Ricardo Acampora
BBC Brasil
Sempre temi o dia em que como jornalista teria que escrever
sobre um amigo que acabara de morrer. Sabia que esse dia, trazido pela
inevitabilidade da própria morte, acabaria por vir.
Quero acreditar que a faina de revirar o passado da minha convivência
com Ivan Lessa vai amenizar a dor pela perda do companheiro de redação e,
principalmente, de cantina da BBC, onde, em grupo que variava de tamanho,
diariamente almoçávamos, trocávamos ideias, ríamos, discutíamos e por vezes nos
desentendíamos, quase sempre nesta ordem.
Ivan era papo para qualquer obra. Desde que houvesse um
ouvido diligente, cujo dono não tivesse grande vocação ou disposição para a
locução.
Sempre atualizadíssimo pela internet, que adorava (a quem
chamava carinhosamente de “Dona Nette”), disparava sua crítica contra tudo e
todos com o mesmo furor, sarcasmo e eloquência que usava nas páginas do Pasquim
nos anos 70.
Pulava de um assunto para outro sempre muito ligado em tudo
que rolava, e descia o pau nas tolices que detestava (quase tudo).
Ia da música ao cinema, passando por política, esportes,
show business, jornalismo, não escapava nada ou ninguém.
Dos atuais, gostava de muito poucos. Sua admiração tinha
congelado num passado distante. Quer dizer, distante para nós, os ouvintes.
Para ele tudo tinha acontecido ontem, ou, na pior das hipóteses, na semana
passada.
A memória privilegiada garantia precisão à narração e
tornava tão vívidos fatos ocorridos 30, 40 anos atrás. Capaz de contar em
detalhes um Botafogo x Flamengo estrelado por Leônidas da Silva ou Heleno de
Freitas.
Na última vez em que estivemos juntos, há cerca de um mês,
em sua casa, no bairro londrino de South Kensington, me contou graças ocorridas
na Ipanema de sua juventude, em mesas de pôquer que dividiu com Millôr Fernandes,
Samuel Weiner e Antônio Maria, em peladas do Dínamo, time que defendeu no
futebol de praia do Posto 6 em Copacabana.
Esse era o mundo que amava, esse era o mundo em que teimosa
e anacronicamente ainda vivia. O exílio voluntário em Londres de mais de 30
anos ajudou a cristalizar sua lembrança do amado Rio de Janeiro dos anos 50 e
60.
Só voltou à cidade que adotou uma única vez, em 2006,
convidado pelo amigo Mario Sergio Conti a escrever um texto para o primeiro
número da revista Piauí.
Me disse que doeu ter voltado. Detestou o que viu. Pelas
mesmas ruas do centro e zona Sul onde viveu intensamente a liberdade e a
tranquilidade do balneário-metrópole-capital nacional, disse que viu um Rio
desfigurado, pobre, sujo, feio, sem charme, deselegante, retrógrado, tenso, de
trás de grades, preso em seu próprio medo. Não encontrou vestígios do que
deixou. Acabaram com o Jangadeiros, não existia mais o Zeppelin, nem a Sucata,
só tolices, me disse ele.
Nos contou emocionado a tristeza que sentiu pela destruição
de parte de sua memória. Tentativa de destruição, eu corrijo.
Ivan ainda era capaz de ver e viver a mesma praia de
Copacabana onde pegou seus primeiros jacarés. Ainda podia saborear um
salgadinho da Colombo ou um refresco de coco que era servido em um pequeno bar
da Avenida Rio Branco. Descrevia com precisão a vitrine da Casa Sloper, sabia
de cor letras de músicas de carnaval dos anos 40, lembrava do nome do
lanterninha do Cine Rex. Ainda mantinha o mesmo desprezo pelos militares que
tomaram o poder no Brasil e governaram o país por quase 30 anos. Ainda curtia
intensamente a Ipanema capital cultural do Brasil, assim como curtia a
bossa-nova, as modinhas de carnaval e o chamado samba autêntico.
Talvez por amar o Rio como ele, por ter partilhado inúmeras
memórias cariocas com ele, decidi que é esse lado do Ivan Lessa que vou manter
na memória para o resto da minha vida, já que acho que a gente, consciente ou
inconscientemente, escolhe como consolidar nossa lembrança dos que nos deixam.
É assim que vou lembrar sempre dele, como o Ivan Lessa
arquivo-ambulante, Ivan Lessa o londrino-carioca, amante de um Rio, que assim
como ele, tristemente, não existe mais.
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