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sábado, junho 30, 2012

Caxuxa Blues (5)


Em 1882, um comerciante português chamado Antonio José da Costa, proprietário de uma quitanda na Rua da Instalação, mandou confeccionar uma tabuleta com a pintura de um homem coberto de trapos e abaixo do desenho colocou uma legenda: “Ao Pobre-Diabo”.

Devido à existência dessa tabuleta na entrada de seu comércio, o comerciante passou a ser chamado pela população de “pobre-diabo”.

Em 1895, ele se casou com Cordolina Rosa de Viterbo e passou a residir na Praça Floriano Peixoto, na média Cachoeirinha, onde montou uma casa de diversões chamada High Life.

Alguns anos depois, o comerciante ficou muito doente deixando sua jovem esposa cada vez mais aflita.

Por ser devota de Santo Antonio, ela fez uma promessa a esse santo rogando a cura do marido.

Caso este ficasse restabelecido da enfermidade, ela mandaria construir uma igreja em louvor ao santo.

Um suposto milagre acabou acontecendo e o velho “pobre-diabo” ficou curado da enfermidade.


Com o pronto restabelecimento do marido, Dona Cordolina pagou a graça alcançada mandando construir uma pequena capela nas proximidades de sua residência, na rua Borba, que acabou sendo batizada pelos moradores de “Igreja do Pobre-Diabo”.

A igrejinha foi inaugurada no dia 26 de novembro de 1897. Logo após a inauguração da igreja, o casal se mudou para Belém (PA), onde o comerciante acabou falecendo alguns anos depois.

Dona Cordolina retornou a Manaus e doou a igrejinha para o Bispado.


Com capacidade máxima para 20 pessoas, a igrejinha do Pobre-Diabo passa a maior parte do tempo fechada, sendo aberta apenas nas comemorações do dia de Santo Antonio.

Virou ponto turístico da Cachoeirinha.


Em 1898, durante o processo de urbanização do bairro, foi construída a Praça Benjamin Constant, onde atualmente funciona a empresa Amazonas Energia, e em frente à praça, um grande barracão de madeira convertido na primeira feira do bairro, que ficou conhecida como Mercadinho da Cachoeirinha.

No mesmo local funcionou também o grupo escolar Guerreiro Antony, em homenagem ao coronel Antonio Guerreiro Antony.

Em 1927, o antigo grupo se transformou na Escola de Aprendizes Artífices do Amazonas com cursos profissionalizantes de desenho, alfaiataria, marcenaria e tipografia.

Em 1937, com o início da industrialização do Brasil, a escola foi obrigada a modificar seu perfil e se adequar às necessidades de ensino voltado para a área industrial, surgindo, então, o Liceu de Artes e Ofícios de Manaus.

Em 1942, o Liceu de Artes e Ofícios de Manaus se mudou para novas instalações, na avenida Sete de Setembro canto com a rua Duque de Caxias, na Praça 14, e passou a se chamar Escola Técnica Federal de Manaus (ETFM), oferecendo o curso ginasial tradicional e cursos em nível técnico nas modalidades Edificações (“Pedreiros de Luxo”), Eletrotécnica (“Macacos de Poste”) e Mecânica (“Engraxates Come Graxa”).


Em 1965, a ETFM passa a se chamar Escola Técnica Federal do Amazonas (ETFA) e incluiu um novo curso, Estradas (“Mateiros Com Teodolito”).

Além do alto padrão de qualidade de ensino, a ETFA era o sonho de consumo da molecada porque era um dos poucos colégios que possuía um campo de futebol oficial e porque nas oficinas de mecânica havia um conjunto de tornos aptos a produzir os melhores piões de madeira de lei da cidade.


Outros dois destaques eram a banda marcial da escola (“fanfarra” parece coisa de viado), com sua batida inconfundível, e a dança folclórica dos Tarianos, mais conhecida como “Dança do Cacetinho”, que eletrizava o público do estádio General Osório durante suas apresentações no Festival Folclórico do Amazonas.

Até 1970, a ETFA era um feudo exclusivamente masculino, a exemplo de outra instituição federal, o Colégio Agrícola do Amazonas, que funcionava na Colônia Oliveira Machado, em um local conhecido como “Paredão”.


Em 1971, ano em que prestei mini-vestibular para a ETFA, as mulheres foram aceitas pela primeira vez na instituição.

Eu era o menor (e mais novo) estudante da turma, mas ao cabo de três anos de aprendizagem o ingênuo coiote de antanho se transformou em um autêntico lobo sanguinário.

Com exceção do cigarro, meus outros vícios (mulheres, birita e livros) foram aperfeiçoados durante meu convívio diário com a alcateia.


Em 1973, ao me formar com pompa e circunstância, fazia parte da histórica “primeira turma mista de Eletrotécnica”.

Entre as alunas que se formaram comigo na mesma turma, estava a hoje pedagoga Rosa Maria Vital, esposa do sociólogo e livreiro Kim Melo.

Os dois são proprietários da Banca do Largo, que tem como carro-chefe a venda de livros de autores amazonenses, e do charmoso “Tacacá da Gisela”, que semanalmente promove o evento cultural “Tacacá na Bossa”, ambos localizados na Praça São Sebastião.

Nos anos 80, a ETFA se transformou em CEFET (“Centro Federal de Tecnologia”), depois incorporou o Colégio Agrícola e implantou novas escolas técnicas federais no interior do estado, se transformando em ITAM (“Instituto Tecnológico do Amazonas”) e ofertando cursos de graduação, pós-graduação e mestrado nas áreas tecnológicas.


Morador da Cachoeirinha, meu brother Preto Fernando, considerado o mais longevo jogador do Peladão (disputou todas as competições, de 1973 a 2010, defendendo a Tuna Luso e o Zaire, pelo qual se sagrou campeão em duas oportunidades) e hoje apresentador de um programa esportivo, na TV Ufam, é um dos professores-símbolos da instituição.

Meu sobrinho Simão Neto, filho do Nelson e da Selane, está se formando no CEFET e já desponta como um dos novos gênios da terceira geração da família Pessoa.

Decorem bem esse nome e depois me contem, porque o moleque vai fazer barulho pra caralho!


Em 1899, o bairro da Cachoeirinha ganhou o primeiro velódromo da cidade, construído por um grupo de comerciantes locais que havia conhecido o Velódromo Paulistano (o primeiro do país, inaugurado em 1892, em São Paulo) e ficado encantado.

Batizado de Velódromo Recreio, ele possuía pistas ovais revestidas de madeira semelhante às pistas dos “motordromes” existentes nos EUA na mesma época.

A parte frontal do velódromo ficava na rua Santa Isabel, os fundos na rua Silves, e a lateral na rua Urucará.

Naquela época, corredores estrangeiros e do sul do país desembarcavam semanalmente de vapores no Roadway para participar de competições de bicicletas, motocicletas e tandem bike, um tipo de bicicleta mais comprida com dois, três ou seis assentos.

Esse divertimento igualava-se ao futebol dos dias de hoje, com milhares de pessoas participando ativamente das competições e torcendo pelos seus atletas favoritos.

Alguns corredores marcaram época em Manaus, como o espanhol Sebastian Neira, o português José Bento e o brasileiro Alcebíades Alves, hoje nome do principal ginásio esportivo de Ivaiporã (PR), onde nasceu.

Quando deixou de funcionar, em meados dos anos 30, o Velódromo Recreio já era considerado o melhor velódromo do Brasil.


Em 1944, no mesmo local, foi construído o Velódromo Álvaro Maia, sob a supervisão do engenheiro Deodoro D’Âlcantara Freire, que havia adquirido o terreno abandonado com as antigas instalações.

O novo velódromo, feito totalmente em alvenaria, possuía área para patinação, tênis, boxe, basquete, voleibol e pistas de atletismo, além de cabines para a imprensa, vestuário, banheiros e salas de serviços médicos.

A pista de velocidade possuía 250 metros de extensão e 35 graus de inclinação, sendo considerada pela imprensa especializada como a melhor pista do Brasil e a segunda da América do Sul (só perdia para a do Velódromo Municipal de Montevideo, no Uruguai, considerado ainda hoje uma das três melhores pistas do mundo).


Os tipos de corridas disputadas nessa época eram entre as motocicletas Indian e Harley Davidson, os ciclomotores Velocette, Cotton e Douglas e as bicicletas com aros de madeira, pneus de seda e pião preso com roda livre, isto é, sem freios.

As marcas de bicicletas de corrida mais utilizadas eram Raleigh e Peugeot.

O scratch era o primeiro dos cinco tipos de corrida de bicicleta disputadas no velódromo.

Consistia em quatro voltas na pista, num total de mil metros.

Nos primeiros 800 m, os ciclistas traçavam táticas de ataque e defesa. Só eram cronometrados os últimos 200 m.

A modalidade denominada corrida de fundo assemelhava-se à anterior, exceto quanto à distância (10 mil metros) e ao número de voltas (40).

A prova do quilômetro contra relógio era individual e consistia em conseguir o melhor tempo num percurso de mil metros.


Na perseguição individual, os ciclistas se colocavam em lados opostos da pista e, ao sinal do juiz, começavam a perseguir-se mutuamente durante cinco voltas.

Seria vencedor o que chegasse primeiro a sua meta ou alcançasse o adversário.

A última das provas de velódromo era a de perseguição por equipes.

Tinha uma eliminatória contra relógio, que classificava oito equipes para as quartas-de-final e seguia a disputa nos mesmos moldes da perseguição individual.

O velódromo também oferecia outras atrações como competição individual de patins, demonstração de patins rebocados por motocicletas e corridas de bicicletas coladas a motocicletas.


Nesse último tipo de competição, os ciclistas, para ganhar velocidade, prendiam a traseira da bicicleta em uma motocicleta e, depois de um determinado número de voltas, a motocicleta saía da pista enquanto os corredores continuavam a corrida para ver quem seria o vencedor da prova.

Entre os principais ciclistas da cidade estavam Melhoral, Tupã, Muiraquitã, Colibri, Rocha, Flecha, Perônio, Torpedo, Induzido, Belgique, Tubarão, Rapidoca, Mucuim, Catavento, Faísca, Curió e Timba.

Todos eles possuíam torcidas organizadas e eram muito populares entre os esportistas da cidade.

Algumas vezes, na área central do velódromo, era montado um ringue para competições de luta livre, boxe, judô e jiu-jítsu.

Nos finais de semana, o velódromo recebia um público estimado em três mil pessoas.


Fanático por corridas de velocidade, Deodoro D’Alcântara Freire resolveu viajar para a Europa e os EUA a fim de manter parcerias com os proprietários de outros velódromos e realizar intercâmbio para a exibição de atletas sem ser obrigado a pagar cachês milionários.

Seu sonho, no entanto, não chegou a ser concretizado: ele faleceu em 1950, quando retornava de uma dessas viagens.

Com a morte do proprietário e principal incentivador do esporte em Manaus, sua família vendeu o velódromo para a firma comercial do Dr. Bezencry.

O empresário transformou as arquibancadas e as dependências utilizadas como vestuário, depósito de bicicletas, enfermaria e posto médico em autênticos “cabeças de porcos”, posteriormente alugados para famílias de baixa renda.

A área interna do circuito oval foi transformada em um campo de futebol, que resistiu até o início dos anos 80, quando o antigo velódromo se transformou em depósito da Serraria Moss.


Durante três décadas, o campo do velódromo (um dos únicos campos gramados da Cachoeirinha) serviu como palco para um dos mais organizados campeonatos de futebol amador da cidade, tendo revelado grandes craques como Mário Gordinho e Edmar Macaco.

Hoje, no local, funciona uma lanchonete do grupo Habib’s.

quinta-feira, junho 28, 2012

A última pegadinha do Mução



O radialista Rodrigo Vieira Emerenciano, mais conhecido como Mução, está preso temporariamente por suspeita de disponibilização de material de pornografia infantil na internet.

A informação foi confirmada esta manhã durante entrevista coletiva concedida pela Superintendência da Polícia Federal em Pernambuco sobre a operação DirtyNet.

Mução foi detido esta manhã na casa onde mora, na cidade de Meireles, em Fortaleza e encaminhado para Superintendência da Polícia Federal daquele estado. Sob custódia da PF, ele pode ser recambiado para o Recife a fim de prestar depoimento sobre o caso.

De acordo com investigações realizadas pela PF, o radialista faria parte de um círculo fechado de 160 pessoas, 97 estrangeiras e 63 brasileiras, que trocavam conteúdo ilegal com imagens de adolescentes e crianças em situações pornográficas.

Além do mandado de prisão temporária contra Mução, os policiais federais também cumpriram mandados de busca e apreensão em imóveis do radialista no bairro da Imbiribeira, no Recife, em Fortaleza e em Natal e ainda na emissora de rádio onde ele atua, no bairro de São José, no Recife. 

Nos locais foram apreendidos materiais como computadores, CDs e DVDs.


A prisão temporária de Mução é de cinco dias, podendo ser prorrogada. 

Segundo a PF, no entanto, devido às provas já obtidas em e-mails e no cruzamento de informações durante as investigações, iniciadas em dezembro, pode mudar a prisão temporária para preventiva.

A produção do programa “A Hora do Mução”, apresentado pelo humorista, negou a informação nesta manhã, afirmando que o programa será transmitido normalmente de Fortaleza nesta quinta-feira, a partir das 17h.

A página de Mução no Twitter, @mucaoaovivo, chegou a ser atualizada na manhã desta quinta-feira, 28, com as frases “Bom dia pra você que acordou com um gosto de maçaneta de banheiro químico na boca”, “Bom dia pra você que está passando limão no sovaco de uma Miss” e “Bom dia pra você que está mais atrasado do que a morte do Niemeyer”.

Rodrigo Vieira Emerenciano é filho da ex-secretária da Receita Federal Lina Maria Vieira, que ocupou o cargo por cerca de 11 meses, sendo demitida pelo ministro Guido Mantega em virtude do desgaste da sua imagem na disputa do órgão com a Petrobras envolvendo o recolhimento de impostos na estatal.

O humorista nasceu em Natal, capital do Rio Grande do Norte, mas estava morando em Fortaleza. 


Mução ficou famoso em todo o país por suas pegadinhas, feitos pelo telefone, durante um quadro diário em uma emissora de rádio, a “Hora do Mução“.

O número de presos na Operação Dirty-Net já chega a 18 em 11 estados e no Distrito Federal. 

As investigações começaram em 2011, pela Polícia Federal do Rio Grande do Sul. 

São cumpridos 50 mandados de busca e apreensão e 15 mandados de prisão. 

Segundo a PF, integrantes do grupo trocavam arquivos contendo cenas degradantes de adolescentes, crianças e até bebês em contexto de abuso sexual.

Se condenados, os presos podem ter pena de 4 a 10 anos de reclusão, pela Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que diz “possuir ou disponibilizar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.

Os alvos brasileiros da operação compartilhavam material de pornografia infantil com outros usuários da internet em mais 34 países: Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Bósnia, Canadá, Chile, Colômbia, Croácia, Emirados Árabes Unidos, Equador, Estados Unidos, Filipinas, Finlândia, França, Grécia, Indonésia, Iran, Holanda, Macedônia, México, Noruega, Peru, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Rússia, Sérvia, Suécia, Tailândia e Venezuela.

A Polícia Federal comunicou, através da Interpol, os países envolvidos para que os seja dado prosseguimento às investigações.

As ordens judiciais estão sendo cumpridas nas cidades de Porto Alegre, Esteio e Santa Maria (RS), Belo Horizonte, Montes Claros, Uberaba, Uberlândia, Varginha e Divinópolis (MG), Curitiba, Foz do Iguaçu, Maringá e Guaíra (PR); Fortaleza (CE); Natal (RN); Rio de Janeiro, Niterói e Nova Iguaçu (RJ); São Paulo, Santos, São José dos Campos e Piracicaba (SP); Recife (PE); Salvador (BA); São Luís do Maranhão (MA); Vitória (ES) e Brasília (DF).

quarta-feira, junho 27, 2012

Caxuxa Blues (4)


Para viabilizar a chegada de linha de bonde ao bairro da Cachoeirinha, o governador Eduardo Ribeiro decidiu construir uma ponte metálica na avenida Sete de Setembro, no ponto em que o igarapé do Mestre Chico deságua no rio Negro.

A nova ponte foi construída no período de 1892 a 1895, com todas as peças importadas da Inglaterra e sob a supervisão do engenheiro Frank Hirst Hebblethwaite.

A ponte recebeu vários nomes: Terceira Ponte, Ponte Metálica, Ponte da Cachoeirinha e Ponte Benjamin Constant, mas até hoje é conhecida pelos moradores como “Ponte de Ferro”.

O serviço de viação por bondes foi inaugurado em Manaus em 1896, ainda durante o governo Eduardo Ribeiro. 


Funcionando em caráter provisório, estava sob a responsabilidade do engenheiro Frank Hirst Hebblethwaite e contava com apenas duas linhas que tinham por fim interligar a área urbana com os subúrbios, ou seja, as áreas mais distantes com o centro da cidade.


A estação central estava localizada na Praça XV de Novembro, tendo como referência o Pavilhão Universal, localizado nas proximidades dos armazéns da Booth Line.


O serviço atendeu inicialmente aos limites compreendidos pela estrada Epaminondas, entre a Praça Uruguayana e a Praça Cinco de Setembro, e entre esta praça e o Igarapé do Baptista, no final da estrada Epaminondas, no bairro de Flores, nas proximidades de onde hoje está o estádio Vivaldo Lima, praticamente na zona rural da cidade.

A outra linha partia da Epaminondas pelo Boulevard Amazonas até o Cemitério São João Batista, no Alto do Mocó.


Mais tarde, uma nova linha foi inaugurada partindo da estrada Epaminondas, nas proximidades da Ponte dos Bilhares, e seguindo em direção ao bairro de São Raimundo pela estrada velha via ponte de ferro da Cachoeira Grande, que deu origem à famosa  “Rua da Cachoeira”, do bairro de São Jorge.

Em 1900, os serviços estavam sob a responsabilidade da Manáos Railway Company, empresa inglesa que recebeu consideráveis auxílios para sua instalação na capital, mas, desde o começo, os seus serviços foram considerados muito precários pela população.

Deste período é válido ressaltar uma solicitação curiosa: a imprensa noticiava com frequência que a população solicitava o prolongamento do horário dos bondes até o fim dos espetáculos quando houvesse programações no Teatro Amazonas.


Em 1909, a concessão dos transportes por bondes foi entregue à empresa The Manáos Tramways and Light Co. Ltda, com sede e usina de força central no Plano Inclinado, no bairro de Aparecida, que gerenciou simultaneamente os serviços de bonde e o sistema de energia elétrica do Estado.

A empresa, também de origem inglesa, destacou-se por traçar uma política com posicionamento rígido voltado para a eficiência dos serviços de bonde. 

Seus funcionários, todos estrangeiros, seguiam normas que favoreciam ao cumprimento de quadro de horário e freqüência no número de viagens. 

Trabalhavam uniformizados e atendiam com cortesia aos usuários dos bondinhos.


Em janeiro de 1913, uma nota publicada no jornal O Tempo demonstrou haver, realmente, uma proposta de qualidade nos serviços desenvolvidos pela Manáos Tramways. 

A mensagem trazia a seguinte informação: “A Manáos Tramways tem a honra de avisar ao respeitável público que nas noites da véspera e dia de São João, 23 e 24 de junho, haverá bondes para todas as linhas durante todas as noites e será aumentado o número dos mesmos para a linha de Flores”.

A expansão do perímetro urbano da cidade transformou o bairro da Cachoeirinha em passagem e ponto obrigatório dos serviços de bonde, fazendo com que o governo estadual arrendasse, em forma de contrato, este novo serviço para o engenheiro cubano Antônio de Lavandeyra (responsável pela construção das docas do Porto Flutuante de Manaus) pelo prazo de 70 anos.

No dia 9 de julho de 1918, entretanto, o contrato sofreu alterações, e o gerenciamento dos bondes da Cachoeirinha foi transferido para a The Manáos Tramways and Light Co. Ltda.

Para melhor servir os usuários, a empresa construiu um prédio situado na antiga Praça Benjamin Constant, na saída da ponte metálica, que servia de garagem dos bondes, laboratório de carpintaria e mecânica, almoxarifado e oficina de manutenção dos carros da companhia.


O aumento da população, entretanto, forçou a ampliação do sistema elétrico da cidade e a criação de uma distribuidora de energia que servisse de apoio à usina central, fato concretizado em 1939, com a inauguração de uma sub-usina (hoje Amazonas Energia), na mesma praça.

Por volta da década de 40, disputando passageiros com os bondinhos pelas vias de Manaus, passaram a circular os primeiros ônibus – confeccionados em madeira e montados sobre chassis de caminhões – que faziam linha para todas as áreas urbanas e suburbanas da cidade. Foi a partir desse período que a situação dos “bondes elétricos” começou a ficar comprometida.


A exemplo dos barcos regionais, os ônibus de madeira possuiam nomes próprios pintados nas laterais: Eneida, Progresso, Brasil, Radiant, Monte Ararate, Hilariante, Torino, Hudson, Silvia, Girassol, Santa Helena, Nazaré, Santa Inês, Isabel, etc.

Em pouco tempo, várias kombis-lotação (chamados de “expressos”) juntavam-se aos ônibus de madeira na disputa por passageiros, tornando ainda mais complicada a existência dos bondes.

Em 1949, a economia de Manaus apresentava-se complemente desmantelada e o fornecimento de energia era racionado, o que prejudicava o funcionamento dos bondes. 


Pouco a pouco, a Manáos Tramways foi perdendo o interesse pelos serviços de viação e, em 1950, apresentou um relatório no qual alegava que os bondes eram os principais responsáveis por seus prejuízos.

Em 1951, o gerenciamento dos serviços elétricos e, por conseguinte, o transporte por bondes, passou a ser responsabilidade do Estado, por iniciativa do governador Álvaro Maia. 

No mesmo ano, o jornal A Crítica publicou uma notinha dizendo que “os serviços elétricos do Estado são presentemente, verdadeira calamidade, nem luz, nem bonde, nem força.”

Apesar das inúmeras dificuldades, os bondinhos permaneceram atuantes por mais de 60 anos. 

Eles só deixaram de trafegar em 1957, por decisão do governador Plínio Coelho, mas contra a vontade da população, que via neles um eficiente e barato meio de locomoção e uma alternativa a mais em termos de transporte coletivo.


O jornalista Mário Adolfo, meu sócio no vibrante CANDIRU, tem uma história recorrente a respeito dos bondes da cidade: ele conta que fabricou muito cerol de papagaio colocando pedaços de vidro nas linhas férreas para serem pulverizados pelos bondinhos.

Bom, quando os bondinhos deixaram de circular, em 1957, o Mário Adolfo estava com três anos.

Efetivamente, uma linha do bondinho passava pela rua Borba, diante da sua casa, mas custa crer que a Dona Inês Aryce de Castro fosse capaz de deixar um fedelho de três anos se aproximar daquela linha férrea, ainda por cima portando cacos de vidro nas mãos para supostamente fazer cerol.

E, apesar de tê-lo visto preparando cerol no final dos anos 60, quando éramos adolescentes, não creio que ele fosse capaz de desenvolver aquela complicada atividade quando estava com apenas três anos de idade.

O problema é que o Mário Adolfo não dá a mínima para as minhas contestações pertinentes e continua repetindo a mesma história sempre que nos encontramos para encher a caveira de birita.


Os principais roteiros de bondes na Cachoeirinha eram os seguintes:

Circular Cachoeirinha – Praça XV de Novembro, Sete de Setembro, Ponte Metálica, Waupés, Curva da Morte, Ipixuna, Borba, Manicoré, Carvalho Leal, Belém, Praça Chile (Cemitério São João Batista), Belém (em frente ao Parque Amazonense), Boulevard Amazonas, Silva Ramos, Epaminondas, Instalação e Praça XV de Novembro.

Cachoeirinha-Sete de Setembro – Praça XV de Novembro, Sete de Setembro, Ponte Metálica, Waupés, Curva da Morte, Ipixuna, Borba, Manicoré e Carvalho Leal até a Casa Amarela, no cruzamento das ruas Codajás e Carvalho Leal. Voltava fazendo o mesmo percurso.

Linha do Pobre Diabo – Praça XV de Novembro, Sete de Setembro, Ponte Metálica, Waupés, Curva da Morte, Ipixuna, Borba e Santa Isabel, até a igreja do Pobre Diabo. Voltava fazendo o mesmo percurso.

Parada Campelo – Praça XV de Novembro, Sete de Setembro, Waupés, Curva da Morte, Ipixuna, Borba, Manicoré e Carvalho Leal até a Casa Campelo, no cruzamento das ruas J. Carlos Antony e Carvalho Leal. Voltava fazendo o mesmo percurso.


O cruzamento das ruas Waupés e Ipixuna ganhou o nome de “Curva da Morte” por ser uma curva extremamente fechada e de péssima pavimentação, que não oferecia boa visibilidade aos motoristas.

O trecho da Waupés entre a Ipixuna e a Silves era entrecortado por vários igarapés, de forma que necessariamente os motoristas que vinham pela Waupés eram obrigados a dobrar à direita, na Ipixuna, para alcançarem o resto do bairro da Cachoeirinha.

Dos vários acidentes lá acontecidos, um batizou definitivamente o nome da curva.

O fato teve como protagonista o motorista do empresário Abadon Azaro, um abastado comerciante local, que residia à rua da Instalação, no centro da cidade, e era proprietário da famosa Drogaria Comercial.

Como a maioria dos endinheirados da época, Abdon Azaro possuía um carro inglês de marca Buick.

Certa noite, o motorista escapou à vigilância do patrão e saiu no carro em alta velocidade em direção a Cachoeirinha, onde uma cabrocha o aguardava para os embates de Eros.

Quando entrou na curva a 80 km/h, o carro derrapou nos trilhos do bonde, capotou, e o chofer teve uma morte trágica porque o vidro da porta do carro decepou-lhe a cabeça.

Alguns anos depois, um caminhão da fábrica Fitejuta transportando vários funcionários e camburões de água para debelar um incêndio que ocorria no parque fabril da empresa, localizado na Carvalho Leal, entrou na curva em alta velocidade, também derrapou nos trilhos e capotou, matando um ocupante do caminhão e deixando outras dez pessoas em estado grave.

Mais tarde, o comerciante José Carvalho estava caminhando pelo meio-fio em direção ao seu estabelecimento (Casa Carvalho) quando foi atropelado pelo ônibus Radiant, que também havia entrado na curva em alta velocidade.

Felizmente, apesar das fraturas e das escoriações generalizada, seu Carvalho sobreviveu para contar a história e hoje a Banda do Carvalho, que se reúne na sexta-feira magra em frente ao seu bar, tem sua concentração localizada exatamente na “Curva da Morte”.


A Cachoeirinha foi o primeiro bairro de Manaus a ser servido por uma linha de ônibus, sendo o responsável pelo pioneirismo o motorista Adelmo Marques (aka “Dedé”), que inaugurou a linha com o ônibus “Periquito da Madame”.

O veículo era um caminhão com cobertura de madeira na carroceria e diversos bancos de madeira para dois passageiros dispostos em seu interior, um formato logo copiado por outros donos de caminhões.

O ônibus saía da Praça Oswaldo Cruz, seguia pela Sete de Setembro, entrava na Waupés, seguia até a “Curva da Morte”, pegava as ruas Ipixuna, Borba, Manicoré e Carvalho Leal até a Casa Amarela, retornando pelo mesmo trajeto.

Ele foi batizado com aquele sugestivo nome devido ao sucesso de uma marchinha carnavalesca, composta por Nestor de Holanda, Carvalhinho e Teixeira, que fez muito sucesso no carnaval de 1947: “O periquito da madame come milho, / come arroz, / come feijão, / mas quase sempre, / o periquito da madame, coitadinho, / sofre indigestão! / Eu trato bem / o periquito da madame, / tenho cuidado com a sua refeição. / Não compreendo por que é / que o tal bichinho, / coitadinho, / sofre indigestão!”.



Aparentemente, qualquer pessoa que possuísse um caminhão podia convertê-lo em um ônibus e depois obter uma licença da prefeitura para trafegar em determinadas linhas.

De uma hora para outra, centenas de ônibus começaram a circular pela cidade.

O ônibus mais famoso de Manaus era o Radiant, pintado nas cores azul marinho e rosa, também feito de madeira.

Suas “porfias” com outros ônibus pelas ruas da Cachoeirinha deixavam os passageiros com o coração na boca.

O ônibus mais estranho era o Sputnik, no formato de um dirigível Zeppelin, pertencente ao seu Hudson, dono do posto de gasolina Constelação, localizado ao lado da Casa Amarela.


Os zepelins eram confeccionados em Belém do Pará pela Viação Sul Americana. Tinham carroceria de madeira, ferro e flandres, pintados externamente na cor de alumínio. O interior era forrado em couro e os bancos, alcochoados. Em vez de cobradores, eram tripulados por ‘aeromoças’.

No início dos anos 60, foram vendidos para Manaus e São Luiz. Antes disso, porém, inspiraram uma marchinha carnavalesca muito famosa em Belém: “Mamãe eu quero, quero / andar de zepelim, / com tanta mulher boa / dando sopa, está pra mim”.

A maior frota de ônibus de madeira e, por extensão, a que mais provocava acidentes, era formada pelos ônibus vermelhos e brancos chamados Ana Cássia, cuja garagem ficava em Santa Luzia, de propriedade do empresário Cirilo Anunciação, o “Batará” .


O Hilariante, pintado nas cores verde e amarelo, foi o primeiro ônibus de ferro a circular na cidade, tendo sido fabricado em São Paulo pela empresa Marcopolo.

Apelidados de “rabo quente” porque possuíam uma descarga vertical superaquecida na parte traseira, os ônibus de ferro praticamente levaram à extinção a prática de “morcegar” os veículos, colocada em prática pela molecada desde que os primeiros ônibus começaram a circular.

Era quase impossível se aproximar da traseira do ônibus por causa do calor que irradiava da descarga.

A brincadeira de “morcegar ônibus” consistia em se pendurar feito um morcego no parachoque traseiro dos ônibus e circular por alguns quarteirões, para espanto e desespero dos transeuntes que achavam a brincadeira muito perigosa.

terça-feira, junho 26, 2012

A estrada sem fim



Eduardo Bueno
(Introdução ao livro On The Road, publicado em agosto de 1997)

Por volta da meia-noite de 4 de setembro de 1957, Jack Kerouac e Joyce Johnson, a jovem escritora com a qual estava vivendo, saíram do apartamento onde moravam, no Upper West Side, em Nova York, para esperar, numa banca de jornais que ficava na esquina da Rua 66 com a Broadway, pela edição do dia seguinte do New York Times – cuja sede se ergue naquelas imediações.

Kerouac fora alertado por seu editor que o romance On The Road, que ele escrevera havia quase dez anos mas só então estava sendo publicado, seria resenhado naquele dia pelo prestigiado jornal americano.

Sob a luz de um poste, Jack e Joyce folhearam velozmente as páginas do Times até depararem com a crítica.

Assinada por Gilbert Millstein, ele dizia “On The Road é o segundo romance de Jack Kerouac e sua publicação é um evento histórico, já que se trata de uma genuína obra de arte (...). O romance vertiginoso é o mais belamente executado, o mais límpido e se constitui na mais importante manifestação já feita pela geração que o próprio Kerouac, anos atrás, batizou de beat e da qual o principal avatar é ele mesmo.”

Estava deflagrado o mito de On The Road.

Mito, sim, e em vários dos sentidos que a palavra pode adquirir.


On The Road de fato estava destinado a se tornar o que O Sol Também Se Levanta, de Ernest Hemingway, tinha virado, uma década antes, para a chamada Geração Perdida – embora viesse a influenciar muitas gerações além da sua própria, e muitas mais do que o clássico de Hemingway.

No entanto, On The Road se transformaria num livro-prisão para Jack Kerouac e, ainda pior, passaria a ser designado por chavões do tipo “bíblia hippie” (embora tal bando jamais tenha sido dado a grandes leituras) e sendo, desde então, permanentemente vinculado aos mais variados desatinos cometidos na “louca” década de 60.

A lenda em torno de On The Road se inicia justamente a partir da resenha do New York Times.

O episódio, narrado em detalhes pela própria Joyce Johnson em seu livro Minor Characters (“Personagens Secundários”) – no qual ela também conta que, após ler a resenha, Jack ficou sacudindo a cabeça como se não conseguisse compreender porque não estava tão feliz quanto deveria” –, foi utilizado para abrir a longa introdução que Ann Charters, a mais famosa das biógrafas de Kerouac, fez para uma edição recentemente lançada pela Penguim Books (de olho no 40° aniversário da publicação do livro).

Embora saiba exatamente o que se passou logo após a publicação da resenha do Times (já que escreveu sobre isso no Kerouac – Uma Biografia), Ann Charters preferiu ignorar tais acontecimentos nessa nova introdução.

Afinal, o que houve nos dias seguintes não se enquadra na lenda de On The Road, embora (ou talvez por isso mesmo) esteja diretamente ligado à realidade do livro.


A legendária resenha de Millstein – tão similar à resenha que, cinco anos mais tarde, Robert Shelton escreveria no mesmo New York times, catapultando Bob Dylan num piscar de olhos do anonimato para a fama (e não deixa de ser uma amarga ironia o fato de que o talento de artistas como Kerouac e Dylan tenha precisado do aval do Times para ser plenamente reconhecido) –, a tal resenha inicial, foi publicada numa terça-feira.

No domingo seguinte, 10 de setembro de 57, numa edição cuja tiragem, respeitabilidade e índice de leitura costumam ser mais do que o dobro da das terças, o crítico David Dempsey – chefe de Millstein – também resenhou o livro.

Embora o considerasse “letalmente legível e divertido”, Dempsey lastimava que On The Road não tivesse “nenhuma moldura mais ampla dentro da qual seus personagens pudesse se desenvolver”.

Mais do que isso: depois de comparar Kerouac desfavoravelmente a Thomas Wolfe e Saul Bellow, Dempsey se revelava ofendido pelo fato de que, ante a “tanto sexo, adultério e abuso de drogas”, o autor “demonstrasse um ponto de vista moralmente neutro”.

Era apenas o começo: uma semana mais tarde, no dia 17 de setembro, a revista Time, em tom severo e paternal, acusava Kerouac de estar “dando fundamento à explosiva juventude que, de um canto a outro do país, se agrupa em tono de jukeboxes e se mete em arruaças sem motivo aparente em plena madrugada”.

Se não foi capaz de se livrar nem da pecha de subliterato – que lhe seria imposta por resenhistas obtusos nos dias seguintes ao lançamento de On The Road –, Kerouac teria ainda mais problemas por causa da cruzada moral que se ergueu contra ele, e nem mesmo todo o reacionarismo e azedume direitista dos últimos anos de sua vida seria capaz de “redimi-lo” perante a grande Associação de Pais e Mestres que é a América conservadora.


De todo o modo, Kerouac tornou-se, instantaneamente (e por pouco tempo), uma celebridade americana logo após o lançamento de On The Road.

Teve que responder milhares de vezes o que significava a palavra beat – e o fazia com elipses, hipérboles e vertigens que frustravam os repórteres e irritavam os editores.

Foi durante esse boom publicitário que cercou o lançamento do livro – e que jamais voltaria a se repetir para Kerouac –, que ele próprio ajudou a propagar alguns dos mitos que, 40 anos depois, ainda envolvem On The Road.

O principal deles é que o livro teria sido escrito em três semanas.

(Quando On The Road estava na lista dos dez mais vendidos do New York Times, o que aconteceu durante as cinco semanas posteriores ao lançamento do livro, Kerouac foi entrevistado no programa de Steve Allen. Lá, disse que passara “sete anos na estrada” e levara “três semanas para escrever tudo”, ao que Allen rebateu, dizendo que, certamente, ele passara três semanas na estrada e levara “sete anos para escrever o livro”.)

De fato, uma das versões de On The Road fora escrita entre 9 e 27 de abril de 1951, num rolo de papel para telex, num total de 40 metros ininterruptos de prosa, em espaço 1 e sem parágrafo, com Kerouac aditivado por doses colossais de benzedrina, suando uma camiseta a cada três horas, datilografando como um alucinado 14 horas por dia, movido por aquilo que o poeta Lawrence Ferlinghetti certa vez chamou de “febre onívora de observação”.


Mas, ao longo dos anos em que o original foi sendo recusado por uma editora após outra, Kerouac o reescreveria inúmeras vezes.

Além do mais, quando a Viking Press, enfim, decidiu lançar o livro, forçou Kerouac a suprimir algumas passagens.

Outras, o próprio editor, Malcolm Cowley, se encarregou de cortar (além de incluir “milhares de vírgulas inúteis”, segundo Kerouac).

Assim sendo, a “prosa espontânea” de Jack Kerouac praticamente inexiste em On The Road, embora tenha se materializado em outros livros dele, especialmente em Visions Of Cody, lançado postumamente.

On The Road é o mais lendário e o mais famoso, mas não é o melhor dos 23 livros que Jack Kerouac escreveu ao longo de 47 anos de vida.

Tal posto é ocupado exatamente por Visions Of Cody – também devotadamente dedicado a Neal Cassady, o Dean Moriarty de On The Road.

Redigido em 1951 e publicado em 1971, Visions Of Cody resume e apreende todo o esforço de Kerouac em modular os contornos de sua “prosa espontânea” e remete ao On The Road original, antes de sua submissão às “sugestões” inquisitoriais dos fulanos da Viking (“Eles queriam uma estrada destituída de todas as curvas”, disse Kerouac anos depois, ao passo que seu desejo era “percorrer a tortuosa estrada profética de William Blake”).


De todo modo, em ambos os livros, Kerouac estava disposto a forjar uma nova prosódia americana, capturando com palavras o som das ruas, das planícies e das estradas dos EUA, e libertando a literatura americana de determinadas amarras acadêmicas e de um certo servilismo a fórmulas europeias (ou europeizantes).

Ao fazê-lo, Kerouac introduziu o som na prosa – antes e mais do que qualquer outro romancista.

Suas frases repletas de vogais – muitas delas presentes em On The Road, apesar da tesoura dos censores – possuem uma rima interna insidiosa e envolvente, de tal forma que várias passagens se assemelham a longos poemas em prosa jogados, quase perdidos ou desperdiçados em meio à fluidez aquosa do texto.

O mais irônico é que, na verdade, Kerouac desenvolveu esse estilo – o estilo beat por excelência: laudatório, verborrágico, impressionista, vertiginoso, incontido, “espontâneo”, repleto de sonoridade, de gíria, de coloquialismo e de aliterações – a partir das cartas que recebeu de Neal Cassady, o jovem delinquente juvenil que, no capítulo 1 de On The Road, vem procurar Kerouac para aprender “a ser um escritor”.

Ao transformar Cassady no herói de On The Road (e de Visions Of Cody), Kerouac acabou reduzindo-o ao papel de eterno coadjuvante.


Embora tenha se tornado uma figura maior do que a vida (o motorista sem limites do mais desvairado ônibus da história, aquele que conduziu Ken Kesey, os Merry Pranksters e o Grateful Dead pelas estradas da América, para a realização dos acid-tests, antes que o LSD fosse proibido), ao morrer, com o corpo repleto de barbitúricos e tequila, ao lado dos trilhos do trem, no México, em fevereiro de 1968, Neal Cassady não havia conseguido se tornar um escritor: seu legado verbal vive na obra de Kerouac.

E, de qualquer modo, não seriam Neal Cassady nem Visions Of Cody, mas Jack Kerouac e On The Road, o autor e o livro que moveriam montanhas.

O fôlego narrativo desvairado, o imaginário proto-pop, o frescor libertário, o fluxo ininterrupto de sua avalanche de palavras, imagens, promessas, visões e descobertas acabaram por tornar On The Road exatamente aquilo que o chavão define como “a bíblia de uma geração”.
A diferença é que tal geração se multiplicaria em muitas.

Bob Dylan fugiu de casa depois de ler On The Road. Chrissie Hynde, dos Pretenders, e Hector Babenco, de Pixote, também. Jim Morrison fundou o The Doors, depois de ter lido o livro pela enésima vez.

No alvorecer dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a tornar-se cantor, fundindo rap e poesia beat. O músico Jakob Dylan, filho mais velho de Bob, deixou-se fotografar ao lado da tumba de Jack, em Lowell, Massachusetts, como o próprio pai fizera 20 anos antes.


Desde 1995, On The Road estaria sendo adaptado para o cinema: o produtor é Francis Coppola e ele tem 56 anos, o diretor é Gus Van Sant, de 40, e Johnny Deep, o protagonista, tem 25.

Os três compartilham de um fervor referencial pelo livro que, ainda assim, continua sendo chamado de “bíblia da geração beat”.

Na verdade, se a explosão hippie dos anos 60 for interpretada como uma consequência indireta de On The Road – o que não se constituiu em nenhum exagero – então nenhum livro deste século terá deflagrado uma revolução comportamental maior do que a obra de Kerouac.

On The Road foi a glória e a danação de Jack Kerouac. O livro primeiro misturou-se e em seguida engoliu a figura de Jack Kerouac.

Para milhares de leitores, Sal Paradise (sad paradise?), o personagem, e Jack Kerouac, o autor, passaram a ser a mesma pessoa.

As ligações de Kerouac com o budismo, seu crescente conservadorismo, suas demais guinadas literárias, seu vasto projeto literário autobiográfico (“a saga de Duluoz”, como ele a batizou), seus devaneios cristãos, o experimentalismo de Visions Of Cody, as sutilezas fugidias de seu primeiro livro (The Town And The City, de 1947), tudo foi levado pela enxurrada de On The Road.


Jack Kerouac morreu em outubro de 1969, depois de anos no sofá vendo televisão na casa da mãe (com quem morou a vida inteira), barrigudo, alcóolatra e reacionário, odiando cada cabeludo americano e cada parágrafo de On The Road. Conhecendo a história de Kerouac, não é muito difícil imaginar por que.

Americano de origem franco-canadense, católico praticante, fixado na figura da mãe (a mémêre), tímido, introspectivo, complexo, generoso, gentil, desajustado e angelical, Jean Louis Lebris de Kerouac – ou “Ti Jean”, “Pequeno Jean” – nasceu em Lowell, Massachusetts, em 21 de março de 1921.

Segundo seu pai, a família era descendente de celtas da Cornualha que “muito antes de Cristo” tinham se mudado para a Bretanha e lá, como prova de nobreza, adquirido um escudo em cujo lema se lia: “Aimer, Travailler et Souffrir” – Amar, trabalhar e sofrer.

Por volta de 1750, os Kerouac receberam uma concessão de terras no Canadá, onde vários descendentes da família se casaram com índios Mohawk e dedicaram-se ao cultivo de batatas.

Até os seis anos, Jack Kerouac só falava o joual – o dialeto franco-canadense.

Antes da consagração com On The Road, fracassara em tudo na vida. E nesse “tudo”, além de uma dezena de profissões, é preciso incluir os dez livros escritos entre 1951 e 1957, quando On The Road foi enfim publicado.

De todo modo, a fama e a glória tornaram-se um fardo para Kerouac e os estereótipos da geração beat o perturbavam e ofendiam.

Foi o próprio Kerouac quem dera ressonância e expandira o significado da palavra “beat”, que ele escutara pela primeira vez na boca de Herbert Huncke, um marginal homossexual que fazia ponto no Times Square, em New York, e que aparece brevemente nas páginas sob o nome de Elmo Hassel.

Para Huncke, “beat” definia um estado de “exaltada exaustão”. Mas Kerouac logo percebeu as ressonâncias múltiplas da palavra, que significa simultaneamente “batida” (no sentido de ritmo musical), “abatido”, “pulsação”, “cadência do verso”, “trajeto” ou “trilha”, “furo” (jornalístico), “pilantra”, além de conter, também e acima de tudo, o radical de “beatitude” – que foi o que realmente despertou Jack para a sonoridade do vocábulo ao qual ele se vincularia pelo resto da vida.

“Sou um estranho e solitário católico louco e místico”, diria Kerouac certa vez. E era mesmo.


Os peregrinos religiosos russos, os poetas zen do Japão, os místicos católicos, como São João da Cruz e Santa Tereza, os andarilhos americanos Henry David Thoreau e John Muir: eis os homens aos quais Kerouac queria ser comparado. (“Não conheço nenhum hippie”, comentou certa vez. “E eles pensam que eu sou um motorista de caminhão.”)

Jack Kerouac estava interessado em despojamento, transcendência e devoção. Vários de seus textos – especialmente em Big Sur e em The Scripture Of Golden Eternity – são reluzentes como um haikai de Shiki ou Bashô e foram escritos num estado que Jack definiu como “semitranse yeatsiano”.

Por outro lado, sua obra se consistiu basicamente na vertigem irrealizável de recapturar toda a história de sua infância – cada detalhe, cada visão, cada lembrança, num espasmo proustiano embalado em anfetamina.

Depois de envolver-se nesse projeto, que batizou de “a saga de Duloz” (por causa do personagem autobiográfico Jack Duluoz), Kerouac praticamente esqueceu-se de On The Road. Ou melhor, gostaria de ter podido esquecer: toda e qualquer resenha de seus livros posteriores a On The Road invariavelmente os comparava ao “original” – sempre desfavoravelmente.

Os autores contemporâneos que mais influenciaram Kerouac foram Thomas Wolfe e William Saroyan, ambos integrantes de uma tradição americana altamente individualista.

Ao longo de sua trajetória literária, Jack se tornaria cada vez mais intimista, a ponto de escrever grandes livros (alguns com mais de 400 páginas) sem nenhum “plot”, sem enredo pré-estabelecido.


Deixava a própria persona expressar-se livremente e entregava-se á descrição detalhista da paisagem suburbana (e underground americana), numa versão tardia (mas pré-pop) da escrita automática dos surrealistas, um stream of counciousness mais facilmente compreendido por quem já desfrutou de alucinógenos como maconha, mescalina e peyote.

Ainda assim, ao longo dos anos, Kerouac se afastaria diametralmente da imagem de outcast, o rebelde doidão, deixando de ser um White negro para votar em Richard Nixon, entregar-se ao vinho barato e romper com todos os ex-companheiros beats.

Na verdade, Kerouac entregou primeiro a sanidade e depois a própria vida ao longo e doloroso processo de desenvolver e aprimorar seu estilo parentético: a descrição minuciosa dos desvãos da própria memória o forçava a escrever frases que, cada vez mais, abandonavam (quando não implodiam) a ordem natural da sintaxe de forma que o autor pudesse parti-las ao meio, introduzindo parênteses que se prolongavam por todo um parágrafo, ou digressões incontidas repletos de adjetivos (às vezes até seis por substantivo), que impediam o período inicial de chegar ao fim (“tenho implicância com pontos finais”), a não ser após várias páginas de auto-reminiscências e desvios de rotas aparentemente delirantes.

Como se não bastasse esses anseios conceituais, Jack Kerouac teve um satori (“o súbito despertar” budista) diretamente ligado ao som das palavras, a ressonância da prosa e, desde os primeiros manuscritos de On The Road, começou a tentar fazer com que suas frases soassem como um solo de Charlie Parker, ao som do qual escrevera a versão original de On The Road.


Com o tempo, seu intelecto mergulharia num oceano de sonoridade e harmonia melodiosa que o afastou progressivamente do significado formal das palavras.

Kerouac escrevia para ser lido em voz alta (e ninguém o fazia melhor do que ele próprio) – num tom celebratório e panteísta diretamente derivado da poesia avassaladora de walt Whitman.

Mas o estilo telegráfico, jornalístico e eficiente de Ernest Hemingway havia estabelecido novos padrões para a prosa americana.

Kerouac se tornaria, involuntária mas decididamente, sua antítese.

Pagou caro por isso: “That isn’t writing, it’s typing” (“Isso não é literatura, é datilografia”), diria Truman Capote com mordacidade mortal.

No entanto, toda uma legião de escritores, artistas, cineastas e músicos – a geração que se multiplicou em muitas – viria a ser profundamente influenciada pelo estilo e pelas visões de Jack Kerouac.


Hal Chase, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, na Universidad de Columbia, em 1944-1945 (arquivo pessoal de Allen Ginsberg)


Impossível imaginar a obra de Sam Shepard, de Bob Dylan, de Charles Bukowski, de Jim Morrison, de Lou Reed, de Tom Wolfe, de Bret Easton Ellis, de Hunter Thompson, de Jim Jamush, de Jay Macinerney, de Tom Waits, de Gus van Sandt sem On The Road.

Todos eles pagam tributo à franqueza fluídica e generosa do católico louco e místico que viu a luz nas trilhas e trilhos da América.

Por isso, á medida que o século chega ao fim, as conquistas literárias de Jack Kerouac são cada vez mais plenas.

De certa forma, e ironicamente, elas poderiam passar ao largo de On The Road.

Mas ao tirar a literatura do escritório e jogá-la na estrada e na sarjeta, nos talhos e nos becos, Kerouac vinculou-se à venerável tradição dos “romances em movimento”, como dom Quixote e Pilgrim’s Progress, e tornou a capturar o espírito nômade dos velhos pioneiros, partindo do “Leste da minha infância para o Oeste do meu futuro”.

Como Huckleberry Finn. Como Francis Parkman. Como John Muir. Como, na verdade, a própria humanidade em sua jornada do Oriente ancestral para o jovem e petulante Ocidente que Jack Kerouac ajudou a definir.

Quase uma declaração de amor



Minha flor-de-lis resolveu me visitar na última sexta-feira. Estava deprimida, ansiosa e irritada. Achou que dormir comigo lhe faria bem.

Conversamos sobre isso e aquilo outro, sendo isso e aquilo outro as vicissitudes de permanecer vivo. Ela se acalmou.

Custa crer que uma garota de 21 anos tenha crises existenciais. A Madame Butterfly tem. 

Eu vou morrer sem saber de nada.

Crise? Que crise?!

– Eu me olho no espelho, acho que estou ficando feia e que você não gosta mais de mim! – disparou, tentando segurar o choro.

Eu olhei para aquele corpo perfeito, para aquela potranca incrivelmente bela diante de mim e não resisti a uma ironia vulgar:

– Caraco! Se você ficar melhor do que isso, apodrece! Na minha época, essa sua crise existencial se chamava TPM...

Ela ficou cabreira pelo pouco caso que dei à sua vontade de morrer, entendeu o meu quase riso como uma confirmação de seus demônios interiores e começou a chorar copiosamente. 

Foi um parto desfazer o mal entendido.

Eu vou morrer sem entender as mulheres.

A primeira vez em que dormimos juntos, dois-anos-ontem, eu, só um pouquinho menos apaixonado do que hoje, notei que a Madame Butterfly não cobria os pés.

Peguei uma colcha e improvisei uma espécie de ninho para aquelas duas aves morenas que se abraçavam loucamente, como se uma necessitasse do calor da outra.

Alguns meses depois, coloquei no quarto um Split de 18 mil BTUs – o que transformou o mocó em uma espécie de câmara criogênica –, mas notei que os pés da Camila continuavam sempre fora das cobertas.

Então, entendi que, mais que um hábito, os pés desnudos eram uma declaração de princípios, um gesto simbólico de insubmissão.

Ao longo de todos esses meses, ou seja, de ontem pra hoje, perdi a conta das vezes em que sentei, silenciosamente, para contemplar, como que enfeitiçado, o mistério dos pés dela, procurando descobrir que segredos eles poderiam estar me contando na imobilidade aparente do sono.


Na semana passada, eu os cobri com um edredom dobrado e entrei em pânico ao ver que eles se agitavam como se estivessem sufocando.

Livrei-os depressa do cativeiro, cobri minhas avezinhas de beijos e jurei que nunca mais violaria o direito delas à liberdade.

E de repente, como no soneto do Vinicius, não mais que de repente, compreendi que se um dia, no futuro próximo-distante, essas duas aves morenas quiserem bater asas, eu morro.