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terça-feira, setembro 18, 2018

A impostura booktuber



Por Paulo Roberto Pires

Vamos combinar que é preciso uma generosa suspensão do espírito crítico para levar a sério, cultural ou intelectualmente, os chamados booktubers. Trata-se, como se sabe, de uma subespécie dos digital influencers, criaturas do reino digital que, devido à notoriedade adquirida na web ou fora dela, têm a propriedade de direcionar de alguma forma comportamento, gostos e, claro, consumo de seus “seguidores” nas redes sociais.

Como não existe almoço grátis, os influenciadores estão aí, na vida, sujeitos a ser influenciados por um presente ou um dinheirinho para, em retribuição, influenciar quem por eles é influenciável. O booktuber, como diz o próprio nome – assim mesmo, em português –, busca influenciar leitores falando sobre livros que em tese o influenciaram e que na prática podem influenciar as vendas.

Pois lá estavam eles, falando pelos cotovelos, influenciando geral, quando o escritor e jornalista Ronaldo Bressane resolveu postar em suas redes sociais a tabela de uma booktuber para o que ela chama de “leitura/divulgação/resenha em vídeo”.

Se o autor – ou, como é mais comum, a editora – desembolsar R$ 2 mil, pode ver seu livro ser mencionado com dois outros num vídeo em que a influenciadora expõe suas “impressões de leitura”. Como ela ressalva, não se trata de um comentário qualquer, mas de impressões “pessoais, sem interferência do autor/editora”.

Por R$ 3.500, a influência fica mais forte: pode-se ter um vídeo inteirinho para o livro. Com R$ 5 mil, além da atenção exclusiva, a capa do livro é postada por aí e aparece em vídeo dos outros.

O que parece um documento de barbárie foi, no entanto, defendido nas redes como evidência de cultura, de uma nova cultura.

Na chusma de comentários que se seguiu ao post, lê-se claramente a tese de que crítica literária e mídia são instituições falidas, que não se comunicam com um número expressivo de pessoas, ou seja, que não influenciam ninguém – e que, portanto, não têm mais relevância. Ou só a teria num desprezível círculo de “intelectuais”, caricaturados como elitistas de um Antigo Regime intimidado pela estridente choldra digital.

Nos tempos que se querem novos, opinião e orientação de consumo dão no mesmo e a mediação cultural profissional é substituída pelo princípio “uma webcam na mão e nenhuma ideia na cabeça”.

Os vídeos obedecem a uma fórmula simplória. Informações de orelha e Wikipédia sobre os autores são papagaiadas a título de “contexto” e introdução aos comentários, na prática um resumo da trama com obsessivos alertas sobre spoilers. Depois vem o momento impressionista do “gostei” disso, “não gostei” daquilo, “me emocionei”.

Boa parte dos livros comentados enquadra-se no lucrativo nicho do “jovem adulto”, o que quase sempre nivela crítica e criticado. Mais dramáticas são as resenhas de clássicos – eu vi, ninguém me contou, o elogio a uma tradução por “não ter erros de digitação” e ressalvas ao Diário de Anne Frank por causa das “vibrações ruins” do Holocausto.

Como se pôde ver claramente no episódio da tabela das “impressões de leitura”, os booktubers e seus apologistas orgulham-se de sua ignorância e defendem o amadorismo num reiterado elogio do desconhecimento de causa.

Respondem a qualquer crítica no modelito consagrado pelas redes: quem diverge, diverge porque se sente pessoalmente ofendido por aquilo que critica e, ao divergir, passa recibo da importância de seu suposto inimigo, uma ameaça em potencial a seu lugar no mundo.

Não se poderia mesmo esperar outra coisa de uma cultura centrada em monólogos e umbigos, na qual é inconcebível que se possa querer discutir questões que digam respeito ao coletivo, e não apenas ao sagrado direito à “monetização”.

Cevados pelas editoras com pagamentos ou, mais frequentemente, simples remessas de livros, os booktubers celebram a vitória dos critérios de mercado sobre quaisquer outros.

Democratizar leitura é vender muito – não importando a qualidade do que se vende. Mistura de populismo de mercado com anti-intelectualismo, a filosofia booktuber atualiza o princípio de Monteiro Lobato de que “um país se faz com homens e livros”. É só olhar em volta e ver em que Brasil vivemos hoje.

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