos todas as informações,
dificilmente conseguiríamos realizar os cálculos necessários. Por isso, o
determinismo é modelo fraco para descrever a experiência humana. Como o
ganhador de Prêmio Nobel, Max Born, disse, “o acaso é conceito mais fundamental
que a causalidade”.
Nos estudos científicos dos processos aleatórios, o “andar
do bêbado” é o arquétipo. Os eventos aleatórios nos empurram, continuamente, em
uma direção e, depois, em outra. O futuro de cada indivíduo é impossível de
prever. Todos devemos muito mais ao acaso do que somos capazes de perceber. Não
temos como evitar certas forças inesperadas e imprevisíveis. Essas forças
aleatórias e nossas reações a elas são responsáveis por muito do que constitui
o trajeto particular que seguimos na vida.
Entretanto, na vida cotidiana, o passado parece óbvio, mesmo
que não tivéssemos a possibilidade de haver previsto. Em qualquer série
complexa de eventos na qual cada evento se desenrola com algum elemento de
incerteza, existe assimetria fundamental entre o passado e o futuro. O
movimento sem rumo prossegue em alguma direção. Até que atinge alguma posição
significativa que, finalmente, chama nossa atenção. Então, investigamos o
motivo da ocorrência desse acontecimento inesperado.
Em retrospecto, conseguimos explicar, claramente, porque o
passado ocorreu de determinada forma, embora não tenhamos previsto de antemão o
trajeto. Isso teria envolvido número quase inimaginável de cálculos
matemáticos, série muito maior, em escopo e dificuldade, que a lista de eventos
necessária para entendermos o passado. Essa assimetria fundamental pode ser
expressa por ditado como “depois da onça morta, todo o mundo é caçador”. Aparecem os “engenheiros de obra feita”.
Há processo probabilístico cujo futuro é difícil de prever,
mas cujo passado é fácil de entender. A sucessão lógica de eventos, deduzida a
posteriori, é o modo como vemos a coisa em retrospecto, tendo pouca relevância
na previsão de eventos futuros. A ordem do passado se dissolve quando
extrapolada para o futuro.
Sistematicamente, deixamos de enxergar o papel do acaso no
sucesso de empreendimentos e de pessoas. Acreditamos, irracionalmente, que os
erros do passado devem ser consequências da ignorância ou da incompetência.
Confiamos demais nas previsões excessivamente precisas de pessoas, desde
comentaristas políticos ou esportivos até especialistas em Finanças, passando
por consultores de negócios, cujo histórico supostamente demonstra serem
grandes conhecedores desses assuntos. Os palpites se transformam em fórmulas
que alegam possuir precisão de várias casas decimais, mas os resultados
esperados são, na verdade, grandes chutes!
Os historiadores, cuja profissão consiste em estudar o
passado, sabem que não é possível prever a maneira como decorrerão as coisas. É
a ilusão de inevitabilidade.
Pior, após qualquer tragédia, surge sempre o jogo de culpas
no qual pessoas, geralmente do governo, são acusadas por não terem previsto o
que estava por acontecer. Os eventos, vistos em retrospecto, certamente parecem
apontar em direção óbvia. Se começarmos a analisar bem antes do fato e
acompanharmos os eventos progressivamente, a sensação de inevitabilidade se dissolve
rapidamente. Afirma Mlodinow: “o estudo da aleatoriedade nos mostra que
enxergar os eventos por bola de cristal é possível, mas, infelizmente, apenas
depois que eles já aconteceram”.
O conhecimento de por que aconteceu algo é vazio, ou seja,
tem pouca utilidade se quisermos saber o que acontecerá no futuro. É fácil
construir histórias para explicar o passado ou convencer de algum desdobramento
futuro duvidoso. Para nos imunizarmos contra os erros da intuição, temos de
enxergar tanto as explicações ex-post como as profecias com ceticismo. Em vez
de confiarmos em nossa capacidade de prever os acontecimentos futuros, com base
em nosso arcabouço determinístico automático, devemos nos concentrar na
capacidade de reagir a eles.
A nova Teoria dos Acidentes codifica o argumento central de
Mlodinow: em sistemas complexos, entre os quais a nossa vida, devemos esperar
que fatores menores, que geralmente ignoramos, possam causar grandes acidentes
em função do acaso. Os sistemas modernos são formados por milhares de partes,
incluindo seres humanos falíveis e as decisões tomadas por eles, que se
inter-relacionam de maneiras impossíveis de rastrear e prever individualmente.
Os acidentes acabarão por ocorrer, sem causas claras, sem a presença de erros
evidentes e vilões irresponsáveis, tão perseguidos por Comissões Parlamentares
de Inquéritos na busca de “bodes expiatórios”.
Há também a visão determinística do mercado, segundo a qual
o sucesso é governado principalmente pelas qualidades intrínsecas da pessoa ou
do produto. Porém, há a visão não determinística, segundo a qual há muitos
livros, cantores e atores de alta qualidade, porém desconhecidos, e o que faz
com que um deles se destaque é, em grande parte, conspiração de fatores
pequenos e aleatórios, isto é, a sorte. Talvez a explicação do sucesso de “O
Andar do Bêbado” seja apenas isso: sorte.
Nossa sociedade se apressa em transformar os ricos em heróis
e os pobres em bodes expiatórios. Obviamente, pode ser erro julgarmos o
brilhantismo das pessoas em proporção à sua riqueza. Não enxergamos o potencial
individual, apenas os resultados, pensando que estes devem refletir o interior.
A Teoria do Acidente Normal não nos mostra que, na vida, a conexão entre ações
e resultados é aleatória, mas sim que influências aleatórias são tão
importantes quanto nossas qualidades e ações. As pessoas superestimam a
capacidade de inferir a habilidade de determinada pessoa em função de seu
sucesso.
As classificações de popularidade não concordam com a
qualidade intrínseca determinada por avaliadores isolados. A aparente
popularidade influencia os futuros compradores. Depois de ouvirem alguns
elogios, os futuros consumidores/expectadores tendem a gostar mais daquele
produto. Pequenas influências casuais criam “bola de neve”, gerando o “efeito
borboleta” para seu sucesso. Daí, a maioria das pessoas não consegue evitar o
julgamento intuitivo de que o que ganha o produtor se correlaciona ao valor
pessoal.
Por exemplo, os autores devem ser julgados por seu modo de
escrever e não pelas vendas de seus livros, ou seja, a pessoas devem ser
julgadas mais por suas habilidades que por seus êxitos. A linha que une a
habilidade e o sucesso é tênue. A habilidade não garante conquistas, e as
conquistas não são proporcionais à habilidade. Não se pode esquecer o papel do
acaso.
Quando desistimos de algum projeto por acreditarmos no
julgamento dos outros, ou do mercado, em vez de acreditarmos em nós mesmos,
trata-se realmente de uma tragédia. O que Mlodinow aconselha é “seguir em
frente, pois a grande idéia é a de que, como o acaso efetivamente participa de
nosso destino, um dos mais importantes fatores que levam ao sucesso está sob o
nosso controle: o número de vezes que nos arriscamos, ou seja, o número de
oportunidades que aproveitamos”.
Devemos identificar e agradecer a sorte que temos e
reconhecer os eventos aleatórios que contribuem para nosso sucesso. Temos de
aprender a aceitar também os eventos fortuitos que nos causam sofrimento. Mas,
acima de tudo, é importante apreciar a ausência de azar, a ausência de eventos
que poderiam ter nos derrubado e a ausência das doenças, das guerras, da fome e
dos acidentes que não, ou ainda não, nos acometeram.
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