Por Paulo Roberto Pires
Vamos combinar que é preciso uma generosa suspensão do
espírito crítico para levar a sério, cultural ou intelectualmente, os chamados
booktubers. Trata-se, como se sabe, de uma subespécie dos digital influencers, criaturas do reino digital que, devido à notoriedade
adquirida na web ou fora dela, têm a propriedade de direcionar de alguma forma
comportamento, gostos e, claro, consumo de seus “seguidores” nas redes sociais.
Como não existe almoço grátis, os influenciadores estão aí,
na vida, sujeitos a ser influenciados por um presente ou um dinheirinho para,
em retribuição, influenciar quem por eles é influenciável. O booktuber, como
diz o próprio nome – assim mesmo, em português –, busca influenciar leitores
falando sobre livros que em tese o influenciaram e que na prática podem
influenciar as vendas.
Pois lá estavam eles, falando pelos cotovelos, influenciando
geral, quando o escritor e jornalista Ronaldo Bressane resolveu postar em suas
redes sociais a tabela de uma booktuber para o que ela chama de “leitura/divulgação/resenha
em vídeo”.
Se o autor – ou, como é mais comum, a editora – desembolsar
R$ 2 mil, pode ver seu livro ser mencionado com dois outros num vídeo em que a
influenciadora expõe suas “impressões de leitura”. Como ela ressalva, não se
trata de um comentário qualquer, mas de impressões “pessoais, sem interferência
do autor/editora”.
Por R$ 3.500, a influência fica mais forte: pode-se ter um
vídeo inteirinho para o livro. Com R$ 5 mil, além da atenção exclusiva, a capa
do livro é postada por aí e aparece em vídeo dos outros.
O que parece um documento de barbárie foi, no entanto,
defendido nas redes como evidência de cultura, de uma nova cultura.
Na chusma de comentários que se seguiu ao post, lê-se
claramente a tese de que crítica literária e mídia são instituições falidas,
que não se comunicam com um número expressivo de pessoas, ou seja, que não
influenciam ninguém – e que, portanto, não têm mais relevância. Ou só a teria
num desprezível círculo de “intelectuais”, caricaturados como elitistas de um
Antigo Regime intimidado pela estridente choldra digital.
Nos tempos que se querem novos, opinião e orientação de
consumo dão no mesmo e a mediação cultural profissional é substituída pelo
princípio “uma webcam na mão e nenhuma ideia na cabeça”.
Os vídeos obedecem a uma fórmula simplória. Informações de
orelha e Wikipédia sobre os autores são papagaiadas a título de “contexto” e
introdução aos comentários, na prática um resumo da trama com obsessivos
alertas sobre spoilers. Depois vem o momento impressionista do “gostei” disso,
“não gostei” daquilo, “me emocionei”.
Boa parte dos livros comentados enquadra-se no lucrativo
nicho do “jovem adulto”, o que quase sempre nivela crítica e criticado. Mais
dramáticas são as resenhas de clássicos – eu vi, ninguém me contou, o elogio a
uma tradução por “não ter erros de digitação” e ressalvas ao Diário de Anne
Frank por causa das “vibrações ruins” do Holocausto.
Como se pôde ver claramente no episódio da tabela das
“impressões de leitura”, os booktubers e seus apologistas orgulham-se de sua
ignorância e defendem o amadorismo num reiterado elogio do desconhecimento de
causa.
Respondem a qualquer crítica no modelito consagrado pelas
redes: quem diverge, diverge porque se sente pessoalmente ofendido por aquilo
que critica e, ao divergir, passa recibo da importância de seu suposto inimigo,
uma ameaça em potencial a seu lugar no mundo.
Não se poderia mesmo esperar outra coisa de uma cultura
centrada em monólogos e umbigos, na qual é inconcebível que se possa querer
discutir questões que digam respeito ao coletivo, e não apenas ao sagrado
direito à “monetização”.
Cevados pelas editoras com pagamentos ou, mais
frequentemente, simples remessas de livros, os booktubers celebram a vitória
dos critérios de mercado sobre quaisquer outros.
Democratizar leitura é vender muito – não importando a
qualidade do que se vende. Mistura de populismo de mercado com
anti-intelectualismo, a filosofia booktuber atualiza o princípio de Monteiro
Lobato de que “um país se faz com homens e livros”. É só olhar em volta e ver
em que Brasil vivemos hoje.
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