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terça-feira, setembro 18, 2018

Custa falar mal?



Por Ruan de Sousa Gabriel

Nos últimos dois fins de semana, discussões sobre crítica literária tomaram os rincões do Twitter. No domingo da semana passada, dia 12, discutiu-se o ensaio que Camila von Holdefer publicou na Ilustríssima em defesa da “crítica hostil”. Camila criticou a suposição de que a crítica negativa seria “um exercício vazio, nocivo ou datado”.

Como sempre, houve quem aplaudisse a defesa de uma crítica literária que não teme ferir os sentimentos de escritores sensíveis e quem argumentasse que crítico literário não é jurado rabugento de reality show. O que animou esse último fim de semana foi a “treta dos booktubers”. O escritor Ronaldo Bressane divulgou um e-mail trocado com um booktuber que só resenharia o livro dele “após aprovação de orçamento”.

Esse booktuber cobra entre R$ 2 mil e R$ 5 mil para divulgar um livro. Alguns comentários sobre o livro em um “vídeo coletivo [com outros dois livros]” custam R$ 2 mil. Por R$ 3 mil, o escritor ainda descola divulgação da capa e da sinopse do livro no Facebook, no Instagram e no Twitter – o booktuber tem mais de 60 mil seguidores no Facebook, mais de 74 mil no Instagram e quase 20 mil no Twitter. Além de quase 288 mil inscritos em seu canal no YouTube. Os R$ 5 mil compram um vídeo individual, de cinco a dez minutos, e divulgação completa nas redes sociais. No e-mail, o booktuber garantia que seus comentários seriam “pessoais, sem interferência do autor/editora”.

Como sempre, houve quem se escandalizasse com a capacidade de cobrar por uns comentários literários. O prazer da leitura já não é recompensa suficiente? Não é meio indecente – um pecado, talvez – misturar poemas e moedas? Ninguém pode servir a dois senhores. Não podeis servir à literatura e ao dinheiro. E houve quem se lembrasse de que ninguém paga boletos com versos de Fernando Pessoa ou ensaios criativos sobre os contos de Borges.

O escândalo com a gula dos vídeo-resenhistas repetia aquela antiga crítica ao próprio ofício dos booktubers: quem são eles para falar de literatura? E ainda mais num formato tão baixo como um vídeo no YouTube? Ok, quem poderia então falar de literatura – e onde? Todos sabemos a resposta. Críticos sisudos naqueles suplementos literários que acompanham os jornais aos sábados (e que não existem mais). Esses críticos, sim, sabem que o prazer do texto vale mais do que dinheiro.

Mas os resenhistas dos jornais também não escrevem de graça. É claro, eles não são pagos pelos próprios escritores ou pelas editoras, mas pelo dono do jornal, o que (a princípio) lhes dá mais independência. O resenhista de jornal colabora para uma empresa e às vezes tem até um patrão. O booktuber é um empreendedor que presta um serviço. O escritor é seu cliente. Será que ele pode desagradá-lo?

A “treta dos booktubers” foi um pouco sobre qual é a exata definição do serviço que eles prestam (se publicidade ou crítica) e um pouco sobre as dificuldades de manter a independência intelectual quando há dependência financeira. É tranquilo para um booktuber falar mal do livro de um escritor que acabou de transferir R$ 5 mil para a conta dele? Não existe a tentação de agradar o cliente, aquele papo “servir bem para servir sempre”?

Destroçar os livros de seus escritores-clientes pode ser ruim para os negócios. Mas elogiar todo mundo que paga não pega bem com o público, que pode trocar esse booktuber por um improvável resenhista de jornal. Talvez haverá sempre algo de nebuloso no negócio dos booktubers: eles fazem divulgação ou uma nova modalidade de crítica literária, mais em sintonia com os novos tempos?

No fim desse domingo literário, os tuiteiros tinham chegado a um acordo: o booktuber pode cobrar por resenha, mas deve deixar isso claro para seus seguidores. A “treta dos booktubers” me levou a reler o texto da Camila von Holdefer na Folha de S. Paulo, assunto do domingo anterior. Suspeito que as discussões dos dois fins de semana sejam sobre a mesma coisa: custa falar mal? E mais: precisa falar mal?

A crítica mais corajosa é mesmo aquela que puxa a orelha dos autores que erram na regência dos verbos ou no destino dos personagens? O ensaio da Camila é uma boa declaração de princípios: um crítico não deve ter medo de criticar, de apontar inconsciências, de afrontar. Mas será que a crítica hostil também não é um pouco problemática – e talvez ultrapassada?

O louvor à “crítica hostil” me parece entronizar o crítico num lugar de “juiz do gosto”. A literatura se torna um lugar a ser atingido. Para merecer uma boa resenha – um “excelente”, um “muito bom”, quatro ou cinco estrelas –, um escritor deve saber usar bem as vírgulas, não abusar dos advérbios terminados em “mente” e tomar cuidado com as metáforas.

Ou seja: para ser boa literatura, a literatura deve se submeter a algumas regras, se esforçar para atingir determinados padrões. Mas a boa literatura não é muitas vezes aquela que subverte as regras e tortura as palavras para que elas digam algo de novo? Dostoiévski e Roberto Arlt foram repetidas vezes acusados de praticar uma escrita rude e sem brilho, mas alguém ainda duvida que eles foram escritores fantásticos?

O crítico hostil é um pouco defensivo, pratica uma leitura rancorosa e lê romances com um lápis afiado à mão, pronto para corrigir os erros de escritores indolentes. Ele sabe todas as respostas. Mas o que acontece quando a literatura inventa novas perguntas?

Não acho que a boa crítica precisa ser implacável, como o pai de Kafka. Em vez de lutar com o texto, o crítico pode brincar com ele – um pouco de promiscuidade também vale. Uma briga só serve para medir a força ou o preparo técnico de alguém. Quem entende de criatividade é a brincadeira.

Um bom crítico dialoga com o texto, formula perguntas à medida que a leitura avança e, sobretudo, permite que o texto também o questione, o escandalize, o irrite. Como disse um amigo meu, “boa crítica talvez seja aquela que prolonga e recoloca a obra em outros termos – para o bem ou para o mal”.

Fiquei pensando se recolocar uma obra em outros termos também não é permitir ser recolocado, ou seja, concordar que a literatura nos deixa desconfortáveis, sem resposta, com raiva. Aceitar essa posição desconfortável e abandonar as luvas de boxe na hora da leitura não significa se contentar com uma crítica pouco rigorosa ou condescende, mas entender que o crítico não é nenhum juiz.

Um crítico menos interessado em argumentar contra ou a favor de um livro e mais curioso quanto à qualidade e à inteligência das perguntas que um texto é capaz de formular me parece ser um crítico mais corajoso e capaz de instigar outras pessoas à prática da leitura – não importa se ele exercita essa curiosidade no papel ou num vídeo no YouTube.

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