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sexta-feira, maio 25, 2012

Caxuxa Blues (2)



Defronte ao terreno baldio, ocupando parte da Barcelos e parte da Waupés, ficava um empório comercial, que era um mix de restaurante, mercearia e residência do português Zé Caldas, um sujeito bonachão e prestativo durante o dia, que se transforma em um autêntico lobisomem ao cair da noite.

Os uivos de dor e as imprecações noturnas do comerciante me deixavam com o coração na boca.

As más línguas diziam que ele não conseguia urinar de jeito nenhum, o que hoje é um sintoma clássico de câncer na próstata ou de blenorragia mal curada.

Pelo que me contaram, o comerciante morreu desse jeito, uivando de dor e amaldiçoando as fúrias, as parcas e outros monstros mitológicos que lhe impediam de urinar.


Nossa casa ficava ao lado da casa do seu Caldas, já na rua Waupés. Nessa foto, no local onde está esse prédio de parede azul.

A nossa primeira vizinha era a dona Zuzu, esposa do seu Alcindo Castelo Branco, ex-prefeito de Benjamin Constant, e mãe dos moleques Alcenir e Alcion.

Belíssima morena de traços indígenas e cabelos negros como as asas da graúna, dona Zuzu era uma exímia artista plástica, que pintava imensos painéis de paisagismo amazônico e elaborava belíssimos quadros de papel laminado com motivos nipônicos.

Conhecido como “Magry”, Alcenir era um guitarrista da escola uivante de Carlos Santana e Johnny Winter, tendo sido integrante das bandas Quarta Projeção, Som Imaginário e Quinta Dimensão.


No início dos anos 90, Magry (aí na foto com sua inseparável guitarra) reuniu o contrabaixista Nanau, o baterista Douglas, o tecladista Orlando Pestana, o operador de som Hugo e os vocalistas Ivamar, Natália Santos e Channa, e formou a formidável banda Shock, que fez muito sucesso tocando nos clubes da cidade.

Atualmente engenheiro aposentado da Eletronorte, Alcion gostava mesmo era de viajar de barcos, pescar e caçar.

Minha primeira viagem pelos rios amazônicos foi em sua companhia.

Alcion havia ganhado de presente de Natal uma espingarda de ar comprimido e estava louco para mostrar serviço.

Um determinado sábado, dona Zuzu resolveu nos levar para uma visita a casa de dona Genoveva, uma amiga da família, que morava na Ilha da Paciência.

Eu devia ter nove anos e o Alcion, dez.

Chegamos ao cais do porto antes do amanhecer.

Viajamos em um pequeno barco de linha cujo destino final era Iranduba.


Por volta das 9h da manhã, desembarcamos em uma várzea de quase 500 metros de extensão, excitadíssimos.

No terreiro da casa da dona Genoveva havia várias mangueiras carregadas de frutas maduras sendo detonadas implacavelmente por centenas de curicas, periquitos e maracanãs.

Enquanto dona Zuzu colocava nossa bagagem na casa da dona Genoveva, o Alcion começou a mandar bala em direção aos galhos das mangueiras, sem acertar um único tiro.

Assustadas com os estampidos da espingarda de ar comprimido, as aves voavam no maior escarcéu, mas dali a alguns minutos estavam de volta como se nada tivesse acontecido.

Para não ser desmoralizado de vez, Alcion resolveu subir em uma das mangueiras a fim de fazer uma mira melhor e escolheu uma curica que não arredava os pés de um dos galhos.

Depois de uma intensa fuzilaria, a pequena ave desabou da árvore vazada por uns seis “chumbinhos”.

Alcion pegou seu troféu de guerra e, mais alegre do que mosca em tampa de xarope, entrou na casa da velha Genoveva para contar a novidade.

Ao ver o troféu de guerra, a anfitriã quase enfartou:

– Você matou o meu Louro Tomé! Ai, meu Deus do céu, você matou o meu Louro Tomé! Ele era o papagaio mais falante da região e me acordava todo dia cantando o Hino da Marinha! Ai, meu Deus do céu, o que vai ser de minha vida agora sem o meu Louro Tomé?

Foi um constrangimento geral.

O papagaio não havia voado da árvore acompanhando as curicas, periquitos e maracanãs porque era manso feito um escravo tâmil e ainda por cima tinha as asas cortadas.


Mas como exigir que um moleque urbano soubesse diferenciar um bando de curicas selvagens de um prosaico papagaio domesticado?

A espingarda foi confiscada na mesma hora.

Nossa diversão, nos dois dias que passamos na Ilha da Paciência, era desentocar acari bodó das covas, durante o dia, e atacar os bandos de maçaricos na beira do rio, à noite, com pedradas e pauladas.

Em uma única noite, trabalhando em equipe, nós dois matamos mais de 50 maçaricos, que, depois de depenados e desossados, não deram metade de um prato de carne.

Minha veia ecológica, decididamente, ainda não havia aflorado.

Logo depois da casa da dona Zuzu, vinha a casa da dona Irene, que fazia uns bolinhos de trigo (“filhós”) e um mingau de banana de se comer ajoelhado.

No período junino, ela contratava a Tribo dos Andirás para se exibir no terreiro da sua residência.


Em primeiro plano, os primos Alcion e James Castelo Branco

Alguns anos depois, dois primos do Alcion, oriundos de Benjamin Constant, morariam no mesmo local.

A gente teve pouco contato naquele tempo de infância, mas eu voltaria a cruzar com eles depois de adulto.

O mais velho chegou a comandante da Polícia Militar do Amazonas como coronel James Castelo Branco.

O mais novo foi meu companheiro de redação nos jornais Amazonas em Tempo e Correio Amazonense.

Tratava-se do futuro jornalista José Maria (aka “Castelo”), esposo da saudosa jornalista Joaquina Marinho e depois proprietário do valoroso semanário Repórter.

Nossa vizinha seguinte era a dona Tetê, esposa do seu Zezé e mãe dos moleques José Fernandes Junior, Carlinhos, Fátima, Izabel e Socorrinha.


Apelidado de “Barrote”, porque era baixinho e marrento, Junior foi ator teatral do grupo Tesc, na época do Márcio Souza, gerente da pioneira agência de viagens Selvatur e atualmente reside em Salvador (BA).

Seu irmão Carlinhos, ainda criança, foi vítima de um grave acidente doméstico: uma panela de água fervendo caiu em cima dele, provocando queimaduras em mais de 60% do corpo.

A molecada da rua o apelidava de “vaca malhada”, motivo mais do que suficiente para Carlinhos partir pra briga.


A ruivinha Izabel (nessa foto, ao lado de Nazaré Limongi, diretora do boi Caprichoso) foi minha primeira grande paixão infantil, mas nunca me deu confiança. Somos amigos até hoje.

A Fátima casou, descasou e foi embora para Porto Velho (RO), onde vive com os filhos.

A Socorrinha casou com o Manuel Augusto, teve dois filhos, descasou e depois foi embora para o Rio de Janeiro, onde casou pela segunda vez.

A casa seguinte era da dona Gersina, esposa do seu Nozinho e mãe dos moleques Toni, Gersy e Cely.

O boa-praça Nozinho, um negro estiloso e conversador, era o responsável pelas promoções do clube Ypiranga, que iam de manhãs de sol com música ao vivo aos concorridos bailes de carnaval.

Seu escritório informal era a barbearia do Doca, localizada na Avenida Carvalho Leal, entre a sede do clube e a Loja das Geladeiras (atual Importadora City Lar).


Era lá na barbearia do Doca que todos os moleques da rua cortavam o cabelo a partir de três alternativas possíveis: “corte militar”, em que ficava um pequeno tufo de cabelo no meio do cocuruto e o resto da cabeça totalmente careca, “meia cabeleira”, em que o cabelo era pelado nas laterais, da metade da cabeça pra baixo (hoje seria chamado de “moicano”), e “cabeleira inteira”, em que o cabelo era apenas levemente rebaixado por inteiro.

Que eu me lembre, esse último corte era uma exclusividade dos homens adultos.

Ao lado da casa do Nozinho ficava a casa da dona Maria do Toti e, logo depois, a casa da dona Nely, mãe dos moleques Ademir e Suely.

Ao lado da casa deles, que era a última do lado direito da rua, ficava um terreno baldio pertencente ao David Nóvoa.

Os moleques usavam as várias árvores de grande porte existentes no local para imitar o Tarzan, saltando de uma para outra a partir dos fortes cipós e lianas que pendiam naturalmente dos vários galhos.

Ocorre que o terreno baldio também era utilizado pelos moradores como lixeira viciada e era comum encontrar afiadíssimos cacos de garrafa escondidos no meio do matagal.

Lembro que uma vez o Zé Zebra estava saltando de uma árvore para outra quando se desequilibrou e caiu no meio do mato.

Seu calcanhar foi direto num fundo de garrafa.

Quando ele conseguiu retirar o fundo de garrafa do pé, o jorro de sangue que saía alcançava quase dois metros de distância.


Zé Zebra saiu correndo direto para o Serviço de Atendimento Médico Domiciliar de Urgência (Samdu), que funcionava no térreo do Palácio Rodoviário, deixando grandes manchas de sangue por toda a extensão do trajeto.

Era muito fácil para um sioux seguir aquelas pegadas.

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