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terça-feira, fevereiro 16, 2010

Um peixe chamado Amanda


Abril de 1986. Eu estava almoçando com o Mario Adolfo no restaurante Galo Carijó, quando ele subitamente se levantou da mesa e foi conversar rapidamente com duas mulheres que estavam saindo do restaurante. Depois que retornou, me avisou:

– Aquela mais alta é a Amanda, a secretária da Federação das Indústrias que diz que está apaixonada por ti...

Como eu estava de costas para a rua, me virei rapidamente para ver as minas, mas elas já haviam embarcado em um carro e ido embora.

– Por que você não me apresentou pra Amanda? – indaguei.

Ele fez um gesto de “deixa pra lá” e começou a detonar seu jaraqui frito.

Mário Adolfo, que na época era assessor de imprensa da FIEAM, já vinha me falando da Amanda há algum tempo.

Ela recortava tudo que eu escrevia nos jornais e colecionava amorosamente os recortes em grandes cadernos de capa dura.

Quando soube casualmente que o Mário Adolfo era meu amigo de infância, começou a insistir para que ele nos apresentasse.

O sacana, até então, vinha refugando as propostas. Ali tinha coisa.

No mês seguinte, eu e ele fomos entrevistar o lendário jornalista Otávio Ribeiro (aka “Pena Branca”) para o primeiro número do jornal Candiru, que estávamos produzindo.


O jantar no restaurante Panorama, em Educandos, logo se transformou em uma alegre bebedeira, com o Pena Branca lembrando seus tempos heróicos de repórter policial no Rio de Janeiro, nos anos 60 (foi o primeiro jornalista a subir o morro e entrevistar o famoso bandido Mineirinho).

De madrugada, depois de deixarmos o Pena Branca no hotel e já voltando pra casa, paramos em um boteco no bairro do Coroado para a saideira.

No meio da conversa sobre as pautas do Candiru, entrei de sola:

– Bicho, me fala sinceramente: você ainda não me apresentou pra Amanda porque está pensando em comer ela primeiro do que eu, né não?...

O Mário Adolfo quase se engasgou com o copo de cerveja.

– Não, porra, não é por isso não. É porque eu te conheço. A Amanda é uma pessoa muito sensível, solidária, prestativa. Vocês vão se conhecer, vão se apaixonar e como você só quer saber de pegar mulher, transar e mandar embora, a Amanda vai sofrer. E eu não quero que ela sofra...

Porra, levar lição de moral de um parceiro de infância àquela altura da vida não estava no script, mas ainda assim não discuti. Deixei pra lá.


Na capa do número zero do Candiru, tivemos que meter uma notícia às pressas:

“Este é um jornal de humor. A única coisa séria neste primeiro número é a entrevista do jornalista Otávio Ribeiro, o Pena Branca, que quando se encontrava em Manaus resolveu ajudar “os malandros do Candiru... Um bando de terroristas!”, como costumava dizer.

Na entrevista, Pena Branca falou do Esquadrão, do Caso Mário Eugênio, Luta Armada, Escadinha, Mineirinho, Menor Abandonado e fez uma pergunta: por que a criança vira marginal? Confessou ainda uma antiga neurose: desvendar o Caso Carlinhos.

Pena Branca não teve tempo de escrever esta última reportagem. Muito menos de ler sua última entrevista publicada neste Candiru, que nasceu sob o signo da coragem, como o próprio Pena Branca.

No último dia 22 de junho, o malandro partiu e deixou uma puta saudade na gente. Pena enfrentou a máfia da cocaína, subiu o morro debaixo de bala, denunciou o esquadrão da morte, brigou com milicos e encarou bandidos e poderosos. Só a morte venceu o grande repórter!”


Na abertura da entrevista, Mário Adolfo dava um novo toque para captar o clima:

Era um desses dias malucos, neuróticos e barulhentos como outro qualquer de uma redação de jornal, quando Pena Branca (Otávio Ribeiro) invadiu a redação de A Crítica, a cotê do fotógrafo da Folha, Ronaldo Kotscho (irmão do outro, Ricardo).

Assim, de cara, ele não disse os motivos de sua vinda ao Amazonas. “Qualé, malandro, assim é boi com abóbora. Compra a revista que tu vai saber a matéria!”, descartou a curiosidade da rapaziada.

Otávio Ribeiro, o Pena Branca, considerado o último grande repórter policial brasileiro, que inspirou a série Plantão de Polícia da Rede Globo (lembram do Waldomiro Pena feito pelo Carvana? Pois é...), detesta tietes e tentou a todo custo fugir da entrevista para o Candiru. “Quer dar uma de Pasquim pra cima de mim, ô meu! Esse jornal ainda nem existe, é farofa!”, protestava.

A coisa foi muito rápida. Ninguém tinha gravador, fita cassete, nem nada. Só mesmo um tesão maluco de entrevistar o Pena, desde o dia em que lemos sua primeira entrevista no Pasquim, no lançamento do seu livro “Barra Pesada”. Aos poucos, as coisas apareceram. Não sei quem entrou com o gravador. A fita foi roubada da gaveta não sei de quem. E lá fomos nós, Bar do Armando abaixo.

Mas o Pena Branca exigia de cachê um tucunaré, “que é meu peixe rei”. Depois, o Bar do Armando, reduto de jornalistas, petistas, comunistas, sapatões, bichas e cornos (mas todos com uma coisa em comum, são boêmios) estava muito barulhento. E lá fomos nós Galo Carijó acima.

Só depois que arrumamos a mesa, ligamos o gravador, acendemos os cigarros e pedimos as cervejas, é que a garota deu o ultimato: “Não tem tucunaré!”. Pena foi o primeiro a levantar da mesa e o papo acabou mesmo acontecendo lá no Panorama, do Educandos, de frente para o rio Negro, que também é “rio rei”.

Eu, Simão Pessoa e Carlão Dias (fotógrafo) acabamos ouvindo o depoimento mais completo já dado por Otávio Ribeiro em toda a sua vida de jornalista-herói. Este jornal, na época (uma noite quente de maio) nem existia. O Candiru passou a ser parido em função da entrevista do Pena Branca, repórter da justiça, dos oprimidos, dos direitos humanos e cidadão do mundo.

Mais do que nunca, esse jornal é dedicado a você, Pena Branca!”


No começo de julho, em uma sexta-feira, a gente estava fazendo o lançamento do “jornal de maior penetração do Amazonas” no Bar do Armando, quando se aproximaram da mesa um casal e uma mulher.

O Mário Adolfo se levantou da mesa, conversou com os três alguns minutos, aí se virou pra mim e falou:

– Êi, bicho, essa aqui é a Amanda, que trabalha comigo lá na Federação das Indústrias. Essa outra é a Regina, irmã dela, e esse é o Carlos Augusto, marido da Regina. Me passa logo três jornais que eles vieram aqui só pra comprar o Candiru e já estão indo embora...

Por Tutatis, Obelix, mas o que era aquilo?...

Eu me levantei da mesa para cumprimentar o trio e entregar os jornais. De cara, notei que a Amanda tinha quase a minha altura.

Ela estava usando um vestidinho de motivos florais e sandália baixa, mas dava pra perceber que se enquadrava na categoria de mulherão. Seu olhar era radiante. Seios magníficos.

Eu estava diante de uma verdadeira mulher melancia. Foi amor à primeira vista.

Na maior cara de pau do mundo, pedi do Carlos Augusto e da Regina que deixassem a Amanda com a gente, que depois nós dois a deixaríamos em casa sã e salva.

Eles concordaram, ficaram conversando uns dez minutos, aí se despediram e foram embora.

A Amanda ficou sentada em nossa mesa nos ajudando a vender os jornais.


Por volta das 23h, quando o movimento dentro do boteco diminuiu, eu, Mário Adolfo, Jorge Estevão e Amanda fomos comemorar a boa vendagem (mais de 300 jornais) no Bar Noturno, onde havia música ao vivo.

Eu tirei a Amanda pra dançar e, na segunda música, já lhe tasquei um beijo na boca. Ela correspondeu. Começamos a namorar naquela mesma noite.

Nós a deixamos em casa por volta das três da madrugada. Eu estava em estado de graça. O Mário Adolfo não dizia nada, mas dava pra sentir que não havia gostado do meu novo affair.

No dia seguinte, sábado, peguei a Amanda em sua casa por volta das 21h e fomos para o Bar Galvez.

Eu a apresentei pro Antonio Paulo Graça, Rogelio Casado, Inácio Oliveira, Rosendo Lima, Almir Graça, Narciso Lobo, Ademir Ramos, etc.

Ficamos conversando e bebendo com eles. Cerca de duas horas depois, resolvemos nos encafuar no motel Le Baron. A minha avaliação inicial foi plenamente confirmada.


As medidas da Amanda (1,72 m de altura, 68 kg, 98 cm de busto, 68 cm de cintura e cerca de 120 cm de quadril) eram de deixar qualquer sujeito babando no colarinho.

Aquilo não era um simples avião. Aquilo era um Airbus A 380, com fuselagem de titânio, duplamente turbinado e com um compartimento de carga de desmoralizar qualquer popozuda do funk.

A Amanda tinha sido precoce em tudo que fizera. Com 14 anos, foi eleita Garota Biquíni, com 15 anos se casou, com 16 teve o primeiro e único filho, com 18 se separou e nunca mais voltou a viver com alguém.

Ela estava com 34 anos. Seu filho estava com 18 e morava com o pai em São Paulo.

Tinha tido namorados ocasionais, mas os relacionamentos acabavam naufragando por causa do excessivo ciúme dos parceiros.

Ela estava adorando sair comigo porque em apenas dois dias ela já havia conhecido mais botecos e pessoas divertidas do que nos últimos dois anos.

Fui deixá-la em casa por volta das 4h da madrugada de domingo. Nos três meses seguintes, nossa lua de mel continuou a todo vapor.


Podia chover canivetes, mas toda sexta-feira eu a pegava em casa, levava a um novo boteco (Caranguejo, Amoricana, São Marcos, Paulo’s Bar, etc) e invariavelmente terminávamos a noite em um motel.

Começamos a discutir seriamente a possibilidade de alugarmos um apartamento e juntarmos os panos.

Na segunda quinzena de outubro, ela me avisou que estava saindo de férias da Federação da Indústria e que iria passar uma semana em São Paulo na companhia do filho. Assim que retornasse, me telefonaria.

Nesse dia, a gente nem quis perder tempo com botecos. Assim que ela entrou no carro, fomos direto para os embates de Eros. Eu estava viciado naquela mulher. E ela em mim.


Na última semana de outubro, ela retornou pra Manaus e me telefonou, numa tarde de sexta-feira:

– Houston, we have a problem...

Comecei a rir nervosamente, pensando que ela estivesse se preparando para me dar um chute na bunda. Era muito pior.

Em São Paulo, ao brincar de colocar o filho no colo, ele, já um galalau de 1,80 cm, tentou se debater para se livrar do abraço desmoralizante e acabou acertando, sem querer, uma cotovelada em seu seio direito. O melão ficou com um inchaço arroxeado.

Ela havia chegado a Manaus há dois dias, o inchaço no seio continuava e ela começou a sentir febre.

A Regina lhe levara a um médico. Passaram alguns antibióticos, o problema persistiu, aí, na manhã daquela sexta-feira, fizeram uma incisão no seu seio e colocaram um dreno.

Ela estava me ligando apenas pra me manter informado, já que estava morrendo de saudades, mas não queria que eu a visse naquele estado.

Telefonei pra ela no sábado. Os antibióticos não estavam fazendo efeito e o dreno continuava expelindo sangue pisado e uma secreção pustulenta. Ela permanecia com febre.

Implorei para ela me deixar lhe ver, talvez se eu fizesse alguma oração rosacruz pudesse reverter o quadro, sei lá.

Ela bateu pé. Não ia me deixar vê-la naquela situação nem depois de morta. Mas jurou de pés juntos que estava cada vez mais apaixonada por mim.

Sim, eu já podia procurar um apartamento pra nós dois. Ela queria viver comigo pelo resto da vida.

Na quarta-feira, a Regina me telefonou, visivelmente nervosa. O quadro se agravara, o presidente da Federação das Indústrias, o saudoso João de Mendonça Furtado, havia entrado no circuito e despachara a Amanda para o hospital Albert Einstein, em São Paulo.


A Regina me deu o endereço onde ela ficaria hospedada enquanto não concluísse os exames de rotina. Mandei uma carta pra ela no mesmo dia.

Uma semana depois, chegou uma pequena carta, quase um bilhete, da Amanda.

O inchaço havia evoluído para um pré-câncer de mama. Ela teria que ser submetida a uma mastectomia profilática (cirurgia para a retirada da mama, antes do desenvolvimento do câncer).

Garantia que continuava me amando, mas não tinha certeza se eu ainda ia lhe querer depois da cirurgia radical.

Dessa vez, quem entrou numa depressão indescritível fui eu.

Em novembro, ainda mandei mais três cartas para a Amanda. Além de não ter obtido resposta, as duas últimas cartas foram devolvidas ao remetente.

Até hoje nunca soube o que aconteceu com a minha princesa.

O Mário Adolfo acredita que ela morreu de câncer em São Paulo.

Eu nunca acreditei nessa possibilidade, mas também nunca mais acreditei em Deus do mesmo jeito.

E estou pouco me lixando se Ele ainda acredita em mim.

Ter levado o Pena Branca e a Amanda no mesmo ano, ambos de câncer, pô, isso é coisa que não se faz nem ao pior inimigo.

2 comentários:

Luiz Brasileiro disse...

Simão você escreve muito; faz muito tempo que não tinha lido algo assim, com marcas da vida, da boêmia, de amor perdido nas trapaças do destino e das lembranças de pessoas generosas e destemidas como Otávio Pena Branca.
Gostei muito mesmo.

Toni Rodrigues disse...

Puxa, que narrativa, meu... abraços calorosos de sincera admiração.