Por Carolina Cunha
“Vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar”.
Essa é uma das frases mais famosas do sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
falecido em janeiro de 2017, aos 91 anos. Ele deixou uma obra volumosa, com
mais de 50 livros, e é considerado um dos pensadores mais importantes e
populares do fim do século 20.
Bauman é um dos expoentes da chamada “sociologia
humanística” e dedicou a vida a estudar a condição humana. Ele é visto por
muitos como um teórico perspicaz e por outros como um ingênuo pessimista. Suas
ideias refletem sobre a era contemporânea em temas como a sociedade de consumo,
ética e valores humanos, as relações afetivas, a globalização e o papel da
política.
Nascido na Polônia em 1925, Bauman serviu como militar
durante a Segunda Guerra Mundial, foi militante do Partido Comunista polonês e
professor da Universidade de Varsóvia. Filho de judeus, ele foi expulso da
Polônia em 1968 por causa do crescente antissemitismo do Leste Europeu. Emigrou
para Israel e se instalou na Inglaterra, onde desenvolveu a maior parte de sua
carreira. Desde 1971 atuava como professor emérito de sociologia da
Universidade de Leeds.
A modernidade sólida e a modernidade líquida
O tempo em que vivemos é chamado por muitos pensadores como
“pós-modernidade”. O termo foi popularizado em 1979 pelo pensador francês
Jean-François Lyotard (1924-1998). Para
Lyotard, esse é o período em que todas as grandes narrativas (visões de mundo)
entram em crise e os indivíduos estão livres para criar tudo novo.
Bauman não utiliza o termo pós-modernidade. Ele cunhou o
conceito de “modernidade líquida” para definir o tempo presente. Escolheu a
metáfora do “líquido” ou da fluidez como o principal aspecto do estado dessas
mudanças. Um líquido sofre constante mudança e não conserva sua forma por muito
tempo.
As formas de vida contemporânea, segundo o sociólogo
polonês, se assemelham pela vulnerabilidade e fluidez, incapazes de manter a
mesma identidade por muito tempo, o que reforça um estado temporário e frágil
das relações sociais e dos laços humanos. Essas mudanças de perspectivas
aconteceram em um ritmo intenso e vertiginoso a partir da segunda metade do
século XX. Com as tecnologias, o tempo se sobrepõe ao espaço. Podemos nos
movimentar sem sair do lugar. O tempo líquido permite o instantâneo e o
temporário.
Em seu primeiro livro, “Mal-estar da pós-modernidade”,
Bauman parodia Sigmund Freud (1856-1939), autor de “O Mal-estar da
civilização”. A tese freudiana é de que na idade moderna os seres humanos
trocaram liberdade por segurança. O excesso de ordem, repressão e a regulação
do prazer gerou um mal-estar, um sentimento de culpa.
Para Bauman, “a modernidade sólida tinha um aspecto medonho:
o espectro das botas dos soldados esmagando as faces humanas". Pela
estabilidade do Estado, da família, do emprego ou de outras instituições,
aceitava-se um determinado grau de autoritarismo. Segundo o sociólogo, a marca
da pós-modernidade é a própria vontade de liberdade individual, princípio que
se opõe diretamente à segurança projetada em torno de uma vida estável.
Bauman entende que na modernidade sólida os conceitos,
ideias e estruturas sociais eram mais rígidos e inflexíveis. O mundo tinha mais
certezas. A passagem de uma modernidade a outra acarretou mudanças em todos os
aspectos da vida humana. A modernidade líquida seria “um mundo repleto de
sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”.
Bauman entende que a nossa sociedade teve uma maior
emancipação em relação às gerações anteriores. A sensação de liberdade
individual foi atingida e todos podem se considerar mais livres para agir
conforme seus desejos. Mas essa liberdade não garante necessariamente um estado
de satisfação. Ela também exige uma responsabilidade por esses atos e joga aos
indivíduos a responsabilidade pelos seus problemas.
Na sociedade contemporânea emergem o individualismo, a
fluidez e a efemeridade das relações. Se a busca da felicidade se torna
estritamente individual, criamos uma ansiedade para tê-la, pois acreditamos que
ela só depende de nós mesmos. Para Bauman, somos impulsionados pelo desejo, um
querer constante que busca novas formas de realizações, experiências e valores.
O prazer é algo desejado e como ele é uma sensação passageira, requer um
estímulo contínuo.
À medida em que o futuro se torna incerto, o sentimento
coletivo dominante é que se deve viver o momento presente e exclusivamente para
si. Dessa instabilidade e ausência de perspectiva também nasce uma angústia. A
incerteza diante do futuro pode explicar o aumento do uso de antidepressivos e
a intensa busca por entretenimento como formas de afastar essa sensação.
Em muitos casos, essa angústia resulta na paralisia da ação,
na incapacidade de agir. Ao lidar com uma insegurança, muitas vezes o indivíduo
se recusa a assumir responsabilidades ou assume o discurso do “eu não gosto de
tomar decisões”. Somos livres, mas não conseguimos transformar o mundo – temos
um sentimento de impotência. Em outros casos, essa frustração pode gerar um
ódio intenso a tudo e a todos.
Em entrevista ao jornal argentino Clarín, Bauman declarou:
“escolhi chamar de ‘modernidade líquida’ a crescente convicção de que a mudança
é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”. Bauman entende a
crise como sendo um tempo em que o velho já se foi, mas o novo não tem forma
ainda. Em entrevista ao jornal italiano Il Messaggero, o sociólogo sinaliza que
buscamos um estado de maior solidez. “Ainda estamos em uma sociedade líquida,
mas em que nascem sonhos de uma sociedade menos líquida”, afirmou.
A sociedade do
consumo
Bauman observa que o século 20 sofreu uma passagem da
sociedade de produção para a sociedade de consumo. Isso não significa que não exista uma
produção, mas que o sentido do ato de consumir ganhou outro patamar.
Se as grandes ideologias, alicerces e instituições se
tornaram instáveis, o consumo se tornou um elemento central na formação da
identidade. Muito além da satisfação de necessidades, consumir passa a ter um
peso primordial na construção das personalidades. O ter se torna mais importante que o “ser”.
Temos inúmeras possibilidades de escolha e consumimos
produtos que identifiquem um determinado estilo de vida e comportamento. Ao
transformar tudo em mercadoria, nossa identidade também se constitui a partir
da satisfação do prazer pelo consumo. Marcas e grifes se tornam um símbolo de
quem somos. Sua compra também significa um status social, o desejo de um
reconhecimento perante os outros.
Satisfazer por completo os consumidores, na realidade,
significaria não ter mais nada para vender. Consumir também significa
descartar. Temos acesso a tudo o que queremos e ao mesmo tempo as coisas se
tornam rapidamente obsoletas. “O problema não é consumir; é o desejo insaciável
de continuar consumindo”, diz Bauman. Tanto que o descarte do lixo é um grande
problema na sociedade.
Bauman escreve: “Rockefeller pode ter desejado construir
suas fábricas, estradas de ferro e torres de petróleo altas e volumosas e ser
dono delas por um longo tempo [...], Bill Gates, no entanto, não sente remorsos
quando abandona posses de que se orgulhava ontem; é a velocidade atordoante da
circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substituição que
traz o lucro hoje – não a durabilidade e a confiabilidade do produto”.
As pessoas também precisam se reinventar para que não se tornem
obsoletas. Elas precisam ter identidades fluidas. Segundo Bauman, “na sociedade de
consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e
ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e
recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma
mercadoria vendável”.
As relações líquidas
Na modernidade líquida, os vínculos humanos têm a chance de
serem rompidos a qualquer momento, causando uma disposição ao isolamento
social, onde um grande número de pessoas escolhe vivenciar uma rotina
solitária. Isso também enfraquece a solidariedade e estimula a insensibilidade
em relação ao sofrimento do outro.
Esse tipo de isolamento parece ser uma contradição da
globalização, que aproxima as pessoas com a tecnologia e novas formas de
comunicação. Mas se tudo ocorre com intensa velocidade, isso também se reflete
nas relações pessoais. As relações se tornam mais flexíveis, gerando níveis de
insegurança maiores. Ao mesmo tempo em que buscam o afeto, as pessoas têm medo
de desenvolver relacionamentos mais profundos que as imobilizem em um mundo em
permanente movimento.
Bauman reflete sobre as relações humanas e acredita que os
laços de uma sociedade agora se dão em rede, não mais em comunidade. Dessa
forma, os relacionamentos passam a ser chamados de conexões, que podem ser
feitas, desfeitas e refeitas – os indivíduos estão sempre aptos a se conectarem
e desconectarem conforme vontade, o que faz com que tenhamos dificuldade de
manter laços a longo prazo.
O sociólogo acredita que as redes sociais significam uma
nova forma de estabelecer contatos e formar vínculos. Mas que elas não
proporcionam um diálogo real, pois é muito fácil se fechar em círculos de
pessoas pensam igual a você e evitar controvérsias.
Para Bauman, a rede é mantida viva por duas atividades:
conectar e desconectar. O contato no meio virtual pode ser desfeito ao primeiro
sinal de descontentamento, o que denota uma das características da sociedade
líquida. “O atrativo da ‘amizade Facebook’ é que é fácil conectar, mas a grande
atração é a facilidade de desconectar”, diz Bauman.
Política, segurança e
economia
Na modernidade líquida, existe uma maior separação do poder
e a política. O Estado perde força, os serviços públicos se deterioram e muitas
funções que eram do Estado são deixadas para a iniciativa privada e se tornam
responsabilidade dos indivíduos. É o caso do fim do modelo do Estado de
Bem-Estar Social na Europa.
Bauman identifica uma crise da democracia e o colapso da
confiança na política. “As pessoas já não acreditam no sistema democrático
porque ele não cumpre suas promessas”, diz o sociólogo. Para ele, a vitória
eleitoral de candidatos como Donald Trump nos EUA é um sintoma de que a
retórica populista e autoritária ganha espaço como solução para preencher esses
vazios.
No campo econômico, Bauman cita a fluidez dos mercados e o
comportamento do consumo a crédito, que evita o retardamento da satisfação.
“Vivemos a crédito: nenhuma geração passada foi tão endividada quanto a nossa –
individual e coletivamente (a tarefa dos orçamentos públicos era o equilíbrio
entre receita e despesa; hoje em dia, os “bons orçamentos” são os que mantêm o
excesso de despesas em relação a receitas no nível do ano anterior)”.
Para ele, as desigualdades sociais aumentaram. Ao mesmo
tempo em que se aumentam as incertezas, os indivíduos devem lutar para se
inserir numa sociedade cada vez mais desigual econômica e socialmente. Os
empregos estão mais instáveis e a maioria das pessoas não pode planejar seu
futuro muito tempo adiante.
Para o sociólogo, não existe mais o conceito tradicional de
proletariado. Emerge o “precariado”, termo que Bauman usou para se referir a
pessoas cada vez mais escolarizadas, mas com empregos precários e instáveis.
Agora a luta não é de classes, mas de cada pessoa com a sociedade.
No mundo líquido, a sensação de segurança também é fluida. “O
medo é o demônio mais sinistro do nosso tempo”, alerta Bauman. O medo do
terrorismo e da violência que pode vir de qualquer parte do globo (inclusive
virtualmente, como os hackers e haters das redes) cria uma vigilância
constante, a qual aceitamos nos submeter para ter mais segurança.
“Essa obsessão deriva do desejo, consciente ou não, de
recortar para nós mesmos um lugarzinho suficientemente confortável, acolhedor,
seguro, num mundo que se mostra selvagem, imprevisível, ameaçador”, escreve
Bauman no livro “Confiança e Medo na Cidade”. No mundo off-line, a arquitetura
das cidades está sendo cada vez mais projetada para promover o afastamento:
muros, condomínios fechados e sistemas de vigilância estão em alta.
No livro “Estranhos à Nossa Porta”, Bauman escreve: “a
ignorância quanto a como proceder, como enfrentar uma situação que não
produzimos nem controlamos é uma importante causa de ansiedade e medo”. Ele relaciona
a situação de desemprego dos europeus ao aumento do ódio contra os imigrantes.
Ao mesmo tempo, manter esse medo aceso seria uma estratégia de poder para
determinados grupos, como políticos de discursos nacionalistas e xenófobos.
Para saber mais:
O mal-estar da pós-modernidade, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar,
1998.
Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 2001.
A condição pós-moderna, Jean-François Lyotard. Ed. José
Olympio, 2002.
Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos, Zygmunt
Bauman. Ed. Zahar, 2004.
Confiança e Medo na Cidade, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 2009.
Estranhos à Nossa Porta, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 2017.
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