Se estivesse viva, mamãe estaria fazendo hoje 80 anos. Mas
ela faleceu há 34 anos, no dia 10 de novembro de 1978. Estava com 46 anos. Quer
dizer, eu próprio já vivi uma década a mais do que ela, o que me parece um
despropósito. Muito mais do que eu, dona Celeste Pessoa merecia esse plus extra
de existência terrena porque, acima de tudo, era uma pessoa decente. É por
causa disso que, no meu inferno zodiacal particular, 1978 foi o ano do cachorro
louco.
A loba alfa da família, Simone Pessoa, atualmente exercendo
o cargo de diretora do campus da UEA, em Lábrea, também está aniversariando
hoje. Durante a doença da mamãe, ela foi uma autêntica guerreira. Tenho orgulho
de ser seu irmão. Nós três (eu, Simone e mamãe) éramos taurinos e maioria
absoluta nas questões astrológicas da família. Com o passar do tempo, mais três
taurinos vieram se juntar a nós: minha filha Maíra, meu sobrinho João Ricardo, filho
da Simone, e meu sobrinho Simão Neto, filho da Selane. Continuamos maioria
absoluta.
Mamãe, Simone e papai, durante a formatura da loba alfa em Engenharia Florestal
Características dos taurinos? Vontade, perseverança e
amabilidade. Atração pelo prazer. Firme e determinado, persistente e confiante,
escrupuloso e paciente, amoroso e materialista, teimoso e argumentador. Tem a
qualidade de esperar seus planos amadurecerem. Gentis e amáveis quando não
provocados. Furiosos e imprevisíveis quando ofendidos. Gostam das boas roupas e
adoram a boa mesa. Facilidade para acumular bens materiais. Possui uma faceta
estética, estável e muito centrada, mas pode tornar-se possessivo e comodista.
Alguém duvida disso?
Mas voltando à vaca fria. Não lembro em que mês de 1978
minha mãe descobriu que estava com câncer. Aliás, eu nem sequer sei se algum
dia ela soube que estava com a doença. Dona Celeste e Pai Simão haviam acabado
de voltar das praias de Salinas (PA) e, aparentemente, estavam vendendo saúde. Em
maio ou junho, eu fiquei sabendo que ela estava com um problema
gastrointestinal por informações das minhas irmãs, mas não atinava para a
gravidade do assunto.
Em agosto, quando começamos a frustrada greve na Sharp do
Brasil, mamãe piorou bastante. Ela não quis ir para um hospital. Minhas irmãs
improvisaram uma enfermaria em seu quarto de dormir. Uma determinada tarde, eu fui
ter com ela. Conversamos pouco, por causa das dores excruciantes que lhe
agoniavam. Ela apenas me pediu, apertando a minha mão direita, que eu tomasse
conta do Simas, na época um pivete desordeiro de 17 anos.
– Ele é o meu filho
caçula e o seu único irmão. Cuide dele porque um dia ele também vai cuidar de
você...
Não sei se a mamãe estava jogando praga. O fato é que estou
cumprindo a tarefa até hoje. Mamãe também me perguntou como estava meu trabalho
na Sharp e menti um pouquinho. Fiquei com vergonha de falar que havia
encabeçado uma greve na empresa e que estava desempregado.
Papai e mamãe no batizado de um de seus inúmeros afilhados
O quadro clínico começou a se agravar em progressão
geométrica. No final de outubro, após a metástase, mamãe não conseguia mais
beber líquidos. Minhas irmãs Simone e Silene passavam algodões embebidos em água
nos seus lábios para minorar o sofrimento, já que sua garganta estava
praticamente em carne viva.
A Polícia Federal começou a suspeitar das dezenas de receitas
fornecidas pelo psiquiatra Rogelio Casado (na época, casado com a Silene) e
pelo médico ginecologista Sebastião Oliveira exigindo novas doses de morfina
para aplacar as dores da paciente. Nessa época, dona Celeste já estava em coma
induzida. Mamãe ainda continuou lutando contra o câncer, mesmo inconsciente, durante
umas duas semanas.
Irmã do Jaques Castro, Ângela foi a última pessoa a ver minha
mãe fechar os olhos e desistir da briga inútil, já na noite de uma sexta-feira,
dia 10 de novembro. Chorando
copiosamente, ela foi me avisar do desfecho da tragédia. Saí de casa, em
companhia dela, e cheguei à casa dos velhos no exato momento em que minhas
irmãs começavam a “preparar” minha mãe para o velório. Não quis entrar no
quarto. Minhas quatro irmãs se esmeraram na tarefa de deixar dona Celeste tão
bonita quanto tinha sido em vida, apesar de o câncer ter arruinado sua
formosura. Mamãe morreu com 46 anos, pesando pouco mais de quarenta quilos. No
auge de sua forma física, ela pesava 70 kg e era simplesmente exuberante.
No sábado, começaram a chegar dezenas de coroas de flores enviadas
pelos amigos da família. Eu estava tão anestesiado que aceitava os votos de
condolências no modo automático de um robô autista. Pai Simão começou a
providenciar o enterro no cemitério São João Batista. Ficou meio complicado,
porque era a primeira vez que a gente ia enterrar alguém da nossa família naquele
campo santo e não possuíamos um jazigo permanente.
Graças ao empenho do administrador do cemitério, o rotundo Sebastião
Prata, que era primo em segundo grau da mamãe, o velho conseguiu uma sepultura
provisória e foi providenciar a papelada oficial na prefeitura para efetuar o
enterro. Eu estava aparentemente tranquilo, me balançando em uma rede no quarto
do Simas, quando entrou minha avó Rosa, se debulhando em lágrimas.
– Eu sou uma amaldiçoada! – ela gemeu. “É a minha segunda
filha que morre, e eu, uma velha completamente inútil, ainda continuo aqui. Isso
não está certo!...”
Minha tia Maria Bandeira, irmã da mamãe, havia morrido alguns anos
antes, de ataque cardíaco. Pela primeira vez na vida, abracei minha avó com uma
imensa ternura e pedi pra ela ficar calma. Ela ficou. Nós dois ficamos em
silêncio dentro do quarto, ruminando nossa dor. Nesses momentos, desconfio, não
é de bom tom falar que a morte é inevitável, que a gente nasce pra morrer, que morreu,
acabou, que morrer é como dormir e nunca mais acordar, essas coisas. É melhor
ficar calado. As pessoas acreditam em eternidade, acreditam na ressurreição dos
mortos, acreditam nas promessas de padres e pastores de que irão para o céu,
acreditam no Juízo Final. Melhor não estragar tudo com filosofia
existencialista barata.
Algumas horas depois, a minha prima Raquel entrou no quarto
e mandou um papo reto:
– Simãozinho, a titia já vai embora. Vai lá, te despedir
dela...
Esposa do advogado Lourenço Braga, Raquel tinha sido uma das
minhas tutoras quando eu era criança. Amparado por ela, fui dar um beijo
naquele quadradinho de vidro do esquife que separa o defunto de seus entes
queridos. Minha mãe estava serena como alguém que está dormindo em paz.
Alguns minutos depois, Pai Simão fechou a tampinha de
madeira sobre o tampo de vidro e eles começaram a levar o esquife para o carro
funerário parado em frente de casa. Voltei pra minha rede no quarto do Simas e
fiquei observando a minha avó Rosa uivando de dor como uma loba ferida. Aqueles
uivos eram assustadores. Foi só aí que tive a percepção exata de que nunca mais
voltaria a ver a dona Celeste.
Não posso descrever a dor da perda até hoje, mas devo ter
uivado mais do que a avó Rosa. Ela estava perdendo mais uma filha. Eu estava
perdendo todas as minhas referências afetivas, toda a muralha que me protegia e
me impulsionava a ir em frente, contra tudo e contra todos, com apenas uma frase
mágica: “Você é capaz, meu filho, vai lá que você consegue!”
Comecei a lembrar da mamãe me dando “banhos de cabeça”, feitos
de infusão de ervas milagrosas receitadas por rezadeiras da melhor competência,
quando eu era um moleque de oito anos. Até aquela idade, quando alguém me
repreendia, com ou sem razão, eu ficava tão nervoso que não respondia às
agressões. Simplesmente me desfazia em lágrimas. Mamãe achava que aquilo não
era bom e fez o possível e o impossível para me livrar do problema. As ervas milagrosas
me ajudaram a fechar o coração.
Lembrei quando me formei no Colégio Batista Ida Nelson, aos
14 anos, e lhe entreguei, orgulhoso, o meu canudo de papel. Ela beijou a minha
cabeça e avisou ternamente:
– Hummmm. Você não lavou a cabeça hoje, meu filho!...
Quer dizer, em vez de vibrar com a minha colação de grau,
ela ainda se preocupava primeiro com minha higiene pessoal.
Lembrei quando eu e Mário Adolfo ficávamos na mesa da
cozinha desenhando HQs, enquanto ela preparava sua inesquecível maionese de
camarão. A casa estava no maior silêncio e, dali a pouco, as meninas começavam
a fazer uma algazarra dos diabos no quarto delas, cuja parede dava pra cozinha.
Mamãe largava tudo que estivesse fazendo, se aproximava da porta do quarto e
avisava:
– O Simaozinho e o Mário Adolfo estão desenhando ali na
cozinha e precisam de um pouco de silêncio...
O barulho da algazarra desaparecia como por mágica. Minha mãe
era mágica.
Minha lembrança mais remota da infância é em companhia dela.
Eu devia ter uns quatro anos e mamãe estava me dando banho de cuia em um
banheiro de madeira de algum quintal frondoso, provavelmente na casa da tia
Maria, irmã do papai.
De repente, ela avistou um gigantesco sapo cururu nos
observando e começou a gritar pelo papai, assustadíssima, quase em pânico,
enquanto tentava me proteger com seu corpo, se interpondo entre eu e o
assustador cururu. Pai Simão veio correndo ver o que estava acontecendo e, com
um potente chute de peito de pé, isolou o cururu no meio do matagal. Nunca mais
esqueci aquela cena.
Quando a doença começou a lhe tirar o sossego, mamãe jamais
se fez de vítima ou amaldiçoou seu destino. Enfrentou a doença como sempre
enfrentou tudo na vida: com estoicismo, coragem e resignação. Foi aos médicos,
tomou as injeções, se submeteu a tratamentos alternativos (chás de todos os
tipos, operações astrais, etc.) e, em vez de ser internada em um hospital,
convenceu Pai Simão a deixá-la aguardar a morte na casa que tanto amava.
Eudes, meu filho Marcel e mamãe
Mamãe só tinha concluído o curso primário, mas era uma
leitora compulsiva e nos incentivava a fazer o mesmo. Graças a ela, Pai Simão
adquiriu as principais enciclopédias disponíveis no mercado: Lello Universal,
Barsa, Delta Larouse, Enciclopédia Britânica, Tesouros da Juventude, etc.
Ela
também colecionou, fascículo por fascículo, semana por semana, os 20 volumes da
Enciclopédia Conhecer, da editora Abril, que eu li de cabo a rabo não sei
quantas vezes. Se hoje sou um especialista em generalidades, os créditos são
exclusivamente de minha mãe.
Dona Celeste tinha sensibilidade, inteligência e um bom
humor apurado, que acabei herdando e transformando em ironia permanente ou
sarcasmo corrosivo, para desespero de meus detratores. Ela nunca foi vaidosa – apesar
de tão bonita! – e demonstrava muito orgulho pelo progresso educacional dos
filhos.
Mamãe gostava de juntar os familiares em datas festivas, de reunir
todos os filhos à mesa nos almoços de domingo, e ficou visivelmente
entristecida quando sai de casa para morar com Jaques Castro e César Abu, no
bairro da Glória, no final de minha adolescência.
Ainda assim, quase todos os
domingos, ela fazia questão de que a Selane fosse ao nosso apartamento levando
uma pequena marmita com sua inesquecível maionese de camarão ou com picadinho
de bobó, que ela sabia ser meu prato favorito.
Agora, não mais sua maionese de camarão, não mais seu picadinho
de bobó, não mais seus conselhos, não mais sua força, não mais sua coragem
arrebatadora – apenas estes guardados na memória e o exemplo que eles vão sempre
evocar.
Continue ao lado de Deus e velando por nós, minha querida mãe.
E muito obrigado por tudo.
3 comentários:
Bonita homenagem Simão, eu tenho orgulho de ter participado dessa historia familiar, afinal fomos vizinho na rua Walpes, lembras? (antigo,rsr)e nossa amizade perdura ate hj,,,bjs grande....
Izalbezinha, minha fada rainha, você foi a primeira grande paixão arrebatadora dos meus dez anos. Como esquecer uma coisa dessas? Se puderes me enviar fotos antigas da família via e-mail (simaopessoa@gmail.com) prometo te fazer uma surpresa inesquecível. Beijos.
Oi Simão, li toda a Estoria de sua Familia e o que mais chamou-me atencao giram os relatos sobre D. CELESTE sua Genitora, que aliás tive o prazer de conhece-la como tambem, seu Pai.
Nao esqueco de um Automovel Aero-Willys que o mesmo possuia... na época, eramos Criancas.
Falando de Av. Walpes... muitas saudades
da epoca.
Para recordar>> Sou filho da D. NELY - CABELEIREIRA.
Um forte e fraterno abraço.
ADEMIR OLIVEIRA SOUZA
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