O filósofo Emerson escreveu que o homem é um Deus em ruínas
porque a infância continua sendo o seu paraíso perdido e ele só pode voltar a
visitá-lo por meio dos sonhos ou da memória.
Na parte que me toca, o território livre da Cachoeirinha –
que agora no dia 22 maio, Dia de Santa Rita de Cássia, padroeira do bairro, completou
120 anos – tem sido meu paraíso perdido desde que me entendo por gente.
Projetado em 1892, por iniciativa do governador Eduardo
Ribeiro, o bairro da Cachoeirinha surgiu no apogeu da belle époque e visava
basicamente expandir o perímetro urbano da cidade.
O encarregado de idealizar o projeto do novo bairro foi o
engenheiro Antônio Joaquim de Oliveira Campos, que elaborou um plano piloto em
uma área de 15 mil km², cujo principal ponto de referência era um caudaloso
igarapé que, na vazante, formava uma forte corredeira chamada Cachoeirinha de
Manaus.
O igarapé de águas negras e transparentes ficou conhecido
como igarapé da Cachoeirinha.
Entre os principais tributários do igarapé da Cachoeirinha
estavam o igarapé do Primeiro Olho d’Água, mais conhecido como igarapé da Bica,
cuja nascente ficava no quintal do Instituto Montessoriano, na rua Paraíba, e
dali descia do bairro de São Francisco em direção à Cachoeirinha, se bifurcando
no começo da rua Belém.
Um braço do igarapé seguia em frente, em direção ao igarapé
do Mestre Chico, passando por baixo do atual viaduto da Paraíba, e o outro
braço seguia paralelo à rua Belém, passando por detrás do grupo escolar Getúlio
Vargas, até se transformar no igarapé da Cachoeirinha, nas imediações da
conhecida Mercearia do Amâncio, próximo da Feira de São Francisco.
A Bica existe até hoje. Está localizada nos fundos do
condomínio Central Park e foi tombada como patrimônio histórico pelo Ipham.
Já o igarapé do Segundo Olho d’Água nascia nas imediações da
atual Secretaria de Produção (Sepror), depois se transformava no balneário
público Furna da Onça, descia de Petrópolis e desaguava no igarapé da
Cachoeirinha no início da Manaus Moderna, no local conhecido como Pontão das
Lavadeiras.
O igarapé do Segundo foi aterrado. Hoje, no seu antigo leito
cheio de corredeiras e cercado de buritizais, fica o campo de futebol da Ceam.
Com exceção da rua General Glicério, batizada pelo próprio
governador Eduardo Ribeiro para homenagear o republicano e abolicionista
Francisco Glicério, companheiro de Quintino Bocaiúva, Benjamin Constant e Ruy
Barbosa na jornada de 15 de novembro de 1889, todas as demais ruas do novo
bairro homenageavam os municípios amazonenses.
As ruas no sentido Norte-Sul são General Glicério, Waupés
(atual Castelo Branco), Camaçari (atual Carvalho Leal), Borba, Urucará e Maués.
As ruas no sentido Leste-Oeste começavam no igarapé do
Mestre Chico e terminavam no igarapé da Cachoeirinha: Antimari, Humaitá,
Ajuricaba, Canutama (atual Ipixuna), Santa Isabel, Silves (atual Costa e
Silva), Manicoré, Itacoatiara, Tefé, Parintins, Coari (atual J. Carlos Antony)
e Codajás.
A rua General Glicério acompanhava o igarapé do Mestre Chico
e separava a Cachoeirinha do bairro da Praça 14.
A rua Maués acompanhava o igarapé da Cachoeirinha e separava
a Cachoeirinha dos bairros da Raiz e Petrópolis.
O igarapé da Cachoeirinha se encontrava com o igarapé do
Quarenta, no final da rua Maués, para formar o caudaloso igarapé de Educandos,
que separa o bairro da Cidade Alta.
Até meus sete anos de idade a fronteira norte-sul desse
território mítico se estendia do cruzamento das ruas Waupés com Codajás (o
marco zero ao sul era a taberna “19 de Janeiro”, do seu Antônio Pastique) até o
cruzamento das ruas Waupés com Carvalho Leal, ao norte, onde ficava o grupo
escolar Getúlio Vargas.
Eram apenas dois quarteirões, mas, para mim, um verdadeiro
mundo bravio a ser explorado com sofreguidão e paciência.
Eu era o xerife Wyatt Earp e aquela era minha empoeirada
Dodge City, no Kansas.
Como todas as ruas do bairro, a Waupés também não possuía
asfaltamento e, no período das chuvas (novembro a abril), se transformava em um
verdadeiro pantanal, semelhante aos Everglades, da Flórida, com sua incubadora
permanente de insetos voadores.
A cada seis meses, uma equipe da prefeitura ocupava o local
para capinar e retirar centenas de touceiras de capim, que nascia feito praga
no meio da rua.
As touceiras eram amontoadas em lotes de quase dois metros
de altura e, rapidamente, se transformavam em motivo de diversão para a
molecada, principalmente nas brincadeiras de “Come On, Boy!” (“Vamos lá,
moleque!”, que a gente abrasileirava para “camonebói”), com revólveres de
espoleta e postura de celerados.
Aquelas touceiras de grama eram as nossas Montanhas Rochosas
dos filmes de bang-bang.
Meu pai colecionava borboletas e mariposas belíssimas,
capturadas nas matas da Refinaria de Manaus, que depois eram “pregadas” dentro
de quadros decorativos com tampas de vidro e expostos nas paredes de casa.
Um dia, ele me deu uma rede de caçar borboletas, que se
transformou no divertimento favorito da molecada.
Além de atacarmos borboletas, jacintas e vagalumes, aquilo
era uma mão na roda para enfrentarmos a revoada de milhares de tanajuras que
empestavam a rua com as primeiras chuvas de abril.
As tanajuras tinham de ser capturadas vivas para os moleques
extraírem seus abdomes e fazer a festejada “farofa de bunda de tanajura”.
Em vez de comer tanajuras, eu achava mais divertido
trespassar-lhes o abdome com uma agulha ou alfinete para vê-la batendo as asas,
desesperadamente, igual a um helicóptero.
Para inventarmos as batalhas aéreas de
helicópteros-tanajuras foi conta de multiplicar.
Partindo da taberna do seu Antônio Pastique e subindo a
Waupés em direção ao grupo escolar Getúlio Vargas, o lado direito do primeiro
quarteirão era integralmente tomado pelo imponente conjunto residencial
Juscelino Kubitschek, inaugurado em 1957, na gestão do governador Plinio
Coelho.
O conjunto é formado por 10 blocos de quatro apartamentos
cada um.
Sua construção foi planejada pelo engenheiro italiano Mauro
Lippi, o mesmo que havia construído a bonita Igreja de Nossa Senhora de Fátima,
na Praça 14.
No dia da inauguração, Plinio Coelho sorteou quatro
apartamentos para os populares presentes no fuzuê.
Os 36 restantes foram comprados pelo Departamento de Estrada
de Rodagem do Amazonas (DER-AM) e revendidos para seus funcionários, com prazo
de financiamento de 20 anos.
No conjunto Kubitschek moravam meus padrinhos, Nilo e
Marcionília, e os filhos deles, Felipe e Emanuel, dois moleques da minha idade.
Eu conhecia poucas pessoas entre os moradores do conjunto:
os irmãos Mário Lucio (aka “Lucio Branco”), Marcus e Maria Ernestina (aka
“Neta”), filhos do Manoel Azevedo (aka “Leleta”), um conhecido funcionário do
DER-AM.
Ao lado do apartamento deles moravam seus primos, os irmãos
Nelson (atual marido da minha irmã Selane), Nazon e Lindalva, uma deslumbrante
morena de quatrocentos talheres, que desconfio ter sido a garota mais bonita do
bairro durante a minha infância.
Mais ou menos no meio do conjunto, moravam os irmãos Zezinho
e Carlinhos Playboy, reputados como os “dons juans” do bairro.
Próximo ao apartamento deles, moravam os irmãos Mário Joca e
Jorge Onça.
Do outro lado do conjunto, cujos apartamentos ficavam de
frente para os fundos do Palácio Rodoviário, eu só conhecia o Kepler (seu pai
era arquiteto do DER-AM) e os irmãos Fonseca e Soraya (que depois se casou com
o Sici Pirangy).
Das casas localizadas do outro lado da rua Waupés, na frente
do conjunto Kubitschek, eu só conhecia os irmãos Cassianinho, Demétria,
Francisca, Cassilda, Cássio e Ana Cássia, filhos do empresário Cassiano
Anunciação (aka “Batará”), na época dono da empresa de ônibus Ana Cássia.
Ao lado da casa do Batará, ficava a taberna do Zé Bucheiro,
onde as pessoas mais humildes compravam praticamente de tudo para pagar no fim
do mês, anotando os pedidos em uma ensebada caderneta pertencente ao
comerciante.
As balas de doce de leite vendidas na taberna eram de tirar
qualquer um do sério.
Havia, ainda, outros moleques com quem eu me encontrava
esporadicamente para jogar bola no meio da rua, como Zeferino, Jonathan e
Evandro Ferrugem (pai do DJ Evandro Jr.), mas esses contatos eram meramente formais.
No final do conjunto Kubitschek havia um pequeno terreno
baldio, que ora se transformava em campo de “pelada”, ora em parque de
diversões – com direito a roda gigante e barraquinhas de tiro ao alvo.
Um dia, apareceu uma pichação em letras garrafais vermelhas na
lateral do último bloco do conjunto, exatamente a que dava para o lado do
terreno baldio, que se fixou em minha memória como ferro em brasa: “Viva Cuba
Socialista!”.
Eu não sabia o que significava aquilo e por mais que os
diligentes funcionários da prefeitura tentassem apagar a pichação, empregando
camadas e camadas de tinta amarela, a frase ressurgia das cinzas, feito fênix,
assombração, alma penada.
Sou capaz de jurar que até meados 1966 aquela extemporânea
saudação à ilha de Fidel Castro permanecia no mesmo lugar.
Mais tarde, o terreno baldio foi transformado em um parque
infantil implantado pela prefeitura, com meia dúzia de balanços, escorregadores
e carrosséis.
Atualmente, no local, funciona uma loja de tintas chamada Guarany, o que
mostra que a invasão de terras públicas é mais antiga do que o hábito de andar
pra frente.
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