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quinta-feira, maio 03, 2012

Laços de família: as bodas de ouro de Lucas e Maria



Minha avó materna, dona Rosalina Bandeira – a única que conheci – nasceu em Coari, no médio Rio Solimões, e era, supostamente, descendente de índios Apurinãs.

Vovó Rosa (aí na foto com sua bisneta Giovana, filha do Gigio) tinha o perfil e a personalidade de uma autêntica guerreira apache: falava firme, levantando as sobrancelhas inquisitorialmente, e não admitia contestações.

Ela se casou com o seringalista José Bonifácio da Silva, com quem teve sete filhos: Edith (aka “Dica”), Rosalina (aka “Rosa”), Maria, Celeste (minha mãe), Lucas, Algemira (aka “Algima”) e José.

Quando José Bonifácio foi abatido pela malária, vovó Rosa abandonou as terras que possuía em Coari e se mudou para Manaus.

Como havia desenvolvido uma verdadeira fobia a curumins e queria aproveitar o que lhe restava da vida, ela se encarregou de “dar” os filhos para serem criados por famílias em melhor situação financeira do que ela e passou a morar sozinha.


O caçula, José, chegou a ser entregue para adoção a um casal de missionários norte-americanos, mas foi resgatado por Edith e Rosalina algumas horas antes de embarcar no navio rumo aos EUA.

Zé Bandeira, como se tornou conhecido no bairro de São Francisco e adjacências, nunca esqueceu esse episódio.

Já adulto, sempre que enchia a cara de truaca e constatava a merda de vida que estava levando, ele ficava revoltado:

– Se não fossem minhas duas irmãs mais velhas, eu hoje seria um fazendeiro no Arkansas, estaria casado com uma gringa de cabelos ruivos e teria um casal de filhos loirinhos e de olhos azuis! A Dica e a Rosa afuleilaram o meu futuro! Hoje eu não sou um cidadão do primeiro mundo por causa delas!


Mamãe, Tia Dica e Tia Rosa exibindo seus modelitos da hora na Praça da Matriz, no final dos anos 40

Quituteira de mão cheia e dona de um coração ultra-generoso, Tia Dica teve um casal de filhos: Giovani e Arinéia, ambos em produção independente.

Ela nunca quis casar ( “Marido só dá trabalho e aporrinhação, quero sabe disso não!”, explicava ) e já era feminista antes de a Betty Friedan ter nascido.


Aí nessa foto, ela está com Giovani, o famoso Gigio do Bar do Bigode.

Durante muitos anos, Tia Dica foi a governanta oficial da casa da minha irmã Simone e praticamente educou os pivetes João Ricardo e Thandra.


Tia Rosa, cuja formosura enchia os olhos de milhares de admiradores e vivia permanentemente de bom humor, teve quatro filhos: Carlito, Marluce, Vera e Júlio.


Por ser o primeiro neto, Carlito (aí nessa foto ao lado do Tio Lucas) virou o xodó da vovó Rosa, tendo sido praticamente criado por ela.

Eu gostava muito de frequentar a casa da tia Rosa, no centro histórico de Manaus, onde era sempre recebido com muito carinho, bolo de chocolate e refresco de mangarataia.


Tia Maria, que tinha os traços imponentes de uma rainha africana, teve seis filhos: Auxiliadora (aka “Cília”), Altair, Sônia   os três aí nessa foto , Ana, Dagnês e Solange.

Durante três décadas, Altair foi campeão absoluto de dominó nos bairros de Petrópolis, Raiz, São Francisco e adjacências.


Abusado ao extremo, ele costumava levantar todas as pedras nas mãos, aí gritava o ponto e deixava uma das pedras cair sobre a mesa.

Um de seus xerimbabos rapidamente pegava a pedra e colocava na “ponta” onde ele gritara os pontos.

Se por acaso o xerimbabo errasse o posicionamento da pedra, seria brindado com um bonito tabefe no pé do ouvido.

Meu primo foi abatido por um câncer miserável há alguns anos.


Tia Algima, a caçula e a mais bonita de todas, se casou com Adamor, o melhor jogador de dominó que já vi na vida, e teve sete filhos: Marcondes, Analu, Darley, César, Lincoln, Nara e Adamorzinho.

Pintor, bombeiro hidráulico e eletricista, Adamor era um verdadeiro homem dos sete instrumentos.

Foi o único sujeito que conheci capaz de comer duas dúzias de pimenta malagueta com um único pedaço de jaraqui frito.


Ele também me ensinou a fazer 485 pontos no dominó, sentando todas as pedras, saindo com as carroças de ás, duque e terno, façanha que não conheço até hoje quem seja capaz de repetir (saindo com a carroça de duque, até meu neto de cinco anos, o Mathews, é capaz de fazer).

Meu tio Adamor também faleceu de falência múltipla dos órgãos há alguns anos.

Meu primo Adarmozinho, um excelente jogador de futebol, também faleceu quando ajudava a salvar uma família durante um temporal diluviano no bairro e um muro desabou sobre ele.

Tinha pouco mais de 20 anos.

A morte precoce do caçula deixou tio Adamor deprimido pelo resto da vida.


Tio Zé Bandeira (aí ao lado de Tio Lucas e dois amigos) nunca se casou, mas teve um casal de filhos: James e Joana.

Ao longo de sua gloriosa existência, foi um fervoroso pregador rastafari e seus olhos permanentemente vermelhos faziam jus ao sobrenome.

Nos anos 60, ele sumiu da cidade por mais de 10 anos, deixando a família aflita, mas depois ressurgiu das cinzas como se nada tivesse acontecido.

Faleceu de ataque cardíaco no início dos anos 90, com pouco mais de 50 anos.


Tio Lucas, que na juventude tinha a compleição física do boxeador Cassius Clay, se casou com a querida Maria e teve sete filhos: Luiz Carlos, Edmilson, Lucas, Nádia, Tânia, Sandra e Klicya Franca, a “Kiki”.

Educado, cortês, bem-humorado e um tremendo pé de valsa, tio Lucas foi um dos maiores abatedores de lebres da cidade (meu primo Edmilson tem dado continuidade à saga...).

Ele trabalhava como motorista da Prefeitura, por onde se aposentou, e teve papel decisivo na minha formação cultural.


Em meados dos anos 70, tio Lucas passou a dirigir a caçamba responsável pela coleta e destinação final de revistas da Amazonas Distribuidora.

Naquela época, as revistas recolhidas das bancas tinham o título da capa recortado e o miolo era descartado no lixão da Prefeitura para ser incinerado – porque era mais barato do que pagar o frete de reenvio das revistas encalhadas para as editoras do sul do país.

A prestação de contas do “encalhe” era feita mediante envio dos títulos recortados.


Tio Lucas começou a nos presentear semanalmente com dezenas de exemplares de gibis e revistas (Mickey, Tio Patinhas, Pato Donald, Mônica, Batman, Superman, Recreio, Veja, Capricho, Geração Pop, etc.), recolhidas diligentemente do lixão antes da incineração final.

Comecei a colecionar a revista Placar a partir dos exemplares que ganhava dele – coisa que seria impossível de fazer bancando do próprio bolso.

Quando tio Lucas estacionava a caçamba em frente de casa e nos entregava de 30 a 40 gibis de uma vez só, aquilo era uma verdadeira festa para os olhos.

Até hoje não entendo porque, em vez de serem incineradas, as revistas não eram doadas para as escolas públicas da periferia. Coisas do capitalismo selvagem.

Mas o fato é que se não fosse essa ajuda milagrosa do Tio Lucas, eu hoje não seria um especialista em generalidades.


No último sábado, 28 de abril, Tio Lucas e Maria completaram suas bodas de ouro (50 anos de casados).

O fuzuê aconteceu no espaço Clave de Sol Eventos, na rua Belo Horizonte, em Adrianópolis, cujo ponto alto foi uma missa celebrada pelo Padre Marquinhos, de Petropólis, que culminou com a renovação de promessas e troca de alianças do casal.


Em termos práticos, Tio Lucas e Maria Bandeira casaram pela segunda vez.

Antes de os acepipes serem servidos, os atores e humoristas Rosa Malagueta (com a personagem “Maria, a apertada da Cidade Nova”) e Arnaldo Barreto (com a personagem “Vampira, a internauta do Centro”) arrancaram muitas gargalhadas dos presentes, com seus sketches surrealistas.


Os dois fazem parte da trupe “Quinta do Escracho”, selo de humor do Bar Estação Cultural Arte & Fato, que ainda tem no elenco Michel Guerrero (“Lady Parker, a perua cantora da Aparecida”), Hely Pinto (“Frígida, a falecida da Compensa”) e Wallace Abreu (“Maroca Pipoca, a encubada da Alvorada”).

Aliás, a doce Vampira imita várias vozes conhecidas e tem até um quadro só para ela.


No “De quem é essa Voz?”, ela faz as vozes de Michael Jackson, Madonna, Gal Costa, Simone, Fafá de Belém, Zizi Possi, Lady Gaga e de muitos outros cantores famosos.

Meu primo Edmilson se encarregou de providenciar uísque J&B e gelo, avidamente detonado pelo Simas, Felipe (namorado da Mayara) e Raimundo (marido da Marluce).

Eu preferi me empapuçar de creme de bacalhau, filé ao molho do Madeira e uma delícia de caranguejo de se comer ajoelhado.

Abaixo, algumas fotos do evento:


O casal e sua tropa de choque devidamente paramentada a rigor


Padre Marquinhos, responsável pela celebração litúrgica


Simas, Pai Simão, Tio Lucas, Tia Maria e esse vosso escriba


Nelson e Selane Pessoa, arrasando com sua bolsa Prada


Silane, Marluce e Raimundo, já meio triscado pelo uísque


Pai Simão e Dulce Pessoa planejando quando vão celebrar a deles


Tia Rosa, Tio Lucas, Tia Maria e Tia Algima, morrendo de rir de uma piada internacional


O casal com a família toda reunida


O vinho personalizado para ser aberto daqui a 50 anos, nas Bodas de Adamantium do casal

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