Abril de 1973. Dono de uma pequena tapera na Lagoa do Arari, em São Sebastião do Uatumã, o velho agricultor Jorge Emerenciano, o “Joca Farol”, casado com dona Sebastiana Tavares, era um emérito contador de histórias. Sabia tudo sobre curupira, saci pererê, caapora, mapinguari, iara, cobra grande, juma, rasga-mortalha, boto encantado, caboquinho da mata, visagens, encantados e o diabo a quatro. A molecada da comunidade fazia roda para ouvir seus relatos. Só havia uma coisa capaz de tirar o velho do sério: alguém interromper as suas histórias com alguma pergunta impertinente. Esse descuido era fatal. O velho se fechava em copas e não abria mais a boca.
Em uma determinada noite, uns dez moleques foram visitar Joca Farol. Ele estava numa cadeira de balanço, pitando seu fumo e observando as estrelas. Pediram para que ele contasse uma de suas fantásticas histórias.
– Conto não! – devolveu. – Esse moleque aí (e apontou para Dirceuzinho) vive interrompendo minhas histórias. Conto não! Só conto se ele for embora...
Os moleques confabularam entre eles e voltaram com o veredicto: o Dirceuzinho tinha jurado que ia ficar de matraca fechada. Ele podia contar sua história.
Joca Farol ficou calado alguns minutos, enquanto preparava um novo cigarrinho de fumo de rolo com sua faca fina, matutou, matutou, aí começou a falar:
– Esse acontecido já faz muito tempo. Na época, eu devia ter uns 20, 21 anos, nem lembro direito. Só sei que eu era um rapagão forte, bem nutrido. Mas o que assucedeu foi o seguinte. Eu havia colocado umas malhadeiras no Lago da Sucuri, para pegar uns tucunaré-borboleta, aí, enquanto esperava pela hora de pegar o pescado, fiquei pelado na praia e comecei a tomar banho de cuia, porque fazia um sol da muléstia. Mas não entrei no lago não, fiquei ali na parte rasa daquele mundão de água, bem na beira da praia. De repente, senti uma coisa se enroscando no meu tornozelo. Rapaz, fiquei gelado de medo! Era uma sucuriju de quase dez metros. Eu fiz força para tirar o pé da rodilha, mas não teve jeito. A bicha me levou pra dentro d’água. Aí, tamos nós dois lá no fundo, eu tentando livrar o pé, a cobra querendo me afogar, quando peguei na cabeça da bicha de jeito. Também, não contei conversa: segurei nos dois lados da boca da maldita, fiz força, muita força, para abrir aquela bocarra, até que consegui quebrar o maxilar da infeliz. Ela me soltou. Só que enquanto eu abria a boca da monstra, um dos dentes dela cortou de leve a minha mão e começou a sangrar. Quando tomei tenência, tinha um cardume de piranha vermelha me atacando, atraídas pelo sangue. Eu já tava quase sem fôlego, mas não me dei por vencido. Sai dando porrada e chutes nas piranha, nadando pra longe do cardume, até que consegui chegar na praia, coberto de sangue, porque piranha vermelha é um bicho filho da puta, onde toca leva um lasco. Quando estou limpando o sangue do corpo, ouço atrás de mim um esturro. Só deu tempo de eu me virar. Uma onça preta, que era um bitelo, já vinha em disparada na minha direção. Ela deu o bote, tentando pegar o meu pescoço, mas eu aparei a monstra com meu braço esquerdo. Os dentes dela cravaram no meu pulso, quase atingiram o osso. Com o braço direito, eu puxei a faca da cintura e...
– Peraí, seu Joca! Se o sinhô estava nu, como foi que tirou a faca da cintura? – interrompeu o Dirceuzinho.
Joca Farol apoplético, à beira de um ataque de nervos:
– Tá vendo?... Tá vendo?... Esse moleque não quer ouvir histórias, o que ele quer é discutir...
E não abriu mais a boca.
A molecada, frustrada com a interrupção do relato cinematográfico, quase encheu o Dirceuzinho de porrada.
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