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domingo, abril 10, 2016

A Orgia dos Duendes


Bernardo Guimarães

                    I
Meia-noite soou na floresta
No relógio de sino de pau;
E a velhinha, rainha da festa,
Se assentou sobre o grande jirau.

Lobisome apanhava os gravetos
E a fogueira no chão acendia,
Revirando os compridos espetos,
Para a ceia da grande folia.

Junto dele um vermelho diabo
Que saíra do antro das focas,
Pendurado num pau pelo rabo,
No borralho torrava pipocas.

Taturana, uma bruxa amarela,
Resmungando com ar carrancudo,
Se ocupava em frigir na panela
Um menino com tripas e tudo.

Getirana com todo o sossego
A caldeira da sopa adubava
Com o sangue de um velho morcego,
Que ali mesmo co’as unhas sangrava.

Mamangava frigia nas banhas
Que tirou do cachaço de um frade
Adubado com pernas de aranha,
Fresco lombo de um frei dom abade.

Vento sul sobiou na cumbuca,
Galo-Preto na cinza espojou;
Por três vezes zumbiu a mutuca,
No cupim o macuco piou.

E a rainha co’as mãos ressequidas
O sinal por três vezes foi dando,
A corte das almas perdidas
Desta sorte ao batuque chamando:

"Vinde, ó filhas do oco do pau,
Lagartixas do rabo vermelho,
Vinde, vinde tocar marimbau,
Que hoje é festa de grande aparelho.

Raparigas do monte das cobras,
Que fazeis lá no fundo da brenha?
Do sepulcro trazei-me as abobras,
E do inferno os meus feixes de lenha.

Ide já procurar-me a bandurra
Que me deu minha tia Marselha,
E que aos ventos da noite sussura,
Pendurada no arco-da-velha.

Onde estás, que inda aqui não te vejo,
Esqueleto gamenho e gentil?
Eu quisera acordar-te c’um beijo ]
Lá no teu tenebroso covil.

Galo-preto da torre da morte,
Que te aninhas em leito de brasas,
Vem agora esquecer tua sorte,
Vem-me em torno arrastar tuas asas.

Sapo-inchado, que moras na cova
Onde a mão do defunto enterrei,
Tu não sabes que hoje é lua nova,
Que é o dia das danças da lei?

Tu também, ó gentil Crocodilo,
Não deplores o suco das uvas;
Vem beber excelente restilo
Que eu do pranto extraí das viúvas.

Lobisome, que fazes, meu bem
Que não vens ao sagrado batuque?
Como tratas com tanto desdém,
Quem a c’roa te deu de grão-duque?”
 
                    II

Mil duendes dos antros saíram
Batucando e batendo matracas,
E mil bruxas uivando surgiram,
Cavalgando em compridas estacas.

Três diabos vestidos de roxo
Se assentaram aos pés da rainha,
E um deles, que tinha o pé coxo,
Começou a tocar campainha.

Campainha, que toca, é caveira
Com badalo de casco de burro,
Que no meio da selva agoureira
Vai fazendo medonho sussurro.

Capetinhas, trepados nos galhos
Com o rabo enrolado no pau,
Uns agitam sonoros chocalhos,
Outros põem-se a tocar marimbau.

Crocodilo roncava no papo
Com ruído de grande fragor:
E na inchada barriga de um sapo
Esqueleto tocava tambor.

Da carcaça de um seco defunto
E das tripas de um velho barão,
De uma bruxa engenhosa o bestunto
Armou logo feroz rabecão.

Assentado nos pés da rainha
Lobisome batia a batuta
Co’a canela de um frade, que tinha
Inda um pouco de carne corruta.

Já ressoam timbales e rufos,
Ferve a dança do cateretê;
Taturana, batendo os adufos,
Sapateia cantando — o le rê!

Getirana, bruxinha tarasca,
Arranhando fanhosa bandurra,
Com tremenda embigada descasca
A barriga do velho Caturra.

O Caturra era um sapo papudo
Com dous chifres vermelhos na testa,
e era ele, a despeito de tudo,
O rapaz mais patusco da festa.

Já no meio da roda zurrando
Aparece a mula-sem-cabeça,
Bate palmas, a súcia berrando
— Viva, viva a Sra. Condessa!...

E dançando em redor da fogueira
vão girando, girando sem fim;
Cada qual uma estrofe agoureira
Vão cantando alternados assim:

                    III

TATURANA

Dos prazeres de amor as primícias,
De meu pai entre os braços gozei;
E de amor as extremas delícias
Deu-me um filho, que dele gerei.

Mas se minha fraqueza foi tanta,
De um convento fui freira professa;
Onde morte morri de uma santa;
Vejam lá, que tal foi esta peça.
 
GETIRANA

Por conselhos de um cônego abade
Dous maridos na cova soquei;
E depois por amores de um frade
Ao suplício o abade arrastei.

Os amantes, a quem despojei,
Conduzi das desgraças ao cúmulo,
E alguns filhos, por artes que sei,
Me caíram do ventre no túmulo.
 
GALO-PRETO

Como frade de um santo convento
Este gordo toutiço criei;
E de lindas donzelas um cento
No altar da luxúria imolei.

Mas na vida beata de ascético
Mui contrito rezei, jejuei,
Té que um dia de ataque apoplético
Nos abismos do inferno estourei.
 
ESQUELETO

Por fazer aos mortais crua guerra
Mil fogueiras no mundo ateei;
Quantos vivos queimei sobre a terra,
Já eu mesmo contá-los não sei.

Das severas virtudes monásticas
Dei no entanto piedosos exemplos;
E por isso cabeças fantásticas
Inda me erguem altares e templos.
 
MULA-SEM-CABEÇA

Por um bispo eu morria de amores,
Que afinal meus extremos pagou;
Meu marido, fervendo em furores
De ciúmes, o bispo matou.

Do consórcio enjoei-me dos laços,
E ansiosa quis vê-los quebrados,
Meu marido piquei em pedaços,
E depois o comi aos bocados.

Entre galas, veludo e damasco
Eu vivi, bela e nobre condessa;
E por fim entre as mãos do carrasco
Sobre um cepo perdi a cabeça.
 
CROCODILO

Eu fui papa; e aos meus inimigos
Para o inferno mandei c’um aceno;
E também por servir aos amigos
té nas hóstias botava veneno.

De princesas cruéis e devassas
Fui na terra constante patrono;
Por gozar de seus mimos e graças
Opiei aos maridos sem sono.

Eu na terra vigário de Cristo,
Que nas mãos tinha a chave do céu,
Eis que um dia de um golpe imprevisto
Nos infernos caí de boléu.
 
LOBISOME

Eu fui rei, e aos vassalos fiéis
Por chalaça mandava enforcar;
E sabia por modos cruéis
As esposas e filhas roubar.

Do meu reino e de minhas cidades
O talento e a virtude enxotei;
De michelas, carrascos e frades
Do meu trono os degraus rodeei.

Com o sangue e suor de meus povos
Diverti-me e criei esta pança,
Para enfim, urros dando e corcovos,
Vir ao demo servir de pitança.
 
RAINHA

Já no ventre materno fui boa;
Minha mãe, ao nascer, eu matei;
E a meu pai, por herdar-lhe a coroa
Eu seu leito co’as mãos esganei.

Um irmão mais idoso que eu,
C’uma pedra amarrada ao pescoço,
Atirado às ocultas morreu
Afogado no fundo de um poço.

Em marido nenhum achei jeito;
Ao primeiro, o qual tinha ciúmes,
Uma noite co’as colchas do leito
Abafei para sempre os queixumes.

Ao segundo, da torre do paço
Despenhei por me ser desleal;
Ao terceiro por fim num abraço
pelas costas cravei-lhe um punhal.

Entre a turba de meus servidores
Recrutei meus amantes de um dia;
Quem gozava meus régios favores
Nos abismos do mar se sumia.

No banquete infernal da luxúria
Quantos vasos aos lábios chegava,
Satisfeita aos desejos a fúria,
Sem piedade depois os quebrava.

Quem pratica proezas tamanhas
Cá não veio por fraca e mesquinha,
E merece por suas façanhas
Inda mesmo entre vós ser rainha.
 
                    IV

Do batuque infernal, que não finda,
Turbilhona o fatal rodopio;
Mais veloz, mais veloz, mais ainda
Ferve a dança como um corrupio.

Mas eis que no mais quente da festa
Um rebenque estalando se ouviu,
Galopando através da floresta
Magro espectro sinistro surgiu

Hediondo esqueleto aos arrancos
Chocalhava nas abas da sela;
Era a Morte, que vinha de tranco
Amontada numa égua amarela.

O terrível rebenque zunindo
A nojenta canalha enxotava;
E à esquerda e à direita zurzindo
Com voz rouca desta arte bradava:

“Fora, fora! esqueletos poentos,
Lobisomes, e bruxas mirradas!
Para a cova esses ossos nojentos!
Para o inferno essas almas danadas!”

Um estouro rebenta nas selvas,
Que recendem com cheiro de enxofre;
E na terra por baixo das relvas
Toda a súcia sumiu-se de chofre.
 
                    V

E aos primeiros albores do dia
Nem ao menos se viam vestígios
Da nefanda, asquerosa folia,
Dessa noite de horrendos prodígios.

E nos ramos saltavam as aves
Gorjeando canoros queixumes,
E brincavam as auras suaves
Entre as flores colhendo perfumes.

E na sombra daquele arvoredo,
Que inda há pouco viu tantos horrores,
Passeando sozinha e sem medo
Linda virgem cismava de amores.

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