Por Fábio Ponso
Carlos Zéfiro, pseudônimo do funcionário
público Alcides Caminha, ficou conhecido como o pai da pornografia brasileira,
graças aos seus desenhos eróticos publicadas entre as décadas de 50 a 70.
Alcides escondia sua verdadeira identidade por medo de perder o emprego, já que uma lei previa a demissão de servidores por “incontinência
pública escandalosa”. Nos anos 70, durante a ditadura, foi aberta uma
investigação para se descobrir o autor dos ‘catecismos’, mas a apuração não foi
concluída.
Pouco depois, Zéfiro deixaria de publicar suas histórias em
razão da concorrência ds revistas eróticas estrangeiras. Na década de 80, com o
fim da censura, os quadrinhos começaram a ser republicados, mas Alcides só
revelou sua identidade um ano antes de sua morte, em 1992.
Seu Alcides, como era conhecido pelos vizinhos, era um
funcionário público de pequeno escalão, morador de uma casa simples de dois
quartos no subúrbio do Rio. Por mais de quatro décadas, quase ninguém pôde
suspeitar que na história não revelada deste cidadão comum, de vida pacata,
habitava, em silêncio, o mito Carlos Zéfiro, tido por muitos como o “pai da
pornografia brasileira”.
Desenhista dos quadrinhos eróticos conhecidos como
“catecismos”, uma febre entre os adolescentes das décadas de 50 a 70, Alcides Aguiar
Caminha se valeu do pseudônimo para esconder a obra do grande público —,
revelada somente a alguns poucos familiares e amigos, que guardavam o segredo.
Curiosamente, não fosse o fato de outro quadrinista ter
declarado ser Carlos Zéfiro, estimulando o artista a finalmente sair do
anonimato, um ano antes de sua morte, em 1992, sua identidade teria continuado
envolvida para sempre numa aura de mistério.
Nascido em 26 de setembro de 1921, em São Cristóvão, no Rio,
aos 25 anos Alcides casou-se com Serat, com quem teve cinco filhos. Funcionário
público da Divisão de Imigração do Ministério do Trabalho, concluiu o ensino
médio somente quando tinha 58 anos. Mas no desenho se iniciou muito antes: após
se formar em um curso técnico, começou a reproduzir fotos de nus femininos, a
pedido de amigos, logo percebendo que poderia ganhar dinheiro criando histórias
eróticas, como noticiado pelo GLOBO em 15 de novembro de 1991. A primeira
delas, intitulada “Sara”, foi criada em 1949.
No entanto, ele sempre escondeu sua atividade paralela para
não prejudicar sua carreira, já que a Lei 1.711, de 1952, previa a demissão de
servidores por “incontinência pública escandalosa”. Sua precaução era tanta que
tratava de destruir os originais de suas obras após a venda. Mesmo depois de se
aposentar, continuou se resguardando, com receio de perder a renda com que
sustentava a família, que morava numa casa simples em Anchieta.
Seus desenhos, em preto e branco, compunham histórias
reunidas em pequenos livretos em formato de bolso, com no máximo 32 páginas. De
acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural, o artista teria produzido 862
histórias. Por seu conteúdo pornoerótico, que, de forma pioneira, “educou”
sexualmente gerações acostumadas com a repressão sexual e a censura, os
livretos receberam do público o bem-humorado apelido de “catecismos”. Com
tiragem média de cinco mil exemplares — chegando, em alguns casos, a cerca de
30 mil —, eram impressos em gráficas de diversos estados, distribuídos e
vendidos clandestinamente em bancas de jornais, por iniciativa de Hélio
Brandão, amigo do artista e dono de um sebo na Praça Tiradentes.
Segundo pesquisadores, a obra do artista teria sido
influenciada por quadrinhos românticos mexicanos e fotonovelas suecas de teor
pornográfico. O nome Carlos Zéfiro, por sua vez, teria sido inspirado num autor
mexicano de fotonovelas. As histórias, de cunho eminentemente machista, eram um
retrato da cultura sexual da época, e não se furtavam a abordar tabus e temas
polêmicos, como o homossexualismo e o incesto, sob verniz nu e cru, levando
alguns especialistas a considerarem Zéfiro como “o Nelson Rodrigues dos
quadrinhos”.
Em 1970, no auge da repressão da ditadura militar, uma
investigação foi aberta em Brasília para se descobrir o autor das "obras
pornográficas". O editor Hélio Brandão chegou a ser preso, e Caminha foi
procurado e revistado pela polícia, mas a investigação terminou inconclusa.
Ainda no início da década de 70, a chegada ao Brasil de revistas eróticas
estrangeiras, em cores, fez com que as “revistinhas de sacanagem” nacionais
perdessem prestígio e Zéfiro, principal autor do gênero, decidisse parar de
publicar suas histórias.
No entanto, o artista continuou desenhando e seu nome se
manteve vivo, até que, nos anos 80, com o enfraquecimento e o fim da censura,
seus quadrinhos passaram a ser reimpressos por editoras do mercado brasileiro,
como a Record e a Cena Muda. Em 1983, foram publicados dois estudos sobre sua
obra: “O quadrinho erótico de Carlos Zéfiro”, de Otacílio d’Assunção, e “A arte
sacana de Carlos Zéfiro”, com artigos de pesquisadores como o antropólogo
Roberto Da Matta e o jornalista Sérgio Augusto.
Além dos trabalhos como quadrinista, Alcides Caminha foi
compositor, inscrito na Ordem dos Músicos do Brasil. A paixão pela música o
conduziu a uma vida boêmia, e em suas andanças, entre shows e serestas,
conheceu os sambistas Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Com a famosa
dupla — que, segundo Caminha, também sabia que ele era o desenhista Carlos
Zéfiro —, compôs alguns sambas, entre eles o clássico “A flor e o espinho”,
gravado por importantes nomes da MPB.
Caminha revelou sua identidade somente em novembro de 1991,
nas páginas da revista “Playboy”, após tomar conhecimento que o artista baiano
Eduardo Barbosa — também autor de alguns folhetos eróticos — se apresentou à
imprensa como sendo Carlos Zéfiro. Na ocasião, ganhou uma exposição de seus
desenhos e participou como uma das principais atrações da I Bienal
Internacional de Quadrinhos, na Fundição Progresso, no Rio, sendo assediado por
jornalistas e fãs.
Em 3 de julho de 1992, o quadrinista foi o principal
homenageado do Troféu HQ Mix, no Rio, recebendo o seu primeiro prêmio, na
categoria de artista veterano, pelo conjunto de sua obra. Caminha, no entanto,
pouco pôde desfrutar de sua glória tardia, pois apenas dois dias depois, após
voltar de uma festa, sentiu-se mal e faleceu em virtude de um derrame cerebral,
aos 70 anos de idade.
Em 1996, Zéfiro foi homenageado pela cantora Marisa Monte,
que utilizou os traços do artista na capa e no encarte do CD “Barulhinho bom”.
Em 1999, a cantora também participou de outra homenagem póstuma, inaugurando a
Lona Cultural Carlos Zéfiro, em Anchieta, com um show ao lado da Velha Guarda
da Portela. Marisa e o jornalista Juca Kfouri, autor da reportagem que revelou
a verdadeira identidade de Carlos Zéfiro na “Playboy”, são os padrinhos do
espaço cultural, fundado e dirigido por artistas locais.
Dois anos depois, o
cineasta Sílvio Tendler iniciou o projeto de produção de um documentário sobre
Zéfiro. Em 2011, o diretor e autor Paulo Biscaia Filho levou aos palcos a peça
“Os catecismos segundo Carlos Zéfiro”, escrita com Clara Serejo. No mesmo ano,
seus trabalhos foram expostos no Museu do Sexo, em Nova York, ao lado de obras
de quadrinistas eróticos do mundo inteiro.
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