Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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terça-feira, setembro 01, 2009
Nos tempos da Redentora
O imponente prédio de três andares da área de administração da Sharp do Brasil
Agosto de 1978. Funcionário da Sharp do Brasil desde 1973, onde entrara com 17 anos, eu tinha tudo para ser um executivo bem sucedido: engenheiro eletrônico formado na primeira turma da Utam, cursava o 2.º ano de Administração na FUA, era assessor técnico do Diretor Industrial (Antônio José Areosa, filho do ex-governador Danilo Areosa, que era o Diretor Superintendente) e homem de confiança de Matias Machline, o dono da empresa. Na época, a Sharp era a maior empresa da ZFM com cerca de 5 mil funcionários e três unidades fabris.
A partir de 1975, de vez em quando eu era despachado na sexta-feira à noite pra São Paulo levando documentos sigilosos para serem entregues pessoalmente na mansão do Morumbi, onde morava o clã Machline, e retornava pra Manaus na noite de domingo trazendo novos documentos, também sigilosos, para serem entregues na Suframa.
Eu aproveitava essas viagens para também levar alguns discos importados para o primogênito do empresário, José Maurício, que tinha a minha idade, pequenos mimos para a dona Carmem, enviados pelo Tomzé Areosa, e algumas engenhocas eletrônicas para o caçula, Paulo, então com nove anos. Com os dois outros filhos do empresário, Sergio e Carlos Alberto, meu relacionamento era apenas protocolar.
Além de pombo-correio de luxo, comecei a participar de outras traquinagens altamente sigilosas, incluindo “contrabando” de peças de reposição para as assistências técnicas da empresa espalhadas pelo país, já que a legislação vigente impedia a importação das peças pelas vias legais. Como já se passaram mais de trinta anos, espero que o crime tenha prescrito.
O “contrabando” era simples. Alguém da minha equipe (Jaques Castro, Francisco Neto, Anselmo, Assis e Zeca Boy, todos técnicos de mão cheia e funcionários de confiança) retirava o chassi de uma televisão ou de um aparelho de som e enchia o aparelho de peças de reposição (válvulas, transistores e circuitos integrados) até ele ficar com o mesmo peso original.
Aí, bastava identificar o aparelho com os dizeres “Segregar no Almoxarifado Central e enviar aos cuidados de Paulo Aratangy – Engenharia de Campo – Sharp do Brasil – São Paulo”, colocava o selo de "internação" e entocava o aparelho-muamba dentro de uma carreta.
Por fax, eu informava ao Paulo Aratangy em que carreta estava seguindo a “encomenda” e a quantidade de componentes enviados, com códigos de fabricação e preço FOB. Não lembro dos números, mas em três anos eu devo ter enviado mais de US$ 800 mil em peças de reposição.
O empresário Sérgio Machline à frente do retrato do pai, Mathias Machline
Em 1977, eu havia passado dois meses no escritório central da Sharp, na avenida Bela Cintra, em São Paulo, sendo treinado para liderar uma reorganização funcional na empresa idealizada por alguns economistas da FGV (nos anos 90, esse procedimento adotaria o pomposo nome de “reengenharia”) e estava prestes a passar uma temporada na terra do Sol Nascente, estagiando na Sharp Corporation, prometida para o início de 79. Foi quando a cobra Norato se mexeu embaixo do cais do porto.
Recém-chegado dos Estados Unidos, onde fizera um curso de pós-graduação no Massassuchets Institute of Tecnology (MIT), o engenheiro eletrônico Geraldo Nogueira, irmão do ex-Secretário de Educação, Vicente Nogueira, e meu colega de turma na Utam, foi contratado, em junho de 78, para me auxiliar na tarefa de “reengenharia”.
A gente logo descobriu o truque embutido na nova organização preconizada pela FGV. Os grumetes nativos (nós, de Manaus, que havíamos colocado a mão na massa e transformado a Sharp numa potência) iriam apenas servir de escada para os executivos paulistas abordarem a embarcação e controlar o navio. Expliquei para o operariado o que estava acontecendo e eles me mandaram ir em frente.
Nas internas, a batalha já havia começado. O atual deputado estadual Liberman Moreno, na época Gerente Contábil da empresa, estava ensinando a legislação aduaneira para um sujeito medíocre que depois, automaticamente, seria seu novo chefe.
O ex-prefeito de Novo Airão, Luis Carlos Areosa, na época Gerente Administrativo, estava ensinando as normas e procedimentos da empresa para um sujeito mais medíocre ainda, que depois também seria seu chefe.
A mesma coisa estava ocorrendo dentro das fábricas (no meu caso específico, dei um pouco mais de sorte: meu “virtual” novo chefe seria o talentosíssimo engenheiro argentino Daniel Dazcal, fundador da Tec Toy e morto precocemente de câncer em meados dos anos 90).
As cartas estavam dispostas na mesa e não havia ponto de retorno. Ou nós partíamos para a radicalização, exigindo que os cargos gerenciais continuassem nas mãos dos amazonenses, ou seríamos simples “lambaios” da paulistada, cuja competência empresarial era bastante discutível (tanto que a empresa faliu...).
Optamos pela primeira via e, em plena ditadura militar, no mês do cachorro louco, fizemos a primeira greve do Distrito Industrial, com paralisação total do operariado.
Durante três dias, eu, Geraldo, Liberman, Luís Carlos, Reinildo, Lean, Sales e os demais gerentes encaramos o aparato militar colocado em campo pelo Matias Machline com o único intuito de nos intimidar.
Na calada da noite, um dos gerentes roeu a corda e nos entregou (eu e Geraldo) de bandeja. Fomos os únicos demitidos no final das negociações.
Machline prometeu mundos e fundos para quem retornasse ao trabalho, afirmando categoricamente que não haveria represálias. Claro que ele não cumpriu o acordo e, nos seis meses subseqüentes à greve, mais de 80% dos gerentes foram substituídos ou simplesmente demitidos.
O diabo é que o famigerado Grupo de Relações Industriais (GRI), uma máfia formada por gerentes e chefes de pessoal do Distrito Industrial, plantou o boato de que aquele movimento nativista estava sendo orquestrado pelos engenheiros eletrônicos da Utam.
Da primeira turma de formandos, quem trabalhava no Distrito foi demitido sumariamente: Engels Medeiros e Carlos Almeida (Evadin), Adalberto de Melo Franco e Paulo Roberto Saraiva (Semp-Toshiba), Aldenir Alencar (Telefunken), e por aí afora. Com os nomes inscritos na lista negra do GRI, nossa única alternativa era tentar o serviço público.
Carlos Almeida e sua filha Tatiana, no dia de casamento da mesma
Em novembro de 78, ainda desempregados, estávamos discutindo o que fazer da vida (assaltar um banco, seqüestrar um empresário paulista, explodir as fábricas da ZFM ou se mudar para o interior) num boteco chamado Farol das Batidas, em frente à TV Amazonas, na Cachoeirinha, quando um sujeito todo de branco passou pela nossa mesa.
Carlos Almeida achou que era o garçom e pediu mais uma nova rodada de batidas. O sujeito explicou que não era garçom, que tinha entrado no bar apenas para comprar cigarros, e a gente caiu na gargalhada. Bêbado ri de tudo.
Quinze minutos depois estaciona ruidosamente uma camionete Veraneio da Polícia Militar em frente ao boteco e descem do carro seis policiais da tropa de choque armados de metralhadoras. Eles encostam as armas nas nossas costelas e começam a nos xingar, numa balbúrdia infernal.
Geraldo e Engels tentam confabular, mas são escorraçados. O sujeito de branco reaparece, aponta para o Carlos Alberto e diz “foi aquele”. Os meganhas se lançam em cima dele, torcem seus braços para trás, algemam, abrem a porta do camburão e o jogam lá dentro, com brutalidade. Aí, ligam a sirene e saem cantando pneus no rumo da Praça Catorze. A cena toda não durou três minutos.
Entramos em pânico, já que naquela época era comum a repressão “sumir” com os inimigos do regime (Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho haviam sido mortos no ano anterior, na PE paulista). Adalberto de Melo Franco me levou à casa do ex-senador Artur Virgilio Filho, que eu ainda não conhecia, onde relatei o ocorrido.
Ele nos mandou procurar urgentemente o Felix Valois ou o Paivinha. Era um sábado, início da noite, e no escritório jurídico mais famoso de Manaus estava apenas o Alberto Simonetti, debruçado sobre um processo volumoso.
Explicamos logo nossa situação: estávamos desempregados e, portanto, sem condições de pagar um tostão furado pela causa. Ele nos tranqüilizou: “Quem mandou vocês aqui foi o nosso senador Artur Virgílio Filho? Então é uma causa justa, meu irmão!”
O Simona agiu como um verdadeiro herói. O sujeito de branco era um coronel aposentado da PM, que dava expediente na Segunda Seção. As prisões efetuadas por ele não eram registradas nos livros de ocorrências das delegacias e o preso ficava no isolamento total.
Para soltar alguém que o tal coronel prendia, somente com uma ordem pessoal do comandante da PM, na época o coronel Oyama. Para completar o quadro, o coronel Oyama havia ido pernoitar em um sítio na Manaus-Itacoatiara.
Até hoje não sei a mágica, mas Simonetti conseguiu falar com o coronel (provavelmente por meio de um rádio-amador), que entrou em contato com o comando geral da PM, na Praça da Polícia, autorizando a liberação do detido.
Com um oficial da PM a tiracolo, Simonetti rodou praticamente todas as delegacias de Manaus procurando pelo detido. Em cada uma delas, o advogado ameaçava processar o delegado plantonista se este estivesse mentindo sobre o paradeiro do rapaz.
Finalmente, por volta da meia noite, ele localizou Carlos Almeida numa delegacia do Japiim, depois que o engenheiro fez um verdadeiro escarcéu ao escutar, da cela, a discussão do advogado com o delegado.
Carlos havia sido colocado no isolamento, junto com o bandido conhecido por “Osga”, que anos depois seria morto pela polícia. Segundo ele, “Osga” havia apanhado tanto que nem conseguia ficar de pé e os policiais já haviam advertido que ele seria o próximo.
Nossa dívida com o Alberto Simonetti, portanto, sempre foi impagável (nos dois sentidos), mesmo porque nós não lhe demos, sequer, o dinheiro da gasolina.
Carlos Almeida é hoje procurador de contas do TCE e professor universitário. O empresário Matias Machline morreu num acidente de helicóptero, nos EUA, em 1994. A justiça decretou a falência da Sharp do Brasil em 2000. Há dois anos, Sergio Machline tenta reerguer a empresa. Torço para que consiga.
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6 comentários:
Poxa, estou gostando muito de ler suas postagens, cada fato intrigante,mas q vc conta com um certo humor, muito legal mesmo.
Poxa, estou gostando muito de ler suas postagens, cada fato intrigante,mas q vc conta com um certo humor, muito legal mesmo.
Voltei para fazer o seguinte acréscimo ao que disse no comentário anterior: Matias Machline era muito amigo do Sarney.
Acho que não preciso dizer mais nada. Bob Bruza
Matias Machline era especulador da bolsa na época em que Naji Nahas quebrou a Bolsa do Rio.
Pow não conhecia esse blog, muito bom.
opa. eu descobri casualmente o seu blog. tb trabalhei na sharp, mas entre 1985 e 1986, na area de informatica. apos todos esses anos, eu perdi totalmente o contato com os colegas de trabalho, mas ainda sinto saudades daquela época. nao moro mais em manaus, mas gostaria de ver imagens da fabrica da sharp, pois naquela epoca tirar fotografica era só pra quem tinha $$$$. espero ver mais fotos da fabrica, aqui. sucesso pra voces.
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