Minha avó materna, dona
Rosalina Bandeira – a única que conheci – nasceu em Coari, no médio Rio
Solimões, e era, supostamente, descendente de índios Apurinãs.
Vovó Rosa (aí na foto com sua bisneta Giovana, filha do Gigio) tinha o perfil e a
personalidade de uma autêntica guerreira apache: falava firme, levantando as
sobrancelhas inquisitorialmente, e não admitia contestações.
Ela se casou com o
seringalista José Bonifácio da Silva, com quem teve sete filhos: Edith (aka
“Dica”), Rosalina (aka “Rosa”), Maria, Celeste (minha mãe), Lucas, Algemira
(aka “Algima”) e José.
Quando José Bonifácio foi
abatido pela malária, vovó Rosa abandonou as terras que possuía em Coari e se
mudou para Manaus.
Como havia desenvolvido uma verdadeira
fobia a curumins e queria aproveitar o que lhe restava da vida, ela se
encarregou de “dar” os filhos para serem criados por famílias em melhor
situação financeira do que ela e passou a morar sozinha.
O caçula, José, chegou a ser
entregue para adoção a um casal de missionários norte-americanos, mas foi
resgatado por Edith e Rosalina algumas horas antes de embarcar no navio rumo
aos EUA.
Zé Bandeira, como se tornou
conhecido no bairro de São Francisco e adjacências, nunca esqueceu esse
episódio.
Já adulto, sempre que enchia
a cara de truaca e constatava a merda de vida que estava levando, ele ficava
revoltado:
– Se não fossem minhas duas
irmãs mais velhas, eu hoje seria um fazendeiro no Arkansas, estaria casado com
uma gringa de cabelos ruivos e teria um casal de filhos loirinhos e de olhos
azuis! A Dica e a Rosa afuleilaram o meu futuro! Hoje eu não sou um cidadão do
primeiro mundo por causa delas!
Mamãe, Tia Dica e Tia Rosa exibindo seus modelitos da hora na Praça da Matriz, no final dos anos 40
Quituteira de mão cheia e
dona de um coração ultra-generoso, Tia Dica teve um casal de filhos: Giovani e
Arinéia, ambos em produção independente.
Ela nunca quis casar (
“Marido só dá trabalho e aporrinhação, quero sabe disso não!”, explicava ) e já era feminista antes de a Betty Friedan ter nascido.
Aí nessa foto, ela está com Giovani, o famoso Gigio do Bar do Bigode.
Durante muitos anos, Tia Dica foi
a governanta oficial da casa da minha irmã Simone e praticamente educou os pivetes João Ricardo e Thandra.
Tia Rosa, cuja formosura
enchia os olhos de milhares de admiradores e vivia permanentemente de bom
humor, teve quatro filhos: Carlito, Marluce, Vera e Júlio.
Por ser o primeiro neto,
Carlito (aí nessa foto ao lado do Tio Lucas) virou o xodó da vovó Rosa, tendo sido praticamente criado por ela.
Eu gostava muito de
frequentar a casa da tia Rosa, no centro histórico de Manaus, onde era sempre
recebido com muito carinho, bolo de chocolate e refresco de mangarataia.
Tia Maria, que tinha os
traços imponentes de uma rainha africana, teve seis filhos: Auxiliadora (aka
“Cília”), Altair, Sônia
– os três aí nessa foto –, Ana, Dagnês e Solange.
Durante três décadas,
Altair foi campeão absoluto de dominó nos bairros de Petrópolis, Raiz, São
Francisco e adjacências.
Abusado ao extremo, ele
costumava levantar todas as pedras nas mãos, aí gritava o ponto e deixava uma
das pedras cair sobre a mesa.
Um de seus xerimbabos
rapidamente pegava a pedra e colocava na “ponta” onde ele gritara os pontos.
Se por acaso o xerimbabo
errasse o posicionamento da pedra, seria brindado com um bonito tabefe no pé do
ouvido.
Meu primo foi abatido por um
câncer miserável há alguns anos.
Tia Algima, a caçula e a mais
bonita de todas, se casou com Adamor, o melhor jogador de dominó que já vi na
vida, e teve sete filhos: Marcondes, Analu, Darley, César, Lincoln, Nara e
Adamorzinho.
Pintor, bombeiro hidráulico e
eletricista, Adamor era um verdadeiro homem dos sete instrumentos.
Foi o único sujeito que
conheci capaz de comer duas dúzias de pimenta malagueta com um único pedaço de
jaraqui frito.
Ele também me ensinou a fazer
485 pontos no dominó, sentando todas as pedras, saindo com as carroças de ás,
duque e terno, façanha que não conheço até hoje quem seja capaz de repetir
(saindo com a carroça de duque, até meu neto de cinco anos, o Mathews, é capaz
de fazer).
Meu tio Adamor também faleceu
de falência múltipla dos órgãos há alguns anos.
Meu primo Adarmozinho, um
excelente jogador de futebol, também faleceu quando ajudava a salvar uma
família durante um temporal diluviano no bairro e um muro desabou sobre ele.
Tinha pouco mais de 20 anos.
A morte precoce do caçula
deixou tio Adamor deprimido pelo resto da vida.
Tio Zé Bandeira (aí ao lado de Tio Lucas e dois amigos) nunca se
casou, mas teve um casal de filhos: James e Joana.
Ao longo de sua gloriosa existência,
foi um fervoroso pregador rastafari e seus olhos permanentemente vermelhos
faziam jus ao sobrenome.
Nos anos 60, ele sumiu da
cidade por mais de 10 anos, deixando a família aflita, mas depois ressurgiu das
cinzas como se nada tivesse acontecido.
Faleceu de ataque cardíaco no
início dos anos 90, com pouco mais de 50 anos.
Tio Lucas, que na juventude
tinha a compleição física do boxeador Cassius Clay, se casou com a querida
Maria e teve sete filhos: Luiz Carlos, Edmilson, Lucas, Nádia, Tânia, Sandra e
Klicya Franca, a “Kiki”.
Educado, cortês, bem-humorado
e um tremendo pé de valsa, tio Lucas foi um dos maiores abatedores de lebres da
cidade (meu primo Edmilson tem dado continuidade à saga...).
Ele trabalhava como motorista
da Prefeitura, por onde se aposentou, e teve papel decisivo na minha formação
cultural.
Em meados dos anos 70, tio
Lucas passou a dirigir a caçamba responsável pela coleta e destinação final de
revistas da Amazonas Distribuidora.
Naquela época, as revistas
recolhidas das bancas tinham o título da capa recortado e o miolo era
descartado no lixão da Prefeitura para ser incinerado – porque era mais barato
do que pagar o frete de reenvio das revistas encalhadas para as editoras do sul
do país.
A prestação de contas do
“encalhe” era feita mediante envio dos títulos recortados.
Tio Lucas começou a nos
presentear semanalmente com dezenas de exemplares de gibis e revistas (Mickey, Tio
Patinhas, Pato Donald, Mônica, Batman, Superman, Recreio, Veja, Capricho,
Geração Pop, etc.), recolhidas diligentemente do lixão antes da incineração
final.
Comecei a colecionar a
revista Placar a partir dos exemplares que ganhava dele – coisa que seria
impossível de fazer bancando do próprio bolso.
Quando tio Lucas estacionava
a caçamba em frente de casa e nos entregava de 30 a 40 gibis de uma vez só,
aquilo era uma verdadeira festa para os olhos.
Até hoje não entendo porque,
em vez de serem incineradas, as revistas não eram doadas para as escolas
públicas da periferia. Coisas do capitalismo selvagem.
Mas o fato é que se não fosse
essa ajuda milagrosa do Tio Lucas, eu hoje não seria um especialista em
generalidades.
No último sábado, 28 de
abril, Tio Lucas e Maria completaram suas bodas de ouro (50 anos de casados).
O fuzuê aconteceu no espaço
Clave de Sol Eventos, na rua Belo Horizonte, em Adrianópolis, cujo ponto alto
foi uma missa celebrada pelo Padre Marquinhos, de Petropólis, que culminou com
a renovação de promessas e troca de alianças do casal.
Em termos práticos, Tio Lucas
e Maria Bandeira casaram pela segunda vez.
Antes de os acepipes serem
servidos, os atores e humoristas Rosa Malagueta (com a personagem “Maria, a
apertada da Cidade Nova”) e Arnaldo Barreto (com a personagem “Vampira, a
internauta do Centro”) arrancaram muitas gargalhadas dos presentes, com seus
sketches surrealistas.
Os dois fazem parte da trupe “Quinta
do Escracho”, selo de humor do Bar Estação Cultural Arte & Fato, que ainda tem
no elenco Michel Guerrero (“Lady Parker, a perua cantora da Aparecida”), Hely
Pinto (“Frígida, a falecida da Compensa”) e Wallace Abreu (“Maroca Pipoca, a
encubada da Alvorada”).
Aliás, a doce Vampira imita
várias vozes conhecidas e tem até um quadro só para ela.
No “De quem é essa Voz?”, ela
faz as vozes de Michael Jackson, Madonna, Gal Costa, Simone, Fafá de Belém,
Zizi Possi, Lady Gaga e de muitos outros cantores famosos.
Meu primo Edmilson se encarregou de providenciar uísque J&B e gelo, avidamente detonado pelo Simas, Felipe (namorado da Mayara) e Raimundo (marido da Marluce).
Eu preferi me empapuçar de creme de bacalhau, filé ao molho do Madeira e uma delícia de caranguejo de se comer ajoelhado.
Abaixo, algumas fotos do
evento:
O casal e sua tropa de choque devidamente paramentada a rigor
Padre Marquinhos, responsável pela celebração litúrgica
Simas, Pai Simão, Tio Lucas, Tia Maria e esse vosso escriba
Nelson e Selane Pessoa, arrasando com sua bolsa Prada
Silane, Marluce e Raimundo, já meio triscado pelo uísque
Pai Simão e Dulce Pessoa planejando quando vão celebrar a deles
Tia Rosa, Tio Lucas, Tia Maria e Tia Algima, morrendo de rir de uma piada internacional
O casal com a família toda reunida
O vinho personalizado para ser aberto daqui a 50 anos, nas Bodas de Adamantium do casal
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