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quinta-feira, março 10, 2011

Praga de letras


Luís Antônio Giron, da revista Época

Não quero soar indulgente demais com a novíssima geração, mas guarde bem estes nomes: Jovane Nunes, Angélica Lopes, Lúcio Manfredi e Natalia Klein. Esses rapazes e moças com idade média de 30 anos são responsáveis por atacar, rapinar e destruir a memória literária brasileira.

O quarteto faz parte da primeira leva de escritores nacionais de romances mash-ups, um gênero surgido há um ano nos Estados Unidos que consiste em remixar clássicos, repaginando-os para o gosto moderno. Há um mês, a editora LeYa, de origem portuguesa, pôs no mercado os seguintes volumes de mash-ups dentro da “Coleção Clássicos Fantásticos”, pertencente ao selo Lua de Papel: O alienista caçador de mutantes, de Machado de Assis & Natalia Klein, Dom Casmurro e os discos voadores, de Machado de Assis & Lúcio Manfredi, Senhora, a Bruxa, de José de Alencar & Angélica Lopes e A escrava Isaura e o vampiro, de Bernardo Guimarães & Jovane Nunes.

No texto de apresentação, essas obras são descritas como recriações de grandes romances. “Como seriam alguns de nossos clássicos se tivessem sido escritos hoje? (...) Quatro autores com grande experiência em humor e em roteiros para TV se debruçaram sobre consagradas histórias e criaram novas versões que, mesmo incluindo elementos fantásticos e inusitados, preservam o significado original das obras”.

Esta última parte do press release é de doer. A crer no que os editores da coleção nos assegura, trata-se de uma empreitada de preservação, na qual a casa de Dom Casmurro na rua de Matacavalos é invadida por alienígenas, o Alienista é perseguido por mutantes, Senhora vira bruxa e se envolve em cultos satânicos e a pobre Escrava Isaura sofre assédio sexual de um vampiro digno do Edward da saga Crepúsculo.

Pode ser tudo, menos preservação do significado das obras. Pode ser uma brincadeira de gosto duvidoso, mas afirmar que romances como os citados seriam escritos do jeito que foram escritos se fossem escritos hoje só pode ser zombaria irresponsável. O resultado comercial da aventura é típico do nosso tempo: os 35 mil volumes enviados às livrarias já se esgotaram.

Certamente muitos estudantes cansados dos livros originais, verdadeiras “chatices” impostas pelos professores e pelo vestibular, estão se divertindo com a transformação de personagens clássicos em idiotices subculturais. Essas publicações são um ultraje a literatura nacional.

Eu me pergunto se a LeYa vai cometer o mesmo crime de lesa-literatura com Eça de Queirós, Luís de Camões, Fernando Pessoa, Antônio Vieira e outros mestres portugueses. Minha preocupação é que os livros originais estejam inexoravelmente arruinados pelo contágio dos mash-ups – e que estes passem a ser adotados nas escolas e universidades com o objetivo de reacender o interesse dos jovens na leitura.

Na dinâmica do intertexto literário, do ciclo infinito de leituras, interpretações, releituras e influências, as abordagens ilegítimas no estilo mash-up são um estorvo à compreensão real do fenômeno artístico real. Constituem um perigo que agora se tornou inevitável.

Há alguns meses, escrevi sobre o fenômeno desencadeado pelo publicitário Seth Graham-Smith, que fez sucesso com o romance Pride and Prejudice and Zombies, que promovia a trituração do romance Orgulho e preconceito de Jane Austen. O livro foi em seguida lançado no Brasil, com algum sucesso, enquanto que mundo afora pipocaram mash-ups, ou romances liquidificados, de autores clássicos.

Naquele artigo, eu brincava com a ideia de a moda pegar no Brasil e passarem a liquidificar, ou liquidar, romances nacionais. Imaginei Dom Vampurro, Iracema, a virgem dos lábios de sangue – e outras bobagens. Achei graça e agora tenho de dobrar a língua (ainda bem que herdei essa capacidade geneticamente transmitida, pois há muita gente que jamais dobra a língua nem literal nem metaforicamente). Relendo o que inventei, já não consigo achar graça. Porque o que tentei foi fazer paródia, e paródia não é exatamente o procedimento do gênero “mash up”.

Na realidade, esses autores não querem operar um distanciamento humorístico da obra original, e sim de se apropriar indevidamente de obras que estão em domínio público, e assim se aproveitar da fama delas para criar produtos semelhantes a histórias em quadrinhos ou narrativas pulp.

São romances baratos mesmo, que se querem assim, sem qualquer outra pretensão que a de ferir a tradição, tirando uma casquinha dela. Explorar o acervo passado sem atitude crítica, sem critério, com a autoridade do historicamente inevitável que é a juventude.

Eis aí um grupo de escritores que se acha no direito de enxovalhar a memória de intelectuais que deram a vida ao cultivo da língua. Com que direito? Com o direito de estarem vivos e suas vítimas, não.


Confesso sentir um pouco de repugnância ao abrir esses livros de autores que maltratam autores mortos, que não podem se defender. Vamos conhecer todos. A carioca Natalia Klein, que ousou enlamear O alienista, aparece toda bonitinha com seu ar primaveril e irônico na orelha do livro, dizendo-se “fâ incondicional de Monty Python, Seinfeld e Larry David”. Se ao menos ela tivesse copiado algumas falas desses humoristas...

Mas seu livro é uma mixórdia indescritível. A vila de Itaguaí, palco dos desvarios do médico Simão Bacamarte e seu hospital, recebe a visita de uma espaçonave. A certa altura, o protagonista se associa a mutantes. O pior é acompanhar a autora: “Nesse momento, entrou na vila uma força comandada por Simão Bacamarte, eram os chamados emissários do alienista, um grupo de mutantes escolhidos a dedo (sic) para restabelecer a ordem de Itaguaí. Eram seis deles, com poderes tão extraordinários que os tornavam praticamente deuses. Sua lista de habilidades incluía a invisibilidade, a levitação e a capacidade de reorganizar seus genes de modo a se transformar em qualquer pessoa que desejassem.” Nossa, que engraçado.


Outra machadada no Machado vem do roteirista Lúcio Manfredi, apresentado como escritor de ficção científica. Ele atacou o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Além de uma narrativa rala e eivada de cretinismos, o autor comete erros de português.

Bentinho aqui também é carcomido de ciúmes e sonha com um encontro entre sua mulher Capitu e seu melhor amigo, Escobar. Ouça o diálogo, com direito a errinhos de português, perdoáveis porque nosso jovem autor é parceiro de Machado, não é mesmo?

“Naquela mesma noite, tive um sonho que misturava os ciúmes do mar, Escobar e Capitu. Minha mulher e meu amigo encontravam-se ambos de pé ao lado da cama onde eu continuava deitado. Escobar segurava na mão uma caixa preta, de onde saía um fio prateado que me entrava pelo umbigo. A caixa era uma espécie de relógio, com um mostrador brilhante. Os dois conversavam enquanto ele manuseava o aparelho.

- Não se preocupe – dizia Escobar -, ele não vai compreender nada do que você falou.

- Mas ficou espantado.

- Não é para menos. Você exagerou um pouco, não acha?

- A culpa é de Bentinho, que me irritou!

- Está bem, está bem – contemporizou Escobar. – Todos nós cometemos erros. Afinal, somos humanos - e arrematou a observação com uma risadinha sarcástica.

- Você não vai relatar o incidente ao Nommo-Dagon, vai?

- Não vejo porquê (sic) – Escobar balançou a cabeça. – É só você não tocar mais no assunto que Bentinho acaba esquecendo.

No sonho, eu não entendia como eles podiam falar assim de mim, sem perceberem que eu estava acordado.”

Não vou contar o final de Dom Casmurro e os discos voadores. Mas, só para estragar um pouquinho o desprazer de chegar a essa besteira até o fim, conto que Simão Bacamarte aparece – com guelras de mutante.


José de Alencar, patriarca do Romantismo, também não escapou da sanha de Angélica Lopes, uma autora de oito livros que se diz amante dos folhetins e das reviravoltas. O que ela fez com Senhora é obra de quem é amante da sevícia narrativa.

O casal Fernando e Aurélia recebe a visita das irmãos Blair, bruxas celtas que assombram a harmonia do casal. Na célebre cena do baile, uma delas penetra na mente de Fernando, por meio de um pepino envenenado que lhe foi servido pouco antes do baile. Tudo acaba bem, com “as Blair” (sic) indo embora. No final, os dois se beijam. “Uma gota de saliva produzida nesse beijo, se recolhia em um frasco de ametista, poderia ser utilizada como o ingrediente principal da poção para a Felicidade Eterna no Amor – uma das fórmulas secretas que constavam no (sic) Livros das Sombras da Família Blair.”

Se, a essa altura, José de Alencar não se revirou no túmulo e se converteu em vampiro, o mundo literário está realmente perdido...


Agora vamos entrar no ambiente fétido de A escrava Isaura e o vampiro, parceria involuntária de Bernardo Guimarães com “um dos grandes representantes do novo humorismo brasileiro”, como é descrito na orelha de seu livro Jovane Nunes.

Isaura é envolvida com vampiros escravagistas e há até uma batalha de zumbis no fim do romance.

O próprio autor explica: “Esta obra horripilante é baseada em fatos mentirosos e qualquer semelhança com a realidade é mera criação do autor. Digo isso para fugir de qualquer tipo de reclamação na justiça. Meus advogados e a próprio editora me aconselharam a tomar esse cuidado. É possível que algum vampiro se sentia prejudicado em sua imagem e queira me processar. Quando a isso (sic), deixo claro que não tenho nada contra os vampiros. Particularmente, não gosto de bebe sangue, mas não tenho nada contra quem faz isso socialmente.”

Ah! Ah! Ah! Ah! Como é engraçado alguém que arranca as vísceras de Isaura, para convertê-la em um fantoche ridículo: “O dia amanheceu, Isaura deu graças a Deus que era de dia (sic), pois assim eles poderiam tomar banho, fazer as refeições, ouvir o alaúde de Álvaro e dormir sem o perigo de um ataque de vampiros. Tinham almoçado uma deliciosa salada – ninguém queria saber de carne que logo se lembravam do churrasco de zumbis – quando Vó Zequinha disse que não sabia mais o que fazer. Ninguém poderia vencer um vampiro numa luta, os orixás foram derrotados, os santos católicos nem apareceram para a briga, deviam estar lutando em outro lugar do mundo com uma força mais poderosa o ajudando alguém mais necessitado. Nada poderia vencer um vampiro, nada.”

Será que algum professor vai se levantar para protestar contra essas barbaridades? Eu gostaria de que a Academia Brasileira de Letras se manifestasse oficialmente contra esses crimes lesa-arte. Ou será que o Ministério da Educação vai acabar adotando essas obras nas escolas, pois já o fez com romances considerados pornográficos?

Mais grave que a ausência de critério da editora, que aceita deturpar o conteúdo de romances clássicos e acha que fica livre de culpa porque declara falsamente que as obras não ferem o original; mais sério que a falta de pudor desses jovens autores já rancorosos e invejosos do passado, que poderiam dirigir seus pretensos talentos a suas próprias obras; o pior de toda essa liquidação da memória das letras brasileiras é que são livros pessimamente escritos. Entendo o leproso literário que anseia contaminar os vizinhos saudáveis e assim perpetrar sua miséria. Mas não perdoo a falta de talento.



PS: Esse texto paradidático do Giron foi publicado no dia 5 de outubro do ano passado. Até então eu acreditava que a praga dos mashups estava circunscrita ao ambiente musical. Ledo ivo engano!

3 comentários:

Anônimo disse...

Mash up pode ser a palavrinha que significa "total falta de capacidade em criar ou ser algo de novo ou original" o Brasil é um mash up ridículo dos EUA. Tiririca e Romário seriam mash ups de políticos como JK ou Getúlio ? É\a idolatria da idiotice muitas vezes com a conivência e culpa da mídia e pessoas de mídia que transformam mequetrefes em gênios. Aqui mesmo neste espaço já ví rasgação de seda pra idiotas simão. Onde os critérios de julgamento ?

Simão Pessoa disse...

Ô, anônimo, o único critério de julgamento aqui no mocó é não ter critério algum. De mais a mais, gosto não se discute...

Anônimo disse...

Discordo. Gosto se discute sim. Bom gosto. Mau gosto se lamenta...